Devoções

UM BREVE COMENTÁRIO À ORAÇÃO DA AVE MARIA: “CHEIA DE GRAÇA”

por André Aloísio • Você e mais 58 pessoas leram este artigo Comentar

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Examinamos em um artigo anterior a saudação do Arcanjo Gabriel à Virgem Maria (“Ave Maria […] o Senhor é convosco” – Lc 1, 28), deixando para um artigo futuro a expressão “cheia de graça”. Neste artigo, analisaremos justamente essa expressão.

“Cheia de graça”

No grego, há um jogo de palavras entre a saudação “ave” ou “alegra-te” (“chaire”, do verbo “chairo”) e a expressão “cheia de graça” (“kecharitomene”, do verbo “charitoo”). Através de um exame da expressão “cheia de graça”, podemos aprender muitas coisas importantes sobre a Virgem Santíssima.

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Em primeiro lugar, o verbo grego por trás de “cheia de graça” (“charitoo”: “agracio”) significa conceder graça, demonstrar favor. O verbo está na voz passiva, indicando que Nossa Senhora foi alvo do favor de Deus, que ela recebeu a graça de Deus. O Arcanjo explica isso em Lc 1, 30: “Encontraste graça [“charin”] junto a Deus”. Esse fato nos ensina que a Virgem Maria deve tudo o que é ao próprio Deus. Ela é, como diz de si mesma, a “serva [“escrava”] do Senhor” (Lc 1, 38), de “condição humilde”, para a qual o Senhor olhou (Lc 1, 48. 52).

Segundo, esse verbo grego está no particípio e funciona como um adjetivo substantivado, sendo usado pelo Arcanjo Gabriel como um título para Nossa Senhora. É importante observar que, no texto bíblico, o nome “Maria” não aparece na saudação. O verbo traduzido como “cheia de graça” toma o lugar do seu nome. Isso é muito significativo. A identidade de Maria Santíssima é de tal forma definida pela graça recebida de Deus que “cheia de graça” se torna seu título. A singularidade desse fenômeno fica ainda mais evidente pelo fato de que esse é o único lugar em toda a Bíblia em que um anjo se dirige a alguém por um título ao invés de um nome, e é o único lugar da Bíblia em que a expressão “cheia de graça” (“kecharitomene”) aparece. A saudação do Arcanjo foi tão incomum que Nossa Senhora “perturbou-se com essas palavras e pôs-se a pensar no que significaria a saudação” (Lc 1, 29). Desse modo, podemos dizer que ser “agraciada” é a grande característica de Nossa Senhora, e que ela a possui de uma maneira exclusiva.

Por causa desse fato, São Jerônimo escolheu a expressão “cheia de graça” (“gratia plena”) na Vulgata para traduzir o verbo grego “kecharitomene” em Lc 1, 28. Mais do que isso, com base nessa expressão, Padres e Doutores da Igreja descrevem a Virgem Maria como aquela sobre a qual repousaram todas as graças de Deus, que foi adornada com todos os dons do Espírito Santo e que, por isso, é a maior de todas as criaturas.

Em terceiro e último lugar, o verbo grego “kecharitomene” está no tempo verbal perfeito, que não tem equivalente em português. O perfeito do grego indica uma ação completa no passado com efeitos presentes. Ao descrever Maria Santíssima como “cheia de graça” com o uso do perfeito, Gabriel Arcanjo indica que Nossa Senhora foi agraciada por Deus em um momento anterior à sua conversa com ela, e que, como resultado dessa ação de Deus, a Virgem continuava agraciada.

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Que momento anterior foi esse em que a Virgem Maria foi agraciada por Deus? Tanto o profeta Jeremias (Jr 1, 5) quanto São João Batista (Lc 1, 15) o foram no ventre materno. Se Nossa Senhora é a “cheia de graça” por excelência, deve ter sido agraciada em um momento anterior a eles e de uma maneira superior.

Desde o início da Igreja, havia uma convicção de que Maria Santíssima foi agraciada a ponto de ser completamente livre de toda a mancha do pecado. Santo Agostinho, no século V, por exemplo, escreve a respeito de Maria Santíssima:

“Excetuo a santa Virgem Maria, sobre a qual, devido à honra ao Senhor, não quero discutir, eis porque sabemos que lhe foi concedido um grau mais elevado de graça para vencer totalmente o pecado, pois mereceu conceber e dar à luz aquele a respeito do qual não consta que tivesse pecado” (SANTO AGOSTINHO. A natureza e a graça. In: A graça (I). São Paulo: Paulus, s.d., 36).

Essa compreensão foi amadurecendo até o século XIII, quando o Beato João Duns Scotus defendeu, em seus comentários ao Terceiro Livro das Sentenças, de Pedro Lombardo, que a graça com a qual Nossa Senhora foi alcançada envolveu ter sido ela preservada do pecado original, e que isso aconteceu no momento da sua concepção:

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“Como filha e descendente de Adão, Maria deveria contrair o pecado de origem, mas perfeitamente redimida por Cristo, não incorreu nele. Quem atua mais perfeitamente? O médico que cura a ferida do filho caído ou o que, sabendo que seu filho irá passar por determinado local, se adianta e tira a pedra que provocará o tropeço? Sem dúvida alguma, o segundo. Cristo não seria perfeitíssimo redentor se, pelo menos em um caso, não redimisse da maneira mais perfeita possível. Pois bem; é possível prevenir a queda de alguém no pecado original. E se devia fazê-lo em algum caso, o fez no caso de sua Mãe”.

O entendimento da Imaculada Conceição de Maria, que se tornou cada vez mais universal, foi declarado como dogma pelo Papa Beato Pio IX, na Constituição Apostólica “Ineffabilis Deus”, em 1854: “A santíssima Virgem Maria foi preservada imune de toda mancha de culpa original no primeiro instante de sua Concepção, por singular graça e privilégio de Deus onipotente, na atenção aos méritos de Jesus Cristo, salvador do gênero humano”. Desse modo, Deus é o Salvador da Virgem Maria (Lc 1, 47) da maneira mais perfeita possível, nem mesmo permitindo que ela contraísse a mancha do pecado original.

Tudo isso que aprendemos sobre Maria Santíssima como “cheia de graça” se relaciona com o que vimos no artigo anterior. Maria precisava ser a “cheia de graça” para cumprir sua missão como Mãe de Deus. Como Nossa Senhora seria um templo (Lc 1, 35), onde habitaria aquele que é “cheio de graça” (“pleres charitos”) e verdade (Jo 1, 14), era apropriado que ela fosse a “cheia de graça” (“kecharitomene”). Assim como no templo do Antigo Testamento não poderia haver impureza ou defeito (Lv 21; 22), também era necessário que a Mãe de Deus fosse completamente livre de toda imperfeição.

Além de templo, a Virgem Maria também é a nova Eva, que desfaz com sua obediência a desobediência da primeira Eva. Para que isso fosse possível, era necessário que ela tivesse a mesma pureza e integridade da primeira Eva antes da queda:

Maria e Eva, duas pessoas sem culpa, duas pessoas simples, eram idênticas. Depois, no entanto, uma se tornou a causa da nossa morte, a outra, a causa da nossa vida” (SANTO EFRÉM, Op. syr., 2, 327).

Concluímos, desse modo, que poucos títulos de Nossa Senhora são tão elogiosos quanto o “cheia de graça”. Ao saudá-la assim na oração da Ave Maria, reconhecemo-la como a serva do Senhor, de condição mais humilde que, no entanto, foi de tal modo agraciada e salva por Deus, que se tornou a mais perfeita de todas as criaturas, acima de anjos e homens. Deus, de fato, “Depôs os poderosos de seus tronos e exaltou os de condição humilde” (Lc 1, 52). Por que, então, não rezar uma Ave Maria agora à Mãe de Deus e nossa Mãe, louvando as grandes coisas que o Poderoso fez por ela (Lc 1, 49)?

Leia também os outros artigos da série “Um breve comentário à oração da Ave Maria”:

André Aloísio

Teólogo

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