Doutrina Católica
“Não julgueis”: o uso errado (e perigoso) desse versículo hoje
por Thiago Zanetti em 18/06/2025 • Você e mais 157 pessoas leram este artigo Comentar

Tempo de leitura: 5 minutos
“Não julgueis, e não sereis julgados” (Mt 7,1). Este é, provavelmente, um dos versículos mais citados — e mal interpretados — da Bíblia. Em tempos de hiperexposição, cancelamento, discursos inflamados e relativismo moral, essa frase de Jesus é frequentemente usada como escudo contra qualquer tipo de crítica ou correção fraterna. Mas… será mesmo que Cristo quis proibir todo e qualquer julgamento?
O que Jesus quis dizer com “Não julgueis”?
A frase “Não julgueis” faz parte do Sermão da Montanha, especificamente no capítulo 7 do Evangelho segundo São Mateus. Ao contrário do que muitos pensam, Jesus não está condenando todo tipo de julgamento, mas sim a hipocrisia e a arrogância moral.
Logo após dizer “Não julgueis”, Ele complementa:
“Por que observas o cisco no olho do teu irmão e não reparas na trave que está no teu próprio olho?” (Mt 7,3).
O que Jesus denuncia aqui é o julgamento sem misericórdia, sem autocrítica, feito por quem está cego para os próprios pecados. A condenação não é ao discernimento moral, mas à atitude farisaica de quem aponta o dedo sem humildade nem caridade.
Julgamento vs. Discernimento: a diferença essencial
A Igreja nunca ensinou que devemos “fechar os olhos” para o erro ou “passar pano” para o pecado. Ao contrário, nos convida ao discernimento dos espíritos (cf. 1Jo 4,1) e à correção fraterna (cf. Mt 18,15).
O Catecismo da Igreja Católica afirma:
“As obras de misericórdia são ações caritativas pelas quais socorremos o próximo em suas necessidades corporais e espirituais. Instruir, aconselhar, consolar, confortar são obras de misericórdia espiritual, como também perdoar e suportar com paciência” (CIC §2447).
Portanto, quando alguém adverte outra pessoa com verdade, amor e intenção de salvá-la do pecado, está fazendo um ato de caridade — e não de julgamento condenatório.
O Papa Francisco também ensinou:
“Falar a verdade sem separá-la da caridade. Nunca separe os fatos do coração!”
(Discurso do Papa Francisco aos dirigentes e funcionários da TV2000 e do circuito inBlu2000, 28 de janeiro de 2024).
O risco do relativismo moral
Na cultura contemporânea, o versículo “Não julgueis” é frequentemente invocado como justificativa para o relativismo moral, onde ninguém pode corrigir ninguém e tudo se torna “questão de opinião”. Isso gera duas consequências graves:
- O erro se torna inquestionável — o pecado é normalizado.
- A verdade é silenciada — quem defende valores cristãos é rotulado como “intolerante”.
Esse uso distorcido do versículo desfigura a mensagem de Cristo. Como ensinou Bento XVI:
“A caridade na verdade, que Jesus Cristo testemunhou com a sua vida terrena e sobretudo com a sua morte e ressurreição, é a força propulsora principal para o verdadeiro desenvolvimento de cada pessoa e da humanidade inteira” (Caritas in Veritate, n. 1)
Se amamos de verdade, não podemos nos calar diante do erro. Mas devemos falar com misericórdia e humildade, lembrando sempre que todos somos pecadores.
O que diz a Tradição da Igreja?
A Tradição é clara: não julgar a alma, mas julgar as ações. Santo Tomás de Aquino ensina:
“Julgar os pecados é um dever, mas julgar as intenções ocultas pertence só a Deus.”
O próprio São Paulo exorta os cristãos a corrigirem uns aos outros:
“Não se trata, antes, de vós mesmos julgardes os de dentro?” (1Cor 5,12).
Ou seja, a comunidade cristã tem o dever de preservar a verdade e orientar seus membros — com firmeza e caridade.
Quando o julgamento se torna pecado?
Aí sim, há um perigo. Jesus nos alerta contra julgamentos precipitados, sem caridade, com base em aparências ou motivados por orgulho. Estes são, sim, pecados contra a justiça e o amor fraterno.
O Catecismo adverte:
“Respeitar à reputação das pessoas proíbe qualquer atitude de palavra capazes de causar um prejuízo injusto” (CIC §2477).
Portanto, o erro está em julgar as intenções do coração, que só Deus conhece. Isso é usurpar o lugar do Juiz verdadeiro.
Corrigir sim, condenar não
Cristo nos ensina a confrontar o pecado, mas nunca a condenar a alma do pecador. Ele mesmo disse à mulher adúltera:
“Ninguém te condenou? Eu também não te condeno. Vai, e de agora em diante não peques mais” (Jo 8,11).
A postura correta é essa: firmeza na verdade, ternura no trato. A correção deve ser feita em oração, privacidade, humildade — como ensina o próprio Cristo em Mt 18,15.
O verdadeiro sentido de “não julgueis”
“Não julgueis” não é um salvo-conduto para fazer o que quiser sem ser corrigido, nem um mandamento de silêncio diante do erro. É um convite à humildade, ao exame de consciência e ao amor que busca a salvação do outro.
A verdadeira caridade não é permissiva, mas salvífica. Corrigir com amor é ser reflexo da misericórdia de Deus.

Por Thiago Zanetti
Jornalista, copywriter e escritor católico. Graduado em Jornalismo e Mestre em História Social das Relações Políticas, ambos pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). É autor dos livros Mensagens de Fé e Esperança (UICLAP, 2025), Deus é a resposta de nossas vidas (Palavra & Prece, 2012) e O Sagrado: prosas e versos (Flor & Cultura, 2012).
Acesse o Blog: www.thiagozanetti.com.br
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