Introdução
1. Foi por intermédio da Santíssima Virgem Maria que Jesus Cristo veio ao mundo, e é também por meio dela que Ele deve reinar no mundo.
2. Toda a sua vida Maria permaneceu oculta; por isso o Espírito Santo e a Igreja a chamam Alma Mater – Mãe escondida e secreta[1]. Tão profunda era a sua humildade, que, para ela, o atrativo mais poderoso, mais constante era esconder-se de si mesma e de toda criatura, para ser conhecida somente de Deus.
3. Para atender aos pedidos que ela lhe fez de escondê-la, empobrecê-la e humilhá-la, Deus providenciou para que oculta ela permanecesse em seu nascimento, em sua vida, em seus mistérios, em sua ressurreição e assunção, passando despercebida aos olhos de quase toda criatura humana. Seus próprios parentes não a conheciam; e os anjos perguntavam muitas vezes uns aos outros: Quae est ista?... – Quem é esta? (Ct 3,6; 8,5) pois que o Altíssimo lha escondia; ou, se algo lhes desvendava a respeito, muito mais, infinitamente, lhes ocultava.
4. Deus Pai consentiu que jamais em sua vida ela fizesse algum milagre, pelo menos um milagre visível e retumbante, conquanto lhe tivesse outorgado o poder de fazê-los. Deus Filho consentiu que ela não falasse, se bem que lhe houvesse comunicado a sabedoria divina. Deus Espírito Santo consentiu que os apóstolos e evangelistas a ela mal se referissem, e apenas no que fosse necessário para manifestar Jesus Cristo. E, no entanto, ela era a Esposa do Espírito Santo.
5. Maria é a obra-prima por excelência do Altíssimo, cujo conhecimento[2] e domínio Ele reservou para si. Maria é a Mãe admirável do Filho, a quem aprouve humilhá-la e ocultá-la durante a vida para lhe favorecer a humildade, tratando-a de mulher – mulier (Jo 2,4; 19,26), como a uma estrangeira, conquanto em seu Coração a estimasse e amasse mais que todos os anjos e homens. Maria é a fonte selada (Ct 4,12) e a esposa fiel do Espírito Santo, onde só ele pode penetrar. Maria é o santuário, o repouso da Santíssima Trindade, em que Deus está mais magnífica e divinamente que em qualquer outro lugar do universo, sem excetuar seu trono sobre os querubins e serafins; e criatura alguma, pura que seja, pode aí penetrar sem um grande privilégio.
6. Digo com os santos: Maria Santíssima é o paraíso terrestre[3] do novo Adão, no qual este se encarnou por obra do Espírito Santo, para aí operar maravilhas incompreensíveis. É o grande, o divino mundo de Deus[4], onde há belezas e tesouros inefáveis. É a magnificência de Deus[5], em que Ele escondeu, como em seu seio, seu Filho único, e nele tudo que há de mais excelente e mais precioso. Oh! que grandes coisas e escondidas Deus todo-poderoso realizou nesta criatura admirável, di-lo ela mesma, como obrigada, apesar de sua humildade profunda: Fecit mihi magna qui potens est (Lc 1,49). O mundo desconhece essas coisas porque é inapto e indigno.
7. Os santos disseram coisas admiráveis desta cidade santa de Deus; e nunca foram tão eloquentes nem mais felizes, – eles o confessam – que ao tomá-la como tema de suas palavras e de seus escritos. E, depois, proclamam que é impossível perceber a altura dos seus méritos, que ela elevou até ao trono da Divindade; que a largura de sua caridade, mais extensa que a terra, não se pode medir; que está além de toda compreensão a grandeza do poder que ela exerce sobre o próprio Deus; e, enfim, que a profundeza de sua humildade e de todas as suas virtudes e graças são um abismo impossível de sondar. Ó altura incompreensível! Ó largura inefável! Ó grandeza incomensurável! Ó abismo insondável!
8. Todos os dias, dum extremo da terra ao outro, no mais alto dos céus, no mais profundo dos abismos, tudo prega, tudo exalta a incomparável Maria. Os nove coros de anjos, os homens de todas as idades, condições e religiões, os bons e os maus, os próprios demônios são obrigados, de bom ou mau grado, pela força da verdade, a proclamá-la bem-aventurada. Vibra nos céus, como diz São Boaventura, o clamor incessante dos anjos: Sancta, sancta, sancta Maria, Dei Genitrix et Virgo; e milhões e milhões de vezes, todos os dias, eles lhe dirigem a saudação angélica: Ave, Maria..., prosternando-se diante dela e pedindo-lhe a graça de honrá-los com suas ordens. E a todos se avantaja o príncipe da corte celeste, São Miguel, que é o mais zeloso em render-lhe e procurar toda sorte de homenagens, sempre atento, para ter a honra de, à sua palavra, prestar um serviço a algum dos seus servidores.
9. Toda a terra está cheia de sua glória, particularmente entre os cristãos, que a tomam como padroeira e protetora em muitos países, províncias, dioceses e cidades, inúmeras catedrais são consagradas sob a invocação do seu nome. Igreja alguma se encontra sem um altar em sua honra; não há região ou país que não possua alguma de suas imagens milagrosas, junto das quais todos os males são curados e se obtêm todos os bens. Quantas confrarias e congregações erigidas em sua honra! Quantos institutos e ordens religiosas abrigados sob seu nome e proteção! Quantos irmãos e irmãs de todas as confrarias, e quantos religiosos e religiosas a entoar os seus louvores, a anunciar as suas maravilhas! Não há criancinha que, balbuciando a Ave-Maria, não a louve; mesmo os pecadores, os mais empedernidos, conservam sempre uma centelha de confiança em Maria. Dos próprios demônios no inferno, não há um que não a respeite, embora temendo.
10. Depois disto é preciso dizer, em verdade, com os santos:
De Maria nunquam satis... Ainda não se louvou, exaltou, honrou, amou e serviu suficientemente a Maria, pois muito mais louvor, respeito, amor e serviço ela merece.
11. É preciso dizer, ainda, com o Espírito Santo: Omnis gloria eius filiae Regis ab intus – Toda a glória da Filha do Rei está no interior (Sl 44,14), como se toda a glória exterior, que lhe dão, a porfia, o céu e a terra, nada fosse em comparação daquela que ela recebe no interior, da parte do Criador, e que desconhecem as fracas criaturas, incapazes de penetrar o segredo dos segredos do Rei.
12. Devemos, portanto, exclamar com o apóstolo: Nec oculus vidit, nec auris audivit, nec in cor hominis ascendit (1Cor 2,9) – os olhos não viram, o ouvido não ouviu, nem o coração do homem compreendeu as belezas, as grandezas e excelências de Maria, o milagre dos milagres da graça[6], da natureza e da glória. Se quiserdes compreender a Mãe – diz um santo – compreendei o Filho. Ela é uma digna Mãe de Deus: Hie taceat omnis lingua – Toda língua aqui emudeça.
13. Meu coração ditou tudo o que acabo de escrever com especial alegria, para demonstrar que Maria Santíssima tem sido, até aqui, desconhecida[7], e que é esta uma das razões por que Jesus Cristo não é conhecido como deve ser. Quando, portanto, e é certo, o conhecimento e o reino de Jesus Cristo tomarem o mundo, será como uma consequência necessária do conhecimento e do reino da Santíssima Virgem Maria. Ela o deu ao mundo a primeira vez, e também, da segunda, o fará resplandecer.
____________________
1. Antífona à Santíssima Virgem para o tempo do Natal; hino “Ave Maris Stella”.
2. “[...] ut soli Deo cognoscenda reservetur” (SÃO BERNARDINO DE SENA. Sermão 51, art. 1, cap. 1).
3. “Rationalis secundi Adam paradisus” (SÃO LEÃO GRANDE. Sermão de Annuntiatione).
4. “Mundus specialissimus altissimi Dei” (SÃO BERNARDO).
5. “Magnificentia Dei” (RICARDO DE SÃO LOURENÇO. De laud. Virg., lib. IV).
6. “Miraculum miraculorum” (SÃO JOÃO DAMASCENO. Oratio I de Nativitate B.V.).
7. No sentido de: conhecida insuficientemente, como se depreende de todo este parágrafo e da expressão: “Jesus Cristo não é conhecido como deve ser”.
 
Capítulo I. Necessidade da devoção à Santíssima Virgem
14. Confesso com toda a Igreja que Maria é uma pura criatura saída das mãos do Altíssimo. Comparada, portanto, à Majestade infinita ela é menos que um átomo, é, antes, um nada, pois que só Ele é “Aquele que é” (Ex 3,14) e, por conseguinte, este grande Senhor, sempre independente e bastando-se a si mesmo, não tem nem teve jamais necessidade da Santíssima Virgem para a realização de suas vontades e a manifestação de sua glória. Basta-lhe querer para tudo fazer.
15. Digo, entretanto, que, supostas as coisas como são, já que Deus quis começar e acabar suas maiores obras por meio da Santíssima Virgem, depois que a formou, é de crer que não mudará de conduta nos séculos dos séculos, pois é Deus, imutável em sua conduta e em seus sentimentos.
 
ARTIGO I - PRINCÍPIOS
 
PRIMEIRO PRINCÍPIO. – Deus quis servir-se de Maria na Encarnação
16. Deus Pai só deu ao mundo seu Unigênito por Maria. Suspiraram os patriarcas, e pedidos insistentes fizeram os profetas e os santos da lei antiga, durante quatro milênios, mas só Maria o mereceu, e alcançou graça diante de Deus[1], pela força de suas orações e pela sublimidade de suas virtudes. Porque o mundo era indigno, diz Santo Agostinho, de receber o Filho de Deus diretamente das mãos do Pai, Ele o deu a Maria a fim de que o mundo o recebesse por meio dela.
Em Maria e por Maria é que o Filho de Deus se fez homem para nossa salvação.
Deus Espírito Santo formou Jesus Cristo em Maria, mas só depois de lhe ter pedido consentimento por intermédio de um dos primeiros ministros da corte celestial.
17. Deus Pai transmitiu a Maria sua fecundidade, na medida em que a podia receber uma simples criatura, para que ela pudesse produzir o seu Filho e todos os membros de seu corpo místico.
18. Deus Filho desceu ao seu seio virginal, qual novo Adão no paraíso terrestre, para aí ter suas complacências e operar em segredo maravilhas de graça. Deus, feito homem, encontrou sua liberdade em se ver aprisionado no seio da Virgem Mãe; patenteou a sua força em se deixar levar por esta Virgem santa; achou sua glória e a de seu Pai, escondendo seus esplendores a todas as criaturas deste mundo, para revelá-las somente a Maria; glorificou sua independência e majestade, dependendo desta Virgem amável, em sua conceição, em seu nascimento, em sua apresentação no templo, em seus trinta anos de vida oculta, até à morte, a que ela devia assistir, para fazerem ambos um mesmo sacrifício e para que ele fosse imolado ao Pai eterno com o consentimento de sua Mãe, como outrora Isaac, com o consentimento de Abraão à vontade de Deus. Foi ela quem o amamentou, nutriu, sustentou, criou e sacrificou por nós.
Ó admirável e incompreensível dependência de um Deus, de que nos foi dado conhecer o preço e a glória infinita, pois o Espírito Santo não a pôde passar em silêncio no Evangelho, como incógnitas nos ficaram quase todas as coisas maravilhosas que fez a Sabedoria encarnada durante sua vida oculta. Jesus Cristo deu mais glória, a Deus, submetendo-se a Maria durante trinta anos, do que se tivesse convertido toda a terra pela realização dos mais estupendos milagres. Oh! quão altamente glorificamos a Deus, quando, para lhe agradar, nos submetemos a Maria, a exemplo de Jesus Cristo, nosso único modelo.
19. Se examinarmos atentamente o resto da vida de Jesus, veremos que foi por Maria que Ele quis começar seus milagres. Pela palavra de Maria ele santificou São João no seio de Santa Isabel; assim que as palavras brotaram dos lábios de Maria, João ficou santificado, e foi este seu primeiro e maior milagre de graça. Foi ao humilde pedido de Maria, que Ele, nas núpcias de Caná, mudou água em vinho, sendo este seu primeiro milagre sobre a natureza. Ele começou e continuou seus milagres por Maria, e por Maria os continuará até ao fim dos séculos.
20. O Espírito Santo, que era estéril em Deus, isto é, não produzia outra pessoa divina, tornou-se fecundo em Maria. É com ela, nela e dela que ele produziu sua obra-prima, um Deus feito homem, e que produz todos os dias, até ao fim do mundo, os predestinados e os membros do corpo deste Chefe adorável. Eis por que, quanto mais, em uma alma, ele encontra Maria, sua querida e inseparável esposa[2], mais operante e poderoso se torna para produzir Jesus Cristo nessa alma, e essa alma em Jesus Cristo.
21. Não se quer dizer com isto que a Santíssima Virgem dê a fecundidade ao Espírito Santo, como se ele não a tivesse. Sendo Deus, ele possui a fecundidade ou a capacidade de produzir, como o Pai e o Filho. Não a reduz, porém, a ação, e não gera outra pessoa divina. O que se quer dizer é que o Espírito Santo, por intermédio da Virgem, da qual se quis servir, se bem que não lhe fosse absolutamente necessário, reduziu ao ato a sua fecundidade, produzindo, nela e por ela, Jesus Cristo e seus membros. É um mistério da graça, inacessível até aos mais sábios e espirituais dentre os cristãos.
____________________
1. Cf. Lc 1,30; Invenisti enim gratiam apud Deum.
2. “Sponsa Spiritus Sancti” (SANTO ILDEFONSO. Liber de Corona Virginis, cap. III). • “Sponsus eius Spiritus veritatis” (BELARMINO. Concio 2 super “Missus est”).
 
SEGUNDO PRINCÍPIO. – Deus quer servir-se de Maria na santificação das almas
22. A conduta das três pessoas da Santíssima Trindade, na encarnação e primeira vinda de Jesus Cristo, é a mesma de todos os dias, de um modo visível, na Igreja, e esse procedimento há de perdurar até à consumação dos séculos, na última vinda de Cristo.
23. Deus Pai ajuntou todas as águas e denominou-as mar; reuniu todas as suas graças e chamou-as Maria[1]. Este grande Deus tem um tesouro, um depósito riquíssimo, onde encerrou tudo que há de belo, brilhante, raro e precioso, até seu próprio Filho; e este tesouro imenso é Maria, que os anjos chamam o tesouro do Senhor[2] de cuja plenitude os homens se enriquecem.
24. Deus Filho comunicou a sua Mãe tudo que adquiriu por sua vida e morte: seus méritos infinitos e suas virtudes admiráveis. Fê-la tesoureira de tudo que seu Pai lhe deu em herança; é por ela que Ele aplica seus méritos aos membros do corpo místico, que comunica suas virtudes, e distribui suas graças; é ela o canal misterioso, o aqueduto, pelo qual passam abundante e docemente suas misericórdias.
25. Deus Espírito Santo comunicou a Maria, sua fiel esposa, seus dons inefáveis, escolhendo-a para dispensadora de tudo que Ele possui. Deste modo ela distribui seus dons e suas graças a quem quer, quanto quer, como quer e quando quer, e dom nenhum é concedido aos homens, que não passe por suas mãos virginais. Tal é a vontade de Deus, que tudo tenhamos por Maria e assim será enriquecida, elevada e honrada pelo Altíssimo, aquela que, em toda a vida, quis ser pobre, humilde e escondida até ao nada. Eis a opinião da Igreja e dos Santos Padres[3].
26. Se eu me dirigisse aos espíritos fortes desta época, tudo isso, que digo simplesmente, poderia prová-lo pela Sagrada Escritura, pelos Santos Padres, citando longas passagens em latim e aduzindo os mais fortes argumentos, que o padre Poiré deduz e desenvolve em sua “Tríplice coroa da Santíssima Virgem”. Falo, porém, aos pobres e aos simples que, por serem de boa vontade e terem mais fé que a maior parte dos sábios, creem com mais simplicidade e mérito, e, portanto, contento-me de lhes dizer simplesmente a verdade, sem me preocupar em citar todos os textos latinos, embora mencione alguns, mas sem os rebuscar muito. Continuemos.

***
27. Pois que a graça aperfeiçoa a natureza e a glória aperfeiçoa a graça, é certo que Nosso Senhor continua a ser, no céu, tão Filho de Maria, como o foi na terra. Por conseguinte, ele conserva a submissão e obediência do mais perfeito dos filhos para com a melhor das mães. Cuidemos, porém, de não atribuir a essa dependência o menor abaixamento ou imperfeição em Jesus Cristo. Maria está infinitamente abaixo de seu Filho, que é Deus, e, portanto, não lhe dá ordens como uma mãe terrestre as dá a seu filho. Maria, porque está toda transformada em Deus pela graça e pela glória que, em Deus, transforma todos os santos, não pede, não quer, não faz a menor coisa contrário à eterna e imutável vontade de Deus. Quando se lê, portanto, nos escritos de São Bernardo, São Bernardino, São Boaventura, etc., que no céu e na terra tudo, o próprio Deus, está submisso à Santíssima Virgem[4], deve-se entender que a autoridade, que Deus espontaneamente lhe conferiu, é tão grande que ela parece ter o mesmo poder que Deus, e que suas preces e rogos são tão eficazes que se podem tomar como ordens junto de sua Majestade, e Ele não resiste nunca às súplicas de sua Mãe, porque ela é sempre humilde e conformada à vontade divina.
Se Moisés, pela força de sua oração, conseguiu sustar a cólera de Deus contra os israelitas, e de tal modo que o altíssimo e infinitamente misericordioso Senhor lhe disse que o deixasse encolerizar-se e punir aquele povo rebelde, que devemos pensar, com muito mais razão, da prece da humilde Maria, a digna Mãe de Deus, que tem mais poder junto da Majestade divina, que as preces e intercessões de todos os anjos e santos do céu e da terra?[5]
28. No céu, Maria dá ordens aos anjos e aos bem-aventurados. Para recompensar sua profunda humildade, Deus lhe deu o poder e a missão de povoar de santos os tronos vazios, que os anjos apóstatas abandonaram e perderam por orgulho[6]. E a vontade do Altíssimo, que exalta os humildes (Lc 1,52), é que o céu, a terra e o inferno se curvem, de bom ou mau grado, às ordens da humilde Maria[7], pois Ele a fez soberana do céu e da terra, general de seus exércitos, tesoureira de suas riquezas, dispensadora de suas graças, artífice de suas grandes maravilhas, reparadora do gênero humano, mediadora para os homens, exterminadora dos inimigos de Deus e a fiel companheira de suas grandezas e de seus triunfos.

***
29. Por meio de Maria, Deus Pai quer que aumente sempre o número de seus filhos, até à consumação dos séculos, e diz-lhe estas palavras: In Iacob inhabita – Habita em Jacob (Eclo 24,13), isto é, faze tua morada e residência em meus filhos e predestinados, figurados por Jacob e não nos filhos do demônio e nos réprobos, que Esaú figura.
30. Assim como na geração natural e corporal há um pai e uma mãe, há, na geração sobrenatural, um pai que é Deus e uma mãe, Maria Santíssima. Todos os verdadeiros filhos de Deus e os predestinados têm Deus por pai, e Maria por mãe; e quem não tem Maria por mãe, não tem Deus por pai. Por isso, os réprobos, os hereges, os cismáticos, etc., que odeiam ou olham com desprezo ou indiferença a Santíssima Virgem, não têm Deus por pai, ainda que disto se gloriem, pois não têm Maria por mãe. Se eles a tivessem por Mãe, haviam de amá-la e honrá-la, como um bom e verdadeiro filho ama e honra naturalmente sua mãe que lhe deu a vida.
O sinal mais infalível e indubitável para distinguir um herege, um cismático, um réprobo, de um predestinado, é que o herege e o réprobo ostentam desprezo e indiferença pela Santíssima Virgem[8] e buscam, por suas palavras e exemplos, abertamente ou às escondidas, às vezes sob belos pretextos, diminuir e amesquinhar o culto e o amor à Maria. Ah! Não foi nestes que Deus Pai disse a Maria que fizesse sua morada, pois são filhos de Esaú.

***
31. O desejo de Deus Filho é formar-se e, por assim dizer, encarnar-se todos os dias, por meio de sua Mãe, em seus membros. Ele lhe diz: “In Israel hereditare – Possui tua herança em Israel” (Eclo 24,13), como se dissesse: Deus, meu Pai, deu-me por herança todas as nações da terra, todos os homens bons e maus, predestinados e réprobos. Eu os conduzirei, uns com a vara de ouro, outros com a vara de ferro; serei o pai e advogado de uns, o justo vingador para outros, o juiz de todos; mas vós, minha querida Mãe, só tereis por herança e possessão os predestinados, figurados por Israel. Como sua boa mãe vós lhes dareis a vida, os nutrireis, educareis; e, como sua soberana, os conduzireis, governareis e defendereis.
32. “Um grande número de homens nasceu nela”, diz o Espírito Santo: Homo et homo natus est in ea. Conforme a explicação de alguns Santos Padres o primeiro homem nascido em Maria é o homem-Deus, Jesus Cristo; o segundo é um homem puro, filho de Deus e de Maria por adoção. Se Jesus Cristo, o chefe dos homens, nasceu nela, os predestinados, que são os membros deste chefe, devem também nascer nela, por uma consequência necessária. Não há mãe que dê à luz a cabeça sem os membros ou os membros sem a cabeça: seria uma monstruosidade da natureza. Do mesmo modo, na ordem da graça, a cabeça e os membros nascem da mesma mãe, e, se um membro do corpo místico de Jesus Cristo, isto é, um predestinado, nascesse de outra mãe que Maria, que produziu a cabeça, não seria um predestinado, nem membro de Jesus Cristo, e sim um monstro na ordem da graça.
33. Além disso, pois que Jesus é agora, mais do que nunca, o fruto de Maria, como lhe repetem mil e mil vezes diariamente o céu e a terra: “[...] e bendito é o fruto do vosso ventre”, é certo que Jesus Cristo, para cada homem em particular, que o possui, é tão verdadeiramente o fruto e obra de Maria como para todo o mundo em geral. Deste modo, se qualquer fiel tem Jesus Cristo formado em seu coração, pode atrever-se a dizer: “Mil graças a Maria! este Jesus que eu possuo é, com efeito, seu fruto, e sem ela eu jamais o teria”. Pode-se ainda aplicar-lhe, com mais propriedade que São Paulo aplica a si próprio, as palavras: “Quos iterum parturio, donec formetur Christus in vobis” (Gl 4,19): Dou à luz todos os dias os filhos de Deus, até que Jesus Cristo seja neles formado em toda a plenitude de sua idade. Santo Agostinho, sobrepujando a si mesmo, e tudo o que acabo de dizer, confirma que todos os predestinados, para serem conformes à imagem do Filho de Deus, são, neste mundo, ocultos no seio da Santíssima Virgem, e aí guardados, alimentados, mantidos e engrandecidos por esta boa Mãe, até que ela os dê à glória, depois da morte, que é propriamente o dia de seu nascimento, como qualifica a Igreja a morte dos justos. Ó mistério de graça, que os réprobos desconhecem e os predestinados conhecem muito pouco.

***
34. É vontade de Deus Espírito Santo que nela e por ela se formem eleitos. “In electis meis mitte radices” (Eclo 24,12), lhe diz ele: Minha bem-amada e minha esposa, lança em meus eleitos as raízes de todas as virtudes, a fim de que eles cresçam de virtude em virtude e de graça em graça. Tive tanta complacência em ti, quando vivias na terra, praticando as mais sublimes virtudes, que desejo ainda encontrar-te sobre a terra sem que deixes de estar no céu. Reproduze-te, portanto, em meus eleitos. Que eu veja neles com complacência as raízes de tua fé invencível, de tua humildade profunda, de tua mortificação universal, de tua oração sublime, de tua caridade ardente, de tua firmíssima esperança e de todas as tuas virtudes. És sempre a minha esposa tão fiel, tão pura e tão fecunda como nunca: que tua fé me dê fiéis, que tua pureza me dê virgens, que tua fecundidade me dê eleitos e templos.
35. Quando Maria lança suas raízes em uma alma, maravilhas de graça se produzem, que só ela as pode produzir, pois é a única Virgem fecunda que não teve jamais, nem terá semelhante em pureza e fecundidade.
Maria produziu, com o Espírito Santo, a maior maravilha que existiu e existirá – um Deus-homem; e ela produzirá, por conseguinte, as coisas mais admiráveis que hão de existir nos últimos tempos. A formação e educação dos grandes santos, que aparecerão no fim do mundo, lhe está reservada, pois só esta Virgem singular e milagrosa pode produzir, em união com o Espírito Santo, as obras, singulares e extraordinárias.
36. Quando o Espírito Santo, seu esposo, a encontra numa alma, ele se apodera dessa alma, penetra-a com toda a plenitude, comunicando-se-lhe abundantemente e na medida em que lhe concede sua esposa; e uma das razões por que, hoje em dia, o Espírito Santo não opera, nas almas, maravilhas retumbantes, é não encontrar ele uma união bastante forte entre as almas e sua esposa fiel e inseparável. Digo esposa inseparável porque, depois que este Amor substancial do Pai e do Filho desposou Maria para produzir Jesus Cristo, o chefe dos eleitos, e Jesus Cristo nos eleitos, nunca a repudiou, pois ela tem sido sempre fiel e fecunda.
____________________
1. “Appellavit eam Mariam, quasi mare gratiarum” (S. AN-TONINO. Summa p. IV, tit. 15, cap. 4, § 2).
2. Ipsa est, thesaurus Domini (Idiota, In contemplatione B.M.V.).
3. Cf., entre outros, São Bernardo e São Bernardino de Sena, que São Luís Maria cita
mais adiante (141-142).
4. Cf. adiante a citação (n. 76).
5. SANTO AGOSTINHO. Sermo 208 in Assumpt., n. 12.
6. “Per Mariam ab hominibus Angelorum chori reintegrantur” (SÃO BOAVENTURA. Speculum B.V., lect. XI, § 6).
7. “In nomine tuo omne genu flectatur caelestium, terrestrium et infernorum” (SÃO BOAVENTURA. Psalter, maius B.V., Cantic. instar “Cantici trium puerorum”).
8. “Quicumque vult salvus esse, ante omnia opus est ut teneat de Maria firmam fidem” (SÃO BOAVENTURA. Psalter, maius B.V., Symbol., instar Symboli Athanasii).
 
ARTIGO II - CONSEQUÊNCIAS
 
PRIMEIRA CONSEQUÊNCIA. – Maria é a Rainha dos corações
37. Do que ficou dito, deve-se concluir evidentemente que:
Primeiro, Maria recebeu de Deus um grande domínio sobre as almas dos eleitos; pois ela não pode estabelecer neles sua residência, como Deus Pai lhe ordenou; não pode formá-los, nutri-los, fazê-los nascer para a vida eterna, como sua mãe, possuí-los como sua herança e partilha, formá-los em Jesus Cristo e Jesus Cristo neles; não pode implantar em seus corações as raízes de suas virtudes, e ser a companheira inseparável do Espírito Santo em todos os seus trabalhos de graça; não pode, repito, fazer todas estas coisas, se não tiver direito e domínio sobre suas almas, por uma graça singular do Altíssimo. E esta graça, que lhe deu autoridade sobre o Filho único e natural de Deus, lhe foi concedida também sobre seus filhos adotivos, não só quanto ao corpo, o que seria pouco, mas também quanto à alma.
38. Maria é a Rainha do céu e da terra, pela graça, como Jesus é o Rei por natureza e conquista. Ora, como o reino de Jesus Cristo compreende principalmente o coração ou o interior do homem, conforme a palavra: “O reino de Deus está no meio de vós” (Lc 17,21), o reino da Santíssima Virgem está principalmente no interior do homem, isto é, em sua alma, e é principalmente nas almas que ela é mais glorificada com seu Filho, do que em todas as criaturas visíveis, e podemos chamá-la com os santos a Rainha dos corações.
 
SEGUNDA CONSEQUÊNCIA. – Maria é necessária aos homens para chegarem ao seu último fim
39. Em segundo lugar, é preciso concluir que a Santíssima Virgem, sendo necessária a Deus, duma necessidade chamada hipotética, devido à sua vontade, é muito mais necessária aos homens para chegarem a seu último fim. Não se confunda, portanto, a devoção à Santíssima Virgem com a devoção aos outros santos, como se não fosse mais necessária que a destes, e apenas de superrogação.

§ I. A devoção à santa Virgem é necessária a todos os homens para conseguirem a salvação.
40. O douto e piedoso Suárez, da Companhia de Jesus, o sábio e devoto Justo Lípsio, doutor da universidade de Lovaina, e muitos outros, provaram incontestavelmente, apoiados na opinião dos Santos Padres, entre outros, Santo Agostinho, Santo Efrém, diácono de Edessa, São Cirilo de Jerusalém, São Germano de Constantinopla, São João de Damasco, Santo Anselmo, São Bernardo, São Bernardino, Santo Tomás e São Boaventura, que a devoção à Santíssima Virgem é necessária à salvação, e que é um sinal infalível de condenação – opinião do próprio Ecolampádio e vários outros hereges, – não ter estima e amor à Santíssima Virgem. Ao contrário, é indício certo de predestinação ser-lhe inteira e verdadeiramente devotado[1].
41. As figuras e palavras do Antigo e do Novo Testamento o provam; a opinião e os exemplos dos santos o confirmam; a razão e a experiência o ensinam e demonstram; o próprio demônio e seus asseclas, premidos pela força da verdade, viram-se muitas vezes constrangidos a confessá-lo a seu pesar. De todas as passagens dos Santos Padres e doutores, que compilei para provar esta verdade, cito apenas uma, para não me alongar: “Tibi devotum esse, est arma quaedam salutis quae Deus his dat quos vult salvos fieri...” (São João Damasceno) – Ser vosso devoto, ó Virgem Santíssima, é uma arma de salvação que Deus dá, àqueles que quer salvar.
42. Eu poderia repetir aqui várias histórias que provam o que afirmo. Entre outras, primeiro, aquela que vem narrada nas crônicas de São Francisco, em que se conta que o santo viu, em êxtase, uma escada enorme, em cujo topo, apoiado no céu, avultava a Santíssima Virgem. E o santo compreendeu que aquela escada ele devia subir para chegar ao céu; segundo, a outra, narrada nas crônicas de São Domingos: Quando o santo pregava o rosário nas proximidades de Carcassona, quinze mil demônios, que possuíam a alma de um infeliz herege, foram obrigados, por ordem da Santíssima Virgem, a confessar muitas verdades grandes e consoladoras, referentes à devoção a Maria. E eles, para própria confusão, o fizeram com tanto ardor e clareza que não se pode ler essa autêntica narração e o panegírico, que o demônio, embora a contragosto, fez da devoção mariana, sem derramar lágrimas de alegria, ainda que pouco devoto se seja da Santíssima Virgem.
____________________
1. A verdadeira devoção à Santíssima Virgem consiste em se lhe devotar e entregar. O culto de dulia é a dependência, a servidão (S. TH. Sum. Theol. 2-2, q. 103, a. 3, in fine corp.); o culto de hiperdulia consiste numa dependência mais perfeita à Santíssima Virgem, ou, em outras palavras, na escravidão preconizada por São Luís Maria Montfort.

§ II. A devoção à Santíssima Virgem é mais necessária ainda àqueles chamados a uma perfeição particular.
43. Se a devoção à Virgem Santíssima é necessária a todos os homens para conseguirem simplesmente a salvação, é ainda mais para aqueles que são chamados a uma perfeição particular; nem creio que uma pessoa possa adquirir uma união íntima com Nosso Senhor e uma perfeita fidelidade ao Espírito Santo, sem uma grande união com a Santíssima Virgem e uma grande dependência de seu socorro.
44. Só Maria achou graça diante de Deus (Lc 1,30) sem auxílio de qualquer outra criatura. E todos, depois dela, que acharam graça diante de Deus, acharam-na por intermédio dela e é só por ela que acharão graça os que ainda virão[1]. Maria era cheia de graça quando o arcanjo Gabriel a saudou (Lc 1,28) e a graça superabundou quando o Espírito Santo a cobriu com sua sombra inefável (Lc 1,35). E de tal modo ela aumentou essa dupla plenitude, de dia a dia, de momento a momento, que chegou a um ponto imenso e inconcebível de graça, de sorte que o Altíssimo a fez tesoureira de todos os seus bens, dispensadora de suas graças, para enobrecer, elevar e enriquecer a quem ela quiser, para fazer entrar quem ela quiser no caminho estreito do céu, para deixar passar, apesar de tudo, quem ela quiser pela porta estreita da vida eterna, e para dar o trono, o cetro, e a coroa de rei a quem ela quiser. Jesus é em toda parte e sempre o fruto e o Filho de Maria; e Maria é em toda parte a verdadeira árvore que dá o fruto da vida, e a verdadeira mãe que o produz[2].
45. À Maria somente Deus confiou as chaves dos celeiros do divino amor, e o poder de entrar nas vias mais sublimes e mais secretas da perfeição, e de nesses caminhos fazer entrar os outros. Só Maria dá aos miseráveis filhos de Eva infiel a entrada no paraíso terrestre, para aí espairecerem agradavelmente com Deus, para aí, com segurança, se ocultarem de seus inimigos, para aí, sem mais receio da morte, se alimentarem deliciosamente do fruto das árvores da vida e da ciência do bem e do mal, e para sorverem longamente as águas celestes desta bela fonte que jorra com tanta abundância; ou, melhor, como ela mesma é esse paraíso terrestre ou essa terra virgem e abençoada, da qual Adão e Eva, pecadores, foram expulsos, ela só dá entrada àqueles, que lhe apraz deixar entrar, e para torná-los santos.
46. Todos os ricos do povo, para me servir da expressão do Espírito Santo (S1 44,13), suplicarão, conforme a explicação de São Bernardo, vossa face em todos os séculos, e particularmente no fim do mundo; isto é, os mais santos, as almas mais ricas em graça e em virtudes serão as mais assíduas em rogar à Santíssima Virgem que lhes esteja sempre presente, como seu perfeito modelo a imitar, e que as socorra com seu auxílio poderoso.
47. Disse que isto aconteceria particularmente no fim do mundo e em breve, porque o Altíssimo e sua santa Mãe devem suscitar grandes santos, de uma santidade tal que sobrepujarão a maior parte dos santos, como os cedros do Líbano se avantajam às pequenas árvores em redor, segundo revelação feita a uma santa alma.
48. Estas grandes almas, cheias de graça e de zelo, serão escolhidas em contraposição aos inimigos de Deus a borbulhar em todos os cantos, e elas serão especialmente devotas da Santíssima Virgem, esclarecidas por sua luz, alimentadas de seu leite, conduzidas por seu espírito, sustentadas por seu braço e guardadas sob sua proteção, de tal modo que combaterão com uma das mãos e edificarão com a outra (cf. Ne 4,17). Com a direita combaterão, derrubarão, esmagarão os hereges com suas heresias, os cismáticos com seus cismas, os idólatras com suas idolatrias, e os ímpios com suas impiedades; e com a esquerda edificarão o templo do verdadeiro Salomão e a cidade mística de Deus, isto é, a Santíssima Virgem que os Santos Padres chamam “o templo de Salomão”[3] e “a cidade de Deus”[4]. Por suas palavras e por seu exemplo, arrastarão todo o mundo à verdadeira devoção e isto lhes há de atrair inimigos sem conta, mas também vitórias inumeráveis e glória para o único Deus. É o que Deus revelou a São Vicente Ferrer, grande apóstolo de seu século, e que se encontra assinalado em uma de suas obras.
O mesmo parece ter predito o Salmo 58 (14,15), em que se lê: “Et scient quia Deus dominabitur Jacob et finium terrae; convertentur ad vesperam, et famem patientur ut canes, et circuibunt civitatem – E saberão que Deus reinará sobre Jacob, e até aos confins da terra; voltarão à tarde, e padecerão fome como cães, e rodearão a cidade, em busca do que comer”. Esta cidade que os homens encontrarão no fim do mundo para se converterem e saciarem a sua fome de justiça, é a Santíssima Virgem, que o Espírito Santo denomina “cidade de Deus” (Sl 86,3).
____________________
1. “Necesse est ut qui vult a Deo gratiam impetrare, ad hanc mediatricem accedat devotissimo corde” (SÃO BOAVENTURA. Sermo in B.V.M.). Cf. tb. SÃO BERNARDO. De aquaeductu, n. 7.
2. Cf. acima, n. 33.
3. “Templum Salomonis”. Idiota, De B.V., p. XVI, contemplação 7.
4. “Civitas Dei” (SANTO AGOSTINHO. Enarrat in Ps. 142, n. 3).

§ III. A devoção à Santíssima Virgem será especialmente necessária nesses últimos tempos.
1. Papel especial de Maria nos últimos tempos
49. Por meio de Maria começou a salvação do mundo e é por Maria que deve ser consumada. Na primeira vinda de Jesus Cristo, Maria quase não apareceu, para que os homens, ainda insuficientemente instruídos e esclarecidos sobre a pessoa de seu Filho, não se lhe apegassem demais e grosseiramente, afastando-se, assim, da verdade. E isto teria aparentemente acontecido devido aos encantos admiráveis com que o próprio Deus lhe havia ornado a aparência exterior. São Dionísio o Areopagita o confirma numa página que nos deixou[1] e em que diz que, quando a viu, tê-la-ia tomado por uma divindade, tal o encanto que emanava de sua pessoa de beleza incomparável, se a fé, em que estava bem confirmado, não lhe ensinasse o contrário. Mas, na segunda vinda de Jesus Cristo, Maria deverá ser conhecida e revelada pelo Espírito Santo, a fim de que por ela seja Jesus Cristo conhecido, amado e servido, pois já não subsistem as razões que levaram o Espírito Santo a ocultar sua esposa durante a vida e a revelá-la só pouco depois da pregação do Evangelho.

***
50. Deus quer, portanto, nesses últimos tempos, revelar-nos e manifestar Maria, a obra-prima de suas mãos:
1º) Porque ela se ocultou neste mundo, e, por sua humildade profunda, colocou-se abaixo do pó, obtendo de Deus, dos apóstolos e evangelistas não ser quase mencionada.
2º) Porque, sendo a obra-prima das mãos de Deus, tanto aqui em baixo, pela graça, como no céu, pela glória, Ele quer que, por ela, os viventes o louvem e glorifiquem sobre a terra.
3°) Visto ser ela a aurora que precede e anuncia o Sol da justiça, Jesus Cristo, deve ser conhecida e notada para que Jesus Cristo o seja.
4º) Pois que é a via pela qual Jesus Cristo nos veio a primeira vez, ela o será ainda na segunda vinda, embora de modo diferente.
5º) Pois que é o meio seguro e o caminho reto e imaculado para se ir a Jesus Cristo e encontrá-lo plenamente, é por ela que as almas, chamadas a brilhar em santidade, devem encontrá-lo. Quem encontrar Maria encontrará a vida (cf. Pr 8,35), isto é, Jesus Cristo, que é o caminho, a verdade e a vida (Jo 14,6). Mas não pode encontrar Maria quem não a procura; não pode buscá-la quem não a conhece, e ninguém procura nem deseja o que não conhece. É preciso, portanto, que Maria seja, mais do que nunca, conhecida, para maior conhecimento e maior glória da Santíssima Trindade.
6º) Nesses últimos tempos, Maria deve brilhar, como jamais brilhou, em misericórdia, em força e graça. Em misericórdia para reconduzir e receber amorosamente os pobres pecadores e desviados que se converterão e voltarão ao seio da Igreja Católica; em força contra os inimigos de Deus, os idólatras, cismáticos, maometanos, judeus e ímpios empedernidos, que se revoltarão terrivelmente para seduzir e fazer cair, com promessas e ameaças, todos os que lhes forem contrários. Deve, enfim, resplandecer em graça, para animar e sustentar os valentes soldados e fiéis de Jesus Cristo que pugnarão por seus interesses.
7º) Maria deve ser, enfim, terrível para o demônio e seus sequazes como um exército em linha de batalha, principalmente nesses últimos tempos, pois o demônio, sabendo bem que pouco tempo lhe resta para perder as almas, redobra cada dia seus esforços e ataques. Suscitará, em breve, perseguições cruéis e terríveis emboscadas aos servidores fiéis e aos verdadeiros filhos de Maria, que mais trabalho lhe dão para vencer.

***
51. É principalmente a estas últimas e cruéis perseguições do demônio, que se multiplicarão todos os dias até ao reino do Anti-cristo, que se refere aquela primeira e célebre predição e maldição que Deus lançou contra a serpente no paraíso terrestre. Vem a propósito explicá-la aqui, para glória da Santíssima Virgem, salvação de seus filhos e confusão do demônio.
“Inimicitias ponam inter te et mulierem, et semen tuum et semen illius; ipsa conteret caput tuum, et tu insidiaberis calcaneo eius” (Gn 3,15): Porei inimizades entre ti e a mulher, e entre a tua posteridade e a posteridade dela. Ela te pisará a cabeça, e tu armarás traições ao seu calcanhar.
52. Uma única inimizade Deus promoveu e estabeleceu, inimizade irreconciliável, que não só há de durar, mas aumentar até ao fim: a inimizade entre Maria, sua digna Mãe, e o demônio; entre os filhos e servos da Santíssima Virgem e os filhos e sequazes de Lúcifer; de modo que Maria é a mais terrível inimiga que Deus armou contra o demônio. Ele lhe deu até, desde o paraíso, tanto ódio a esse amaldiçoado inimigo de Deus, tanta clarividência para descobrir a malícia dessa velha serpente, tanta força para vencer, esmagar e aniquilar esse ímpio orgulhoso, que o temor que Maria inspira ao demônio é maior que o que lhe inspiram todos os anjos e homens e, em certo sentido, o próprio Deus. Não que a ira, o ódio, o poder de Deus não sejam infinitamente maiores que os da Santíssima Virgem, pois as perfeições de Maria são limitadas, mas, em primeiro lugar, Satanás, porque é orgulhoso, sofre incomparavelmente mais, por ser vencido e punido pela pequena e humilde escrava de Deus, cuja humildade o humilha mais que o poder divino; segundo, porque Deus concedeu a Maria tão grande poder sobre os demônios, que, como muitas vezes se viram obrigados a confessar, pela boca dos possessos, infunde-lhes mais temor um só de seus suspiros por uma alma, que as orações de todos os santos; e uma só de suas ameaças que todos os outros tormentos.
53. O que Lúcifer perdeu por orgulho, Maria ganhou por humildade. O que Eva condenou e perdeu pela desobediência, salvou-o Maria pela obediência. Eva, obedecendo à serpente, perdeu consigo todos os seus filhos e os entregou ao poder infernal; Maria, por sua perfeita fidelidade a Deus, salvou consigo todos os seus filhos e servos e os consagrou a Deus.
54. Deus não pôs somente inimizade, mas inimizades, e não somente entre Maria e o demônio, mas também entre a posteridade da Santíssima Virgem e a posteridade do demônio. Quer dizer, Deus estabeleceu inimizades, antipatias e ódios secretos entre os verdadeiros filhos e servos da Santíssima Virgem e os filhos e escravos do demônio. Não há entre eles a menor sombra de amor, nem correspondência íntima existe entre uns e outros. Os filhos de Belial, os escravos de Satã, os amigos do mundo (pois é a mesma coisa) sempre perseguiram até hoje e perseguirão no futuro aqueles que pertencem à Santíssima Virgem, como outrora Caim perseguiu seu irmão Abel, e Esaú, seu irmão Jacob, figurando os réprobos e os predestinados. Mas a humilde Maria será sempre vitoriosa na luta contra esse orgulhoso, e tão grande será a vitória final que ela chegará ao ponto de esmagar-lhe a cabeça, sede de todo o orgulho. Ela descobrirá sempre sua malícia de serpente, desvendará suas tramas infernais, desfará seus conselhos diabólicos, e até ao fim dos tempos garantirá seus fiéis servidores contra as garras de tão cruel inimigo.
Mas o poder de Maria sobre todos os demônios há de patentear-se com mais intensidade, nos últimos tempos, quando Satanás começar a armar insídias ao seu calcanhar, isto é, aos seus humildes servos, aos seus pobres filhos, os quais ela suscitará para combater o príncipe das trevas. Eles serão pequenos e pobres aos olhos do mundo, e rebaixados diante de todos como o calcanhar, calcados e perseguidos como o calcanhar em comparação com os outros membros do corpo. Mas, em troca, eles serão ricos em graças de Deus, graças que Maria lhes distribuirá abundantemente. Serão grandes e notáveis em santidade diante de Deus, superiores a toda criatura, por seu zelo ativo, e tão fortemente amparados pelo poder divino, que, com a humildade de seu calcanhar e em união com Maria, esmagarão a cabeça do demônio e promoverão o triunfo de Jesus Cristo.

2. Os apóstolos dos últimos tempos
55. Deus quer, finalmente, que sua Mãe Santíssima seja agora mais conhecida, mais amada, mais honrada, como jamais o foi. E isto acontecerá, sem dúvida, se os predestinados puserem em uso, com o auxílio do Espírito Santo, a prática interior e perfeita que lhes indico a seguir. E, se a observarem com fidelidade, verão, então, claramente, quando lho permite a fé, esta bela estrela do mar, e chegarão a bom porto, tendo vencido as tempestades e os piratas. Conhecerão as grandezas desta soberana e se consagrarão inteiramente a seu serviço, como súditos e escravos de amor. Experimentarão suas doçuras e bondades maternais e amá-la-ão ternamente como seus filhos estremecidos. Conhecerão as misericórdias de que ela é cheia e a necessidade que têm de seu auxílio, e hão de recorrer a ela em todas as circunstâncias como à sua querida advogada e medianeira junto de Jesus Cristo. Reconhecerão que ela é o meio mais seguro, mais fácil, mais rápido e mais perfeito de chegar a Jesus Cristo, e se lhe entregarão de corpo e alma, sem restrições, para assim também pertencerem a Jesus Cristo.
56. Mas quem serão esses servidores, esses escravos e filhos de Maria?
Serão ministros do Senhor ardendo em chamas abrasadoras, que lançarão por toda parte o fogo do divino amor.
Serão “sicut sagittae in manu potentis” (S1 126,4) – flechas agudas nas mãos de Maria todo-poderosa, pronta a traspassar seus inimigos.
Serão filhos de Levi, bem purificados no fogo das grandes tribulações, “e bem colados a Deus[2], que levarão o ouro do amor no coração, o incenso da oração no espírito, e a mirra da mortificação no corpo e que serão em toda parte para os pobres e os pequenos o bom odor de Jesus Cristo, e para os grandes, os ricos e os orgulhosos do mundo, um odor repugnante de morte.
57. Serão nuvens trovejantes esvoaçando pelo ar ao menor sopro do Espírito Santo, que, sem apegar-se a coisa alguma nem se admirar de nada, nem se preocupar, derramarão a chuva da palavra de Deus e da vida eterna. Trovejarão contra o pecado, e lançarão brados contra o mundo, fustigarão o demônio e seus asseclas, e, para a vida ou para a morte, traspassarão lado a lado, com a espada de dois gumes da palavra de Deus (cf. Ef 6,17), todos aqueles a quem forem enviados da parte do Altíssimo.
58. Serão verdadeiros apóstolos dos últimos tempos, e o Senhor das virtudes lhes dará a palavra e a força para fazer maravilhas e alcançar vitórias gloriosas sobre seus inimigos; dormirão sem ouro nem prata, e, o que é melhor, sem preocupações, no meio dos outros padres, eclesiásticos e clérigos, “inter medios cleros” (S1 67,14) e, no entanto, possuirão as asas prateadas da pomba, para voar, com a pura intenção da glória de Deus e da salvação das almas, aonde os chamar o Espírito Santo, deixando após si, nos lugares em que pregarem, o ouro da caridade que é o cumprimento da lei (Rm 13,10).
59. Sabemos, enfim, que serão verdadeiros discípulos de Jesus Cristo, andando nas pegadas de sua pobreza e humildade, do desprezo do mundo e caridade, ensinando o caminho estreito de Deus na pura verdade, conforme o santo Evangelho, e não pelas máximas do mundo, sem se preocupar nem fazer acepção de pessoa alguma, sem poupar, escutar ou temer nenhum mortal, por poderoso que seja. Terão na boca a espada de dois gumes da palavra de Deus; em seus ombros ostentarão o estandarte ensanguentado da cruz, na direita, o crucifixo, na esquerda o rosário, no coração os nomes sagrados de Jesus e de Maria, e, em toda a sua conduta, a modéstia e a mortificação de Jesus Cristo.
Eis os grandes homens que hão de vir, suscitados por Maria, em obediência às ordens do Altíssimo, para que o seu império se estenda sobre o império dos ímpios, dos idólatras e dos maometanos. Quando e como acontecerá?... Só Deus o sabe!... Quanto a nós, cumpre calar-nos, orar, suspirar e esperar: Exspectans exspectavi (S1 39,2).
____________________
1. Testor qui aderat in Virgine Deum, si tua doctrina non me docuisset, hanc verum Deum esse credidissem (Ep. ad s. Paulum).
2. Tradução enérgica da palavra de São Paulo (1Cor 6,17): “Qui adhaeret Domino”.
 
Capítulo II. Verdades fundamentais da devoção à Santíssima Virgem
60. Até aqui dissemos alguma coisa sobre a necessidade que temos da devoção à Santíssima Virgem. Com o auxílio de Deus, direi agora em que consiste esta devoção, expondo, porém, antes, algumas verdades fundamentais, que esclarecerão esta grande e sólida devoção que quero manifestar.
 
ARTIGO I - Jesus Cristo é o fim último da devoção à Santíssima Virgem
61. Primeira verdade, – Jesus Cristo, nosso Salvador, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, deve ser o fim último de todas as nossas devoções; de outro modo, elas serão falsas e enganosas. Jesus Cristo é o alfa e o ômega[1], o princípio e o fim de todas as coisas. Nós só trabalhamos, como diz o apóstolo, para tornar todo homem perfeito em Jesus Cristo, pois é em Jesus Cristo que habita toda a plenitude da Divindade e todas as outras plenitudes de graças, de virtudes, de perfeições; porque nele somente fomos abençoados de toda a bênção espiritual; porque é nosso único mestre que deve ensinar-nos, nosso único Senhor de quem devemos depender, nosso único chefe ao qual devemos estar unidos, nosso único modelo, com o qual devemos conformar-nos, nosso único médico que nos há de curar, nosso único pastor que nos há de alimentar, nosso único caminho que devemos trilhar, nossa única verdade que devemos crer, nossa única vida que nos há de vivificar, e nosso tudo em todas as coisas, que deve nos bastar. Abaixo do céu nenhum outro nome foi dado aos homens, pelo qual devamos ser salvos. Deus não nos deu outro fundamento para nossa salvação, nossa perfeição e nossa glória, senão Jesus Cristo. Todo edifício cuja base não assentar sobre esta pedra firme, estará construído sobre areia movediça, e ruirá fatalmente, mais cedo ou mais tarde. Todo fiel que não está unido a ele, como um galho ao tronco da videira, cairá e secará, e será por fim atirado ao fogo. Fora dele tudo é ilusão, mentira, iniquidade, inutilidade, morte e danação. Se estamos, porém, em Jesus Cristo e Jesus Cristo em nós, não temos danação a temer; nem os anjos do céu, nem os homens da terra, nem criatura alguma nos pode embaraçar, pois não pode separar-nos da caridade de Deus que está em Jesus Cristo. Por Jesus Cristo, com Jesus Cristo, em Jesus Cristo, podemos tudo: render toda a honra e glória ao Pai, em unidade do Espírito Santo e tornar-nos perfeitos e ser para nosso próximo um bom odor de vida eterna.
62. Se estabelecermos, portanto, a sólida devoção à Santíssima Virgem, teremos contribuído para estabelecer com mais perfeição a devoção a Jesus Cristo, teremos proporcionado um meio fácil e seguro de achar Jesus Cristo. Se a devoção à Santíssima Virgem nos afastasse de Jesus Cristo, seria preciso rejeitá-la como uma ilusão do demônio. Mas é tão o contrário, que, como já fiz ver e farei ver, ainda, nas páginas seguintes, esta devoção só nos é necessária para encontrar Jesus Cristo, amá-lo ternamente e fielmente servi-lo.

***
63. Volto-me, aqui, um momento, para vós, ó Jesus, a fim de queixar-me amorosamente à vossa divina majestade, de que a maior parte dos cristãos, mesmo os mais instruídos, desconhecem a ligação imprescindível que existe entre Vós e vossa Mãe Santíssima. Vós, Senhor, estais sempre com Maria, e Maria sempre convosco, nem pode estar sem Vós; doutro modo, ela deixaria de ser o que é; e de tal maneira está ela transformada em Vós pela graça, que já não vive, já não existe; sois Vós, meu Jesus, que viveis e reinais nela, mais perfeitamente que em todos os anjos e bem-aventurados. Ah! se conhecêssemos a glória e o amor que recebeis nesta admirável criatura, bem diferentes seriam os nossos sentimentos a respeito de Vós e dela. Maria está tão intimamente unida a Vós que mais fácil seria separar do sol a luz, e do fogo o calor; digo mais: com mais facilidade se separariam de Vós os anjos e os santos que a divina Mãe, pois que ela vos ama com mais ardor e vos glorifica com mais perfeição que todas as vossas outras criaturas juntas.
64. Depois disto, meu amável Mestre, não é triste e lamentável ver a ignorância e as trevas em que jazem todos os homens na terra, a respeito de vossa Mãe Santíssima? Não falo dos idólatras e pagãos, que, não vos conhecendo, também não se importam de conhecê-la; nem falo dos hereges e cismáticos, que não têm a peito ser devotos de vossa Mãe Santíssima, pois estão separados de Vós e de vossa santa Igreja; falo, porém, dos cristãos católicos, e mesmo de doutores entre os católicos[2] que exercem a profissão de ensinar aos outros a verdade, e, no entanto, não vos conhecem nem a vossa Mãe Santíssima, a não ser de um modo especulativo, seco, estéril e indiferente. Estes senhores raras vezes falam de Maria e da devoção que se lhe deve ter, porque, dizem, receiam que se abuse dessa devoção e que se vos ofenda, honrando excessivamente vossa Mãe Santíssima. Se veem ou ouvem algum devoto da Santíssima Virgem falar muitas vezes, dum modo terno, forte e persuasivo, da devoção a esta boa Mãe, como de um meio seguro e sem ilusão, dum caminho curto e sem perigo, duma via imaculada e sem imperfeição, e dum segredo maravilhoso para chegar a Vós e vos amar perfeitamente, clamam contra ele, e lhe apresentam mil razões falsas, para provar-lhe que não é necessário falar tanto a respeito da Santíssima Virgem, que há muito abuso nessa devoção, que é preciso empenhar-se em destruir, e aplicar-se em falar sobre Vós em vez de favorecer a devoção à Virgem Maria, a quem o povo já ama suficientemente.
Às vezes metem-se a falar da devoção à vossa Mãe Santíssima, não, porém, para assentá-la e propagá-la, e sim para destruir os abusos que dela se fazem. Estes senhores são, no entanto, desprovidos de piedade, e não têm por Vós sincera devoção, pois que não a têm a Maria. Consideram o rosário, o escapulário, o terço, como devoções de mulheres, próprias de ignorantes, sem as quais se pode obter muito bem a salvação. E se lhes cai nas mãos algum devoto da Virgem Santíssima, que recita o seu terço ou pratica qualquer outra devoção mariana, mudam-lhe em pouco tempo o espírito e o coração: em lugar do terço lhe aconselham recitar os sete salmos; em vez da devoção à Santíssima Virgem aconselham a devoção a Jesus Cristo.
Ó meu amável Jesus, terá essa gente o vosso espírito? Será possível que vos agradem, agindo desse modo? Poderá alguém agradar-vos sem fazer todos os esforços para agradar a Maria, por medo de vos desagradar? A devoção à vossa Mãe impede a vossa? Atribuir-se-á ela as honras que lhe damos? Formará ela um partido diverso do vosso? É ela, acaso, uma estrangeira sem a menor ligação convosco? É desagradar-vos querer agradar- lhe? Separamo-nos, talvez, ou nos afastamos de vosso amor, se nos damos a ela e a amamos?
65. Entretanto, meu amável Mestre, a maior parte dos sábios, em castigo de seu orgulho, não se afastariam mais da devoção à Santíssima Virgem, nem a olhariam com mais indiferença, se tudo o que acabo de dizer fosse verdade. Guardai-me, Senhor, guardai-me de seus sentimentos e de suas práticas, e dai-me uma parte dos sentimentos de reconhecimento, de estima, de respeito e de amor, que tendes para com vossa Mãe Santíssima, a fim de que eu vos ame e glorifique, na medida em que vos imitar e mais de perto vos seguir.
66. Concedei-me a graça de louvar dignamente vossa Mãe Santíssima, como se nada fosse o que, até aqui, disse em sua honra. “Fac me digne tuam Matrem collaudare”, a despeito de todos os seus inimigos, que são os vossos, e que eu lhes repita com os santos: “Non praesumat aliquis Deum se habere propitium qui benedictam Matrem offensam habuerit. – Não presuma receber a graça de Deus, quem ofende sua Mãe Santíssima”.
67. E, para alcançar de vossa misericórdia uma verdadeira devoção a vossa Mãe Santíssima, e inspirá-la a toda a terra, fazei que eu vos ame ardentemente, e recebei para este fim a súplica ardente que vos dirijo com Santo Agostinho[3] e vossos verdadeiros amigos:
“Vós sois, ó Jesus, o Cristo, meu Pai santo, meu Deus misericordioso, meu Rei infinitamente grande; sois meu bom pastor, meu único mestre, meu auxílio cheio de bondade, meu bem-amado de uma beleza maravilhosa, meu pão vivo, meu sacerdote eterno, meu guia para a pátria, minha verdadeira luz, minha santa doçura, meu reto caminho, sapiência minha preclara, minha pura simplicidade, minha paz e concórdia; sois, enfim, toda a minha salvaguarda, minha herança preciosa, minha eterna salvação...
Ó Jesus Cristo, amável Senhor, por que, em toda a minha vida, amei, por que desejei outra coisa senão Vós? Onde estava eu quando não pensava em Vós? Ah! que, pelo menos, a partir deste momento meu coração só deseje a Vós e por Vós se abrase, Senhor Jesus! Desejos de minha alma, correi, que já bastante tardastes; apressai-vos para o fim a que aspirais; procurai em verdade aquele que procurais. Ó Jesus anátema seja quem não vos ama. Aquele que não vos ama seja repleto de amarguras. Ó doce Jesus, sede o amor, as delícias, a admiração de todo coração dignamente consagrado à vossa glória. Deus de meu coração e minha partilha, Jesus Cristo, que em Vós meu coração desfaleça, e sede Vós mesmo a minha vida. Acenda-se em minha alma a brasa ardente de vosso amor e se converta num incêndio todo divino, a arder para sempre no altar de meu coração; que inflame o íntimo do meu ser, e abrase o âmago de minha alma; para que no dia de minha morte eu apareça diante de vós, inteiramente consumido em vosso amor... Amém”.
Quis transcrever no original esta oração admirável de Santo Agostinho para que assim a possam recitar as pessoas que entendem latim. Recitemo-la todos os dias para pedir o amor de Jesus, que procuramos por intermédio da Santíssima Virgem.
____________________
1. As páginas eloquentes que seguem são tiradas quase exclusivamente da Sagrada Escritura. Cf., por exemplo, Ap 1,8; Cl 2,9; Mt 23,8.10; Jo 13,13; 1Cor 8,6; Cl 1,18; Jo 13,15; 10,16; 14.6; At 9,12; 1Cor 3,11; Mt 7,26-27; Jo 15,6; Rm 8,38-39; etc.
2. São Luís Maria escrevia numa época em que o jansenismo, adversário da devoção à Santíssima Virgem (cf. n. 93), contava adeptos entre homens de nomeada.
3. Meditationum lib. I, cap. XVIII, n. 2 (inter opera S. Augustini).
 
ARTIGO II - Pertencemos a Jesus Cristo e a Maria na qualidade de escravos
68. Segunda verdade. – Do que Jesus é para nós, concluímos que não nos pertencemos, como diz o apóstolo (1Cor 6,19), e sim a Ele, inteiramente, como seus membros e seus escravos, comprados que fomos por um preço infinitamente caro, o preço de seu sangue. Antes do batismo o demônio nos possuía como escravos, e o batismo nos transformou em escravos de Jesus Cristo e só devemos viver, trabalhar e morrer para produzir frutos para o homem-Deus (Rm 7,4), glorificá-lo em nosso corpo e fazê-lo reinar em nossa alma, pois somos sua conquista, seu povo adquirido, sua herança. Pelo mesmo motivo o Espírito Santo nos compara[1]:
1º) a árvores plantadas ao longo das águas da graça, nos campos da Igreja, árvores que devem dar seus frutos no tempo adequado;
2º) aos galhos de uma videira de que Jesus Cristo é o tronco, e que devem produzir boas uvas;
3º) a um rebanho cujo pastor é Jesus, e esse rebanho deve multiplicar-se e dar leite;
4º) a uma boa terra de que Deus é o lavrador, e na qual a semente se multiplica, rendendo trinta, sessenta, cem vezes mais. Jesus amaldiçoou a figueira estéril (Mt 21,19) e declarou condenado o servo inútil que não fizera valer o seu talento (Mt 25,24-30). Tudo isso nos prova que Jesus Cristo quer receber alguns frutos de nossas mesquinhas pessoas: quer receber nossas boas obras, porque as boas obras lhe pertencem exclusivamente: “Creati in operibus bonis in Christo Iesu – Criados em Jesus Cristo para boas ações” (Ef 2,10). Essas palavras do Espírito Santo mostram que Jesus Cristo é o único fim de todas as nossas boas obras, e que devemos servi-lo não somente como servidores assalariados, mas como escravos de amor. Explico-me.

***
69. Há duas maneiras, aqui na terra, de alguém pertencer a outrem e de depender de sua autoridade. São a simples servidão e a escravidão, donde a diferença que estabelecemos entre servo e escravo.
Pela servidão, comum entre os cristãos, um homem se põe a serviço de outro por um certo tempo, recebendo determinada quantia ou recompensa.
Pela escravidão, um homem depende inteiramente de outro durante toda a vida, e deve servir a seu senhor, sem esperar salário nem recompensa alguma, como um dos animais sobre que o dono tem direito de vida e morte.
70. Há três espécies de escravidão[2]: por natureza, por constrangimento e por livre vontade. Por natureza, todas as criaturas são escravas de Deus: “Domini est terra et plenitudo eius” (S1 23, 1). Os demônios e os réprobos são escravos por constrangimento; e os justos e os santos o são por livre e espontânea vontade. A escravidão voluntária é a mais perfeita, a mais gloriosa aos olhos de Deus, que olha o coração (1Rs 16,7), que pede o coração (Pr 23,26) e que é chamado o Deus do coração (Sl 72,26) ou da vontade amorosa, porque, por esta escravidão, escolhe-se, sobre todas as coisas, a Deus e seu serviço, ainda quando não o obriga a natureza.
71. A diferença entre um servo e um escravo é total:
1º) Um servo não dá a seu patrão tudo o que é, tudo o que possui ou pode adquirir por outrem ou por si mesmo; mas um escravo se dá integralmente a seu senhor, com tudo o que possui ou possa adquirir, sem nenhuma exceção.
2º) O servo exige salário pelos serviços que presta a seu patrão; o escravo, porém, nada pode exigir, seja qual for a assiduidade, a habilidade, a força que empregue no trabalho.
3º) O servo pode deixar o patrão quando quiser, ou ao menos quando expirar o tempo de serviço, mas o escravo não tem esse direito.
4º) O patrão não tem sobre o servo direito algum de vida e morte, de modo que, se o matasse como mata um de seus animais de carga, cometeria um homicídio; mas, pelas leis, o senhor tem sobre o escravo o poder de vida e morte[3] de modo que pode vendê-lo a quem o quiser, ou matá-lo, como, sem comparação, o faria a seu cavalo.
5º) O servo, enfim, só por algum tempo fica a serviço de um patrão, enquanto o escravo o é para sempre.

***
72. Só a escravidão, entre os homens, põe uma pessoa na posse e dependência completa de outra. Nada há, do mesmo modo, que mais absolutamente nos faça pertencer a Jesus Cristo e a sua Mãe Santíssima do que a escravidão voluntária, conforme o exemplo do próprio Jesus Cristo, que, por nosso amor, tomou a forma de escravo: “Formam servi accipiens” (Fl 2,7), e da Santíssima Virgem, que se declarou a escrava do Senhor (Lc 1,38). O apóstolo honra-se várias vezes em suas epístolas com o título de servus Christi[4]. A Sagrada Escritura chama muitas vezes os cristãos de servi Christi, e esta palavra servus, conforme a observação acertada de um grande homem[5], significava, outrora, apenas escravo, pois não existiam servos como os de hoje, e os ricos só eram servidos por escravos ou libertos. E para que não haja a menor dúvida de que somos escravos de Jesus Cristo, o Concílio de Trento usa a expressão inequívoca mancipia Christi, e no-la aplica: escravos de Jesus Cristo[6]. Isto posto:
73. Digo que devemos pertencer a Jesus Cristo e servi-lo, não só como servos mercenários, mas como escravos amorosos, que, por efeito de um grande amor, se dedicam a servi-lo como escravos, pela honra exclusiva de lhe pertencer. Antes do batismo, éramos escravos do demônio; o batismo nos fez escravos de Jesus Cristo. Importa, pois, que os cristãos sejam escravos ou do demônio ou de Jesus Cristo.
74. O que digo absolutamente de Jesus Cristo, digo-o também da Virgem Maria, pois Jesus Cristo, escolhendo-a para sua companheira inseparável na vida, na morte, na glória, em seu poder no céu e na terra, deu-lhe pela graça, relativamente à sua majestade, os mesmos direitos e privilégios que Ele possui por natureza. “Quid-quid Deo convenit per naturam, Mariae convenit per gratiam... – Tudo que convém a Deus pela natureza, convém a Maria pela graça”, dizem os santos. Assim, conforme este ensinamento, pois que ambos têm a mesma vontade e o mesmo poder, têm também os mesmos súditos, servos e escravos[7].
75. Podemos, portanto, seguindo a opinião dos santos e de muitos doutos, dizer-nos e fazer-nos escravos da Santíssima Virgem, para deste modo nos tornarmos mais perfeitamente escravos de Jesus Cristo[8]. A Santíssima Virgem é o meio de que Nosso Senhor se serviu para vir a nós; e é o meio de que nos devemos servir para ir a Ele[9]. Bem diferente é ela das outras criaturas, as quais, se a elas nos apegarmos, poderão antes nos afastar que nos aproximar de Deus. A mais forte inclinação de Maria é nos unir a Jesus Cristo, seu divino Filho; e a mais forte inclinação do Filho é que vamos a Ele por meio de sua Mãe Santíssima. E isto é para Ele tanta honra e prazer, como seria para um rei honra e prazer, se alguém, para tornar-se mais perfeitamente seu escravo, se fizesse escravo da rainha. Eis por que os Santos Padres, e São Boaventura com eles, dizem que a Santíssima Virgem é o caminho para chegar a Nosso Senhor: “Via veniendi ad Christum est appropinquare ad illam”[10].
76. Além disso, se a Virgem Santíssima, como já disse (v. n. 38), é a rainha e soberana do céu e da terra – “Imperio Dei omnia subiciuntur et Virgo, ecce imperio Virginis omnia subiciuntur et Deus”[11], dizem Santo Anselmo, São Bernardo, São Boaventura – não possui ela tantos súditos e escravos quantas criaturas existem?[12] Não é razoável que, entre tantos escravos por constrangimento, haja alguns por amor, que, de boa vontade e na qualidade de escravos, escolham Maria para sua soberana? Pois então os homens e os demônios terão seus escravos voluntários e Maria não há de tê- los? Seria desonra para um rei se a rainha, sua companheira, não possuísse escravos sobre os quais tivesse direito de vida e morte[13], pois a honra e o poder do rei são a honra e o poder da rainha; e pode-se acreditar que Nosso Senhor, o melhor de todos os filhos, que deu a sua Mãe Santíssima parte de todo o seu poder, considere um mal ter ela escravos?[14] Terá ele menos respeito e amor a sua Mãe do que teve Assuero a Ester e Salomão a Betsabé? Quem ousaria dizê-lo ou pensá-lo sequer?
77. Mas onde me leva minha pena? Por que me detenho aqui a provar uma coisa tão evidente? Se alguém recusa confessar-se escravo de Maria, que importa? Que se faça e se diga escravo de Jesus Cristo. É o mesmo que ser escravo da Santíssima Virgem, pois Jesus é o fruto e a glória de Maria. E isto se faz perfeitamente pela devoção de que falaremos a seguir[15].
____________________
1. Cf. Sl 1,3; Jo 15,1; 10,11; Mt 13,3.8.
2. Cf. SANTO AGOSTINHO. “Expositio cantici Magnificat” (circa medium). • SANTO TOMÁS. Summa Theol. 3, q. 48, a. 4, corp. et resp. ad 1.
3. A lei natural, a lei mosaica e as leis modernas não reconhecem tal direito, a não ser por um mandato especial do soberano Senhor da vida e da morte. O bem-aventurado se coloca aqui simplesmente do ponto de vista do fato, conforme as leis civis dos países em que vigorava a escravidão (Cf. Secret de Marie, p. 34). Abstraindo da moralidade do ato, seu fito é mostrar, por um exemplo, a total dependência de que fala.
4. Cf. Rm 1,1; Gl 1,10; Fl 1,1; Tt 1,1.
5. BOUDON, Henri-Marie, arcediago d’Evreux, em seu livro: La sainte esclavage de l’admirable Mère de Dieu, cap. II.
6. Catec. Rom., parte I, cap. 3: De secundo Symboli articulo (in fine).
7. “Oportebat... Dei Matrem ea quae Filii essent possidere” (SÃO JOÃO DAMASCENO. Sermo 2 in Dormitione B.M.).
8. “Ita serviam Matri tuae, ut ex hoc ipse me probes servisse tibi” (SANTO ILDEFONSO. De virginitate perpetua B.M., cap. XII).
9. “Per ipsam Deus descendit ad terras, ut per ipsam homines ascendere mereantur ad caelos (SANTO AGOSTINHO. Sermo 113 in Nativit. Domini). • Cf. tb. SÃO BOAVENTURA. Expositio in Lc, cap. I, n. 38. Pio X, Encíclica “Ad diem ilium”.
10. Psalterium maius B.M., Sl 117.
11. “Ao poder de Deus tudo é submisso, até a Virgem; ao poder da Virgem tudo é submisso, até Deus”.
12. “Res quippe omnes conditas Filius Matri mancipavit”. (SÃO JOÃO DAMASCENO. Sermo 2 in Dormitione B.M. • “Ancilla Dominae Mariae est quaelibet anima fidelis, imo etiam Ecclesia universalis” (SÃO BOAVENTURA. Speculum B.M.V., lect. III § 5).
13. Cf. nota ao n. 71.
14. Christianorum memento, qui servi tui sunt. SÃO GERMANO DE CONSTANTINOPLA. Orat. hist. in Dormitione Deiparae.
15. Para explicação da doutrina exposta neste artigo II, cf. LHOUMEAU, A. “A vida espiritual do B.L.M. Grignion de Montfort”, la parte, cap. IV.
 
ARTIGO III - Devemos despojar-nos do que há de mau em nós
78. Terceira verdade. – Nossas melhores ações são ordinariamente manchadas e corrompidas pelo fundo de maldade que há em nós. Quando se despeja água limpa e clara em uma vasilha suja, que cheira mal, ou quando se põe vinho em uma pipa cujo interior está azedado por outro vinho que aí antes se depositara, a água límpida e o vinho bom adquirem facilmente o mau cheiro e o azedume dos recipientes. Do mesmo modo, quando Deus põe no vaso de nossa alma, corrompido pelo pecado original e pelo pecado atual, suas graças e orvalhos celestiais ou o vinho delicioso de seu amor, estes dons divinos ficam ordinariamente estragados ou manchados pelo mau germe e mau fundo que o pecado deixou em nós; nossas ações, até as mais sublimes virtudes, disto se ressentem. É, portanto, de grande importância, para adquirir a perfeição, que só se consegue pela união com Jesus Cristo, despojar-nos de tudo que de mau existe em nós. Do contrário, Nosso Senhor, que é infinitamente puro e odeia infinitamente a menor mancha na alma, nos repelirá e de modo algum se unirá a nós.

***
79. Para despojar-nos de nós mesmos, é preciso conhecer primeiramente e bem, pela luz do Espírito Santo, nosso fundo de maldade, nossa incapacidade para todo bem, nossa fraqueza em todas as coisas, nossa inconstância em todo tempo, nossa indignidade de toda graça e nossa iniquidade em todo lugar. O pecado de nossos primeiros pais nos estragou completamente, nos azedou, inchou e corrompeu, como o fermento azeda, incha e corrompe a massa em que é posto. Os pecados atuais que cometemos, sejam mortais ou veniais, perdoados que estejam, aumentam em nós a concupiscência, a fraqueza, a inconstância e a corrupção, deixando maus traços em nossa alma.
Nosso corpo é tão corrompido, que o Espírito Santo (Rm 6,6; Sl 50,7) o chama corpo do pecado, concebido no pecado, nutrido no pecado, e só apto para o pecado, corpo sujeito a mil e mil males, que se corrompe sempre mais cada dia, e que só engendra a doença, os vermes, a corrupção.
Nossa alma, unida ao corpo, tornou-se tão carnal, que é chamada carne:
“Toda a carne tinha corrompido o seu caminho” (Gn 6,12). Toda a nossa herança é orgulho e cegueira no espírito, endurecimento no coração, fraqueza e inconstância na alma, concupiscência, paixões revoltadas e doenças no corpo. Somos, naturalmente, mais orgulhosos que os pavões, mais apegados à terra que os sapos, mais feios que os bodes, mais invejosos que as serpentes, mais glutões que os porcos, mais coléricos que os tigres e mais preguiçosos que as tartarugas; mais fracos que os caniços, e mais inconstantes do que um catavento. Tudo que temos em nosso íntimo é nada e pecado, e só merecemos a ira de Deus e o inferno eterno[1].
80. Depois disto, por que nos admirar de ter Nosso Senhor dito que quem quisesse segui-lo devia renunciar a si mesmo e odiar a própria alma; que aquele que amasse sua alma a perderia e quem a odiasse se salvaria? (Jo 12,25). A Sabedoria infinita, que não dá ordens sem motivo, só ordena que nos odiemos porque somos grandemente dignos de ódio: só Deus é digno de amor, enquanto nada há mais digno de ódio do que nós.
81. Em segundo lugar, para despojar-nos de nós mesmos, é preciso que todos os dias morramos para nós, isto é, importa renunciarmos às operações das faculdades da alma e dos sentidos do corpo, precisamos ver como se não víssemos, ouvir como se não ouvíssemos, servir-nos das coisas deste mundo como se não o fizéssemos (cf. 1Cor 7,29-31), o que São Paulo chama morrer todos os dias: “Quotidie morior” (1Cor 15,31). “Se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer, fica só, e não produz fruto apreciável”: “Nisi granum frumenti cadens in terram mortuum fuerit, ipsum solum Manet” (Jo 12,24-25). Se não morrermos a nós mesmos, e se as mais santas devoções não nos levarem a esta morte necessária e fecunda, não produziremos fruto que valha, nossas devoções serão inúteis, todas as nossas obras de justiça ficarão manchadas por nosso amor-próprio e nossa própria vontade, e Deus abominará os maiores sacrifícios e as melhores ações que possamos fazer. Na hora da nossa morte, teremos as mãos vazias de virtudes e de méritos, e não brilhará em nós a menor centelha do puro amor, que só é comunicado às almas mortas a si mesmas, almas cuja vida está oculta com Jesus Cristo em Deus (Cl 3,3).
82. Em terceiro lugar, é preciso escolher, entre todas as devoções à Santíssima Virgem, a que nos leva com mais certeza a este aniquilamento do próprio eu. Esta será a devoção melhor e mais santificante, pois é mister reconhecer que nem tudo que luz é ouro, nem tudo que é doce é mel, e nem tudo que é fácil de fazer e praticar é o mais santificante. Do mesmo modo que a natureza tem segredos para fazer em pouco tempo, sem muitos gastos e com facilidade, certas operações naturais, há segredos, na ordem da graça, pelos quais se fazem, em pouco tempo, com doçura e facilidade, operações sobrenaturais, como despojar-nos de nós mesmos, encher-nos de Deus, e tornar-nos perfeitos.
A prática que quero revelar é um desses segredos da graça, desconhecido da maior parte dos cristãos, conhecido de poucos devotos, praticado e apreciado por um número bem diminuto. Antes de abordar esta prática, apresento uma quarta verdade que é consequência da terceira.
____________________
1. São Luís Maria fala de nosso nada e de nossa impotência na ordem sobrenatural, sem o socorro da graça (Cf. com efeito, mais adiante o n. 83: Nosso íntimo..., tão corrompido, se nos apoiamos em nossos próprios trabalhos para chegar a Deus...).
 
ARTIGO IV - Temos necessidade de um medianeiro junto do próprio medianeiro que é Jesus Cristo
83. Quarta verdade. – É muito mais perfeito, porque é mais humilde, tomar um medianeiro para nos aproximarmos de Deus.
Se nos apoiarmos sobre nossos próprios trabalhos, habilidade, e preparações, para chegar a Deus e agradar-lhe, é certo que todas as nossas obras de justiça ficarão manchadas e peso insignificante terão junto de Deus, para movê-lo a unir-se a nós e nos atender, pois, como acabo de demonstrar, nosso íntimo é extremamente corrupto. E não foi sem razão que ele nos deu medianeiros junto de sua majestade. Viu nossa iniquidade e incapacidade, apiedou-se de nós, e, para dar-nos acesso às suas misericórdias, proporcionou-nos intercessores poderosos junto de sua grandeza; de sorte que negligenciar esses medianeiros e aproximar-se diretamente de sua santidade sem outra recomendação é faltar ao respeito a um Deus tão alto e tão santo; é menosprezar este Rei dos reis, como não se faria a um rei ou príncipe da terra, do qual ninguém se aproximaria sem a recomendação de um amigo.
84. Nosso Senhor é nosso advogado e medianeiro de redenção junto de Deus Pai; é por intermédio dele que devemos rezar com toda a Igreja triunfante e militante; é por intermédio dele que obtemos acesso junto de sua majestade, em cuja presença não devemos jamais aparecer, a não ser amparados e revestidos dos méritos de Jesus Cristo, como Jacob revestindo- se da pele de cabrito para receber a bênção de seu pai Isaac.

***
85. Mas temos necessidade de um medianeiro junto do próprio medianeiro? Será a nossa pureza suficiente para que nos permita unir-nos diretamente a Ele, e por nós mesmos? Não é Ele Deus, em tudo igual ao Pai, e, por conseguinte, o Santo dos santos, digno de tanto respeito como seu Pai? Se Ele, por sua caridade infinita, se constituiu nosso penhor e medianeiro junto de Deus seu Pai, para aplacá-lo e pagar-lhe o que lhe devíamos, quer isto dizer que lhe devemos menos respeito e temor por sua majestade e santidade?
Digamos, pois, ousadamente, com São Bernardo[1], que temos necessidade de um medianeiro junto do Medianeiro por excelência, e que Maria Santíssima é a única capaz de exercer esta função admirável. Por ela Jesus Cristo veio a nós, e por ela devemos ir a Ele. Se receamos ir diretamente a Jesus Cristo Deus, em vista de sua grandeza infinita, ou por causa de nossa baixeza, ou, ainda, devido aos nossos pecados, imploremos afoitamente o auxílio e intercessão de Maria nossa Mãe; ela é boa e terna; nela não há severidade nem repulsa; tudo nela é sublime e brilhante; contemplando-a, vemos nossa pura natureza. Ela não é o sol, que, pela força de seus raios, nos poderia deslumbrar em nossa fraqueza, mas é bela e suave como a lua (Ct 6,9), que recebe a luz do sol e a tempera para que possamos suportá-la. É tão caridosa que a ninguém repele, que implore sua intercessão, ainda que seja um pecador; pois, como dizem os santos, nunca se ouviu dizer, desde que o mundo é mundo, que alguém que tenha recorrido à Santíssima Virgem, com confiança e perseverança, tenha sido desamparado ou repelido[2]. Ela é tão poderosa que jamais foi desatendida em seus pedidos; basta-lhe apresentar-se diante de seu Filho para pedir-lhe algo, e Ele só ouve o pedido para logo conceder-lhe o que ela pede; é sempre amorosamente vencido pelos seios, pelas entranhas e pelas preces de sua querida Mãe.
86. Tudo isto é tirado de São Bernardo e de São Boaventura. De acordo com suas palavras, temos três degraus a subir para chegar a Deus: o primeiro, mais próximo de nós e mais conforme à nossa capacidade, é Maria; o segundo é Jesus Cristo; e o terceiro é Deus Pai[3]. Para ir a Jesus é preciso ir a Maria, pois ela é a medianeira de intercessão. Para chegar ao Pai eterno é preciso ir a Jesus, que é nosso medianeiro de redenção. Ora, pela devoção que preconizo, mais adiante, é esta a ordem perfeitamente observada.
____________________
1. Sermo in Domin. inf. oct. Assumptionis, n. 2: “Opus est enim mediatore ad Mediatorem istum, nec alter nobis utilior quam Maria”. Todo este parágrafo é tirado deste sermão de São Bernardo.
2. Termina aqui a citação de São Bernardo. A frase seguinte é tirada de SÃO BOAVENTURA. Sermo 2 in B.V.M.
3. “Per Mariam ad Christum accedimus, et per Christum gratiam Spiritus Sancti invenimus” (SÃO BOAVENTURA. Speculum B.V., lect. VI, § 2). • Cf. tb. LEÃO XIII. Encíclica “Octobri mense”, 22-9-1891.
 
ARTIGO V - É muito difícil para nós conservar as graças e tesouros recebidos de Deus
87. Quinta verdade. – É extremamente difícil, devido à nossa fraqueza e fragilidade, conservarmos em nós as graças e os tesouros que recebemos de Deus:
1º) Porque este tesouro, mais valioso que o céu e a terra, nós o guardamos em vasos frágeis: “Habemus thesaurum istum in vasis fictilibus” (2Cor 4,7); em um corpo corruptível, em uma alma fraca e inconstante que um nada perturba e abate.
88. 2º) Porque os demônios, que são ladrões finórios, buscam surpreender- nos de improviso para nos roubar e despojar; espreitam dia e noite o momento favorável a seu desígnio; andam incessantemente ao redor de nós, prontos a devorar-nos (cf. 1Pd 5,8) e, pelo pecado, arrebatar-nos, num momento, tudo que em longos anos conseguimos alcançar de graças e méritos. E tanto mais devemos temer esta desgraça, sabendo quão incomparável é sua malícia, sua experiência, suas astúcias e seu número. Pessoas têm havido muito mais cheias de graça do que nós, mais ricas em virtudes, mais experientes, mais elevadas em santidade, que foram surpreendidas, roubadas, saqueadas lamentavelmente. Ah! quantos cedros do Líbano, quantas estrelas do firmamento se têm visto cair miseravelmente, perdendo em pouco tempo toda a sua altivez e claridade. A que atribuir tão estranha mudança? Não foi falta de graça, pois a graça não falta a ninguém; foi falta de humildade. Essas pessoas acreditavam-se mais fortes e suficientes do que o eram na realidade, julgavam-se capazes de guardar seus tesouros; fiaram-se e apoiaram-se em si próprias; creram sua casa bastante segura e bem fortes os seus cofres para guardar o precioso tesouro da graça, e, devido a essa segurança imperceptível que tinham em si (conquanto lhes parecesse que se apoiavam na graça de Deus), é que o justíssimo Senhor, abandonando- as às próprias forças, permitiu que fossem roubadas. Ah! se tivessem conhecido a devoção admirável que vou expor, em seguida, teriam confiado seu tesouro à Virgem poderosa e fiel, que o teria guardado como seu próprio bem, fazendo mesmo, disso, um dever de justiça.
89. 3º) É difícil perseverar na justiça, por causa da corrupção do mundo. O mundo está, atualmente, tão corrompido, que é quase necessário que os corações religiosos sejam manchados, se não pela lama, ao menos pela poeira dessa corrupção; de modo que se pode considerar um milagre o fato de uma pessoa manter-se firme no meio dessa torrente impetuosa sem que o turbilhão a arraste; no meio desse mar tempestuoso sem que o furor das ondas a submerja ou a pilhem os piratas e corsários; no meio desse ar empestado sem que os miasmas a contaminem. É a Virgem, a única fiel, na qual a serpente não teve parte jamais, que faz este milagre em favor daqueles e daquelas que a servem da mais bela maneira.
 
Capítulo III. Escolha da verdadeira devoção à Santíssima Virgem
90. Conhecidas estas cinco verdades, é preciso, mais do que nunca, fazer agora uma boa escolha da verdadeira devoção à Virgem Santíssima, pois, como jamais, pululam falsas devoções a Maria Santíssima, as quais passam facilmente por devoções verdadeiras. O demônio, como um moedeiro falso e em enganador fino e experimentado, tem já enganado e perdido inúmeras almas, inculcando uma falsa devoção à Santíssima Virgem, e todos os dias vale-se de sua experiência diabólica para lançar outras mais à eterna condenação, divertindo-as e acalentando-as no pecado, sob o pretexto de algumas orações malrecitadas e de algumas práticas exteriores que lhes inspira. Como um moedeiro falso só falsifica ordinariamente moedas de ouro e prata, raras vezes imitando outros metais, que não compensam o trabalho, do mesmo modo o espírito maligno não se detém em falsificar outras devoções que não sejam as de Jesus e de Maria, à santa comunhão, e à Virgem Santíssima, porque são estas como o ouro e a prata entre os metais.
91. É, portanto, de grande importância conhecer primeiramente as falsas devoções à Santíssima Virgem, para evitá-las, e a verdadeira, para abraçá-la; segundo, entre tantas práticas diferentes da verdadeira devoção à Virgem Santíssima, distinguir a mais perfeita, a mais agradável à Maria Santíssima, a que mais glória dá a Deus, a mais santificante para nós, para a esta nos apegarmos.
 
ARTIGO I - Os sinais da falsa e da verdadeira devoção à Santíssima Virgem
§ I. Os falsos devotos e as falsas devoções à Santíssima Virgem.
92. Conheço sete espécies de falsos devotos e falsas devoções à Santíssima Virgem: 1º) os devotos críticos, 2º) os devotos escrupulosos, 3º) os devotos exteriores, 4º) os devotos presunçosos, 5º) os devotos inconstantes, 6º) os devotos hipócritas, 7º) os devotos interesseiros.

1°) Os devotos críticos
93. Os devotos críticos são, em geral, sábios orgulhosos, espíritos fortes e presumidos, que têm no fundo uma certa devoção à Santíssima Virgem, mas que vivem criticando as práticas de devoção que a gente simples tributa de boa-fé e santamente a esta boa Mãe, pelo fato de estas devoções não agradarem à sua culta fantasia. Põem em dúvida todos os milagres e histórias narrados por autores dignos de fé, ou inseridos em crônicas de ordens religiosas, atestando as misericórdias e o poder da Santíssima Virgem. Repug-na-lhes ver pessoas simples e humildes ajoelhadas diante de um altar ou de uma imagem da Virgem, às vezes no recanto de uma rua, rezando a Deus; chegam a acusá-las de idolatria, como se estivessem adorando a pedra ou a madeira. Dizem que, de sua parte, não apreciam essas devoções exteriores e que seu espírito não é tão fraco que vá dar fé a tantos contos e historietas que se atribuem à Santíssima Virgem. Quando alguém lhes repete os louvores admiráveis que os Santos Padres dão à Santíssima Virgem, respondem que são flores de retórica, ou exagero, que aqueles escritores eram oradores; ou dão, então, uma explicação má daquelas palavras[1].
Esta espécie de falsos devotos e orgulhosos e mundanos é muito para temer, e eles causam um mal infinito à devoção à Santíssima Virgem, dela afastando eficazmente o povo, sob pretexto de destruir-lhe os abusos.
____________________
1. Não se pense que São Luís Maria exagere neste ponto. A época em que escrevia era a desses devotos críticos, que procuravam propagar entre os fiéis escritos venenosos, como o panfleto de Windenfelt, intitulado: “Avisos salutares da B.V. Maria a seus devotos indiscretos” (Cf. LHOUMEAU. “Vida espiritual”).

2º) Os devotos escrupulosos
94. Os devotos escrupulosos são aqueles que receiam desonrar o Filho, honrando a Mãe, e rebaixá-lo se a exaltarem demais. Não podem suportar que se repitam à Santíssima Virgem aqueles louvores justíssimos que lhe teceram os Santos Padres; não suportam sem desgosto que a multidão ajoelhada aos pés de Maria seja maior que ante o altar do Santíssimo Sacramento, como se fossem antagônicos, e como se os que rezam à Santíssima Virgem não rezassem a Jesus Cristo por meio dela. Não querem que se fale tão frequentemente da Santíssima Virgem, nem que se recorra tantas vezes a ela.
Algumas frases eles as repetem a cada momento: Para que tantos terços, tantas confrarias e devoções exteriores à Santíssima Virgem? Vai nisso muito de ignorância! É fazer da religião uma palhaçada. Falai-me, sim, dos que são devotos de Jesus Cristo (e eles o nomeiam, muitas vezes, sem se descobrir, digo-o entre parênteses): cumpre recorrer a Jesus Cristo, pois é Ele o nosso único medianeiro; é preciso pregar Jesus Cristo, isto sim que é sólido!
Em certo sentido é verdade o que eles dizem. Mas, pela aplicação que lhe dão, é bem perigoso e constitui uma cilada sutil do maligno, sob o pretexto de um bem muito maior, pois nunca se há de honrar mais a Jesus Cristo, do que honrando a Santíssima Virgem, desde que a honra que se presta a Maria não tem outro fim que honrar mais perfeitamente a Jesus Cristo, e que só se vai a ela como ao caminho para atingir o termo que é Jesus Cristo.
95. A santa Igreja, como o Espírito Santo, bendiz primeiro a Santíssima Virgem e depois Jesus Cristo: “benedicta tu in mulieribus et benedictus fructus ventris tui Iesus”. Não porque a Santíssima Virgem seja mais ou igual a Jesus Cristo: seria uma heresia intolerável, mas porque, para mais perfeitamente bendizer Jesus Cristo, cumpre bendizer antes a Maria. Digamos, portanto, com todos os verdadeiros devotos de Maria, contra seus falsos e escrupulosos devotos: Ó Maria, bendita sois vós entre todas as mulheres e bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus!

3º) Os devotos exteriores
96. Devotos exteriores são as pessoas que fazem consistir toda a devoção à Santíssima Virgem em práticas exteriores; que só tomam interesse pela exterioridade da devoção à Santíssima Virgem, por não terem espírito interior; que recitarão às pressas uma enfiada de terços, ouvirão, sem atenção, uma infinidade de missas, acompanharão as procissões sem devoção, farão parte de todas as confrarias sem emendar de vida, sem violentar suas paixões, sem imitar as virtudes desta Virgem Santíssima. Amam apenas o que há de sensível na devoção, sem interesse pela parte sólida. Se suas práticas não lhes afetam a sensibilidade, acham que não há nada mais a fazer, ficam desorientados, ou fazem tudo desordenadamente. O mundo está cheio dessa espécie de devotos exteriores e não há gente que mais critique as pessoas de oração que se dedicam à devoção interior sem desprezar o exterior de modéstia, que acompanha sempre a verdadeira devoção.

4º) Os devotos presunçosos
97. Os devotos presunçosos são pecadores abandonados a suas paixões, ou amantes do mundo, que, sob o belo nome de cristãos e devotos da Santíssima Virgem, escondem ou o orgulho, ou a avareza, ou a impureza, ou a embriaguez, ou a cólera, ou a blasfêmia, ou a maledicência, ou a injustiça, etc.; que dormem placidamente em seus maus hábitos, sem se violentar muito para se corrigir, alegando que são devotos da Virgem; que prometem a si mesmos que Deus lhes perdoará, que não hão de morrer sem confissão, e não serão condenados porque recitam seu terço, jejuam aos sábados, pertencem à confraria do santo Rosário ou do Escapulário, ou a alguma congregação; porque trazem consigo o pequeno hábito ou a cadeiazinha da Santíssima Virgem, etc.
Quando alguém lhes diz que sua devoção não é mais que ilusão e uma presunção perniciosa capaz de perdê-los, recusam-se a crer; dizem que Deus é bom e misericordioso e que não nos criou para nos condenar; que não há homem que não peque; que eles não hão de morrer sem confissão; que um bom peccavi à hora da morte basta; de mais a mais que eles são devotos da Santíssima Virgem, cujo escapulário usam; e em cuja honra dizem, todos os dias, irrepreensivelmente e sem vaidade (isto é, com fidelidade e humildade) sete Pai-nossos e sete Ave-Marias; que recitam mesmo, uma vez ou outra, o terço e o ofício da Santíssima Virgem; que jejuam, etc. Para confirmar o que dizem e mais aumentar a própria cegueira, relembram umas histórias que leram ou ouviram, verdadeiras ou falsas não importa, em que se afirma que pessoas mortas em pecado mortal, sem confissão, só pelo fato de que em vida tinham feito algumas orações ou práticas de devoção à Santíssima Virgem, ressuscitaram para se confessar, ou sua alma permaneceu milagrosamente no corpo até se confessarem, ou, ainda, que, pela misericórdia da Santíssima Virgem, obtiveram de Deus, na hora da morte, a contrição e o perdão de seus pecados, e se salvaram. Eles esperam, portanto, a mesma coisa.
98. Não há, no cristianismo, coisa tão condenável como essa presunção diabólica; pois será possível dizer de verdade que se ama e honra a Santíssima Virgem, quando, pelos pecados, se fere, se traspassa, se crucifica e ultraja impiedosamente a Jesus Cristo, seu Filho? Se Maria considerasse uma lei salvar essa espécie de gente, ela autorizaria um crime, ajudaria a crucificar e injuriar seu próprio Filho. Quem o ousaria pensar?
99. Digo que abusar assim da devoção à Santíssima Virgem, a mais santa e mais sólida depois da devoção a Nosso Senhor e ao Santíssimo Sacramento, é cometer um horrível sacrilégio, o maior e o menos perdoável, depois do sacrilégio duma comunhão indigna.
Confesso que, para ser alguém verdadeiramente devoto da Santíssima Virgem, não é absolutamente necessário ser santo ao ponto de evitar todo pecado, conquanto seja este o ideal; mas é preciso ao menos (note-se bem o que vou dizer):
Em primeiro lugar, estar com a resolução sincera de evitar ao menos todo pecado mortal, que ofende tanto a Mãe como o Filho.
Segundo, fazer violência a si mesmo para evitar o pecado.
Terceiro, filiar-se a confrarias, rezar o terço, o santo rosário ou outras orações, jejuar aos sábados, etc.
100. Isto é maravilhosamente útil à conversão de um pecador, mesmo empedernido; e se meu leitor estiver nestas condições, como que tenha já um pé no abismo, eu lho aconselho, contanto, porém, que só pratique estas boas obras na intenção de, pela intercessão da Santíssima Virgem, obter de Deus a graça da contrição e do perdão dos pecados, e de vencer seus maus hábitos, e não para continuar calmamente no estado de pecado, a despeito dos remorsos de consciência, do exemplo de Jesus Cristo e dos santos, e das máximas do santo Evangelho.

5º) Os devotos inconstantes
101. Devotos inconstantes são aqueles que são devotos da Santíssima Virgem periodicamente, por intervalos e por capricho: hoje são fervorosos, amanhã, tíbios; agora mostram-se prontos a tudo empreender em serviço de Maria e logo após já não parecem os mesmos. Abraçam logo todas as devoções à Santíssima Virgem, ingressam em todas as suas confrarias, e em pouco tempo já nem observam as regras com fidelidade; mudam como a lua[1], e Maria os esmaga sob seus pés como faz ao crescente, pois eles são volúveis e indignos de ser contados entre os servidores desta Virgem fiel, que tem a fidelidade e a constância por herança. Vale mais não se sobrecarregar de tantas orações e práticas de devoção, e fazer poucas com amor e fidelidade, a despeito do mundo, do demônio e da carne.
____________________
1. A lua, por suas variações, é tomada frequentemente pelos antigos autores místicos como o símbolo das mudanças da alma inconstante. • Cf. Eclo 27,12. SÃO BERNARDO. “Sermo super Signum Magnum”, n. 3.

6º) Os devotos hipócritas
102. Há também falsos devotos da Santíssima Virgem, os devotos hipócritas, que cobrem seus pecados e maus hábitos com o manto desta Virgem fiel, a fim de passarem aos olhos do mundo por aquilo que não são.

7º) Os devotos interesseiros
103. Há ainda os devotos interesseiros, que só recorrem à Santíssima Virgem para ganhar algum processo, para evitar algum perigo, para se curar de alguma doença, ou em qualquer necessidade desse gênero, sem o que a esqueceriam; uns e outros são falsos devotos que não têm aceitação diante de Deus e de sua Mãe Santíssima.

***
104. Cuidemos, portanto, de não pertencer ao número dos devotos críticos que em coisa alguma creem e de tudo criticam; dos devotos escrupulosos que receiam ser demasiadamente devotos da Santíssima Virgem, por respeito a Jesus Cristo; dos devotos exteriores que fazem consistir toda a sua devoção em práticas exteriores; dos devotos presunçosos, que, sob o pretexto de sua falsa devoção continuam marasmados em seus pecados; dos devotos inconstantes que, por leviandade, variam suas práticas de devoção, ou as abandonam completamente à menor tentação; dos devotos hipócritas que se metem em confrarias e ostentam as insígnias da Santíssima Virgem a fim de passar por bons; e, enfim, dos devotos interesseiros, que só recorrem à Santíssima Virgem para se livrarem dos males do corpo ou obter bens temporais.

§ II. A verdadeira devoção à Santíssima Virgem.
105. Depois de descobrir e condenar as falsas devoções à Santíssima Virgem, cumpre estabelecer em poucas palavras a devoção verdadeira, que é: 1º) interior, 2º) terna, 3º) santa, 4º) constante, 5º) desinteressada.

1º) A verdadeira devoção é interior
106. Antes de tudo, a verdadeira devoção à Santíssima Virgem é interior, isto é, parte do espírito e do coração. Vem da estima em que se tem a Santíssima Virgem, da alta ideia que se formou de suas grandezas, e do amor que se lhe consagra.

2º) A verdadeira devoção é terna
107. Em segundo lugar é terna, quer dizer cheia de confiança na Santíssima Virgem, da confiança de um filho em sua mãe. Impele uma alma a recorrer a ela em todas as necessidades do corpo e do espírito, com extremos de simplicidade, de confiança e de ternura; ela implora o auxílio de sua boa Mãe em todo tempo, em todo lugar, em todas as coisas: em suas dúvidas, para ser esclarecida; em seus erros, para se corrigir; nas tentações, para ser sustentada; em suas fraquezas, para ser fortificada; em suas quedas, para ser levantada; em seus abatimentos, para ser encorajada; em seus escrúpulos, para ficar livre deles; em suas cruzes, trabalhos e reveses da vida, para ser consolada. Em todos os males do corpo e do espírito, enfim, Maria é seu refúgio, e não há receio de importunar esta boa Mãe e desagradar a Jesus Cristo.

3º) A verdadeira devoção é santa
108. Terceiro, a verdadeira devoção à Santíssima Virgem é santa: leva uma alma a evitar o pecado e a imitar as virtudes da Santíssima Virgem, principalmente sua humildade profunda, sua contínua oração, sua obediência cega, sua fé viva, sua mortificação universal, sua pureza divina, sua caridade ardente, sua paciência heroica, sua doçura angélica e sua sabedoria divina. Aí estão as dez virtudes principais da Santíssima Virgem.

4º) A verdadeira devoção é constante
109. Quarto, a verdadeira devoção à Santíssima Virgem é constante, firma uma alma no bem, e ajuda-a a perseverar em suas práticas de devoção. Torna- a corajosa para se opor ao mundo em suas modas e máximas, à carne, em seus aborrecimentos e paixões, e ao demônio, em suas tentações. Assim, uma pessoa verdadeiramente devota da Santíssima Virgem não é volúvel, nem se deixa dominar pela melancolia, pelos escrúpulos ou pelos receios. Não quer isto dizer que não caia ou mude, às vezes, na sensibilidade de sua devoção; mas, se cai, levanta-se logo, estende a mão à sua boa Mãe, e, se perde o gosto ou a devoção sensível, não se aflige irremediavelmente, pois o justo e devoto fiel de Maria vive da fé de Jesus e de Maria, e não nos sentimentos naturais.

5º) A verdadeira devoção é desinteressada
110. A verdadeira devoção à Virgem Santíssima é, finalmente, desinteressada, leva a alma a buscar não a si mesma, mas somente a Deus em sua Mãe Santíssima. O verdadeiro devoto de Maria não serve a esta augusta Rainha por espírito de lucro e de interesse, nem para seu bem temporal ou eterno, corporal ou espiritual, mas unicamente porque ela merece ser servida, e Deus exclusivamente nela; o verdadeiro devoto não ama a Maria precisamente porque ela lhe faz ou ele espera dela algum bem, mas porque ela é amável. Só por isto ele a ama e serve nos desgostos e na aridez, como nas doçuras e no fervor sensível, sempre com a mesma fidelidade; ama-a nas amarguras do Calvário como nas alegrias de Caná. Oh! como é agradável e precioso aos olhos de Deus e de sua Mãe Santíssima, esse devoto, que em nada se busca nos serviços que presta à sua Rainha. Mas, também, quão raro é encontrá-lo agora. E é com o fito de que cresça o número desses fiéis devotos, que empunhei a pena para escrever o que tenho, com fruto, ensinado em público e em particular nas minhas missões, durante anos e anos.

***
111. Muitas coisas já disse sobre a Santíssima Virgem. Mais ainda tenho, entretanto, a dizer, e infinitamente mais omitirei, seja por ignorância, incapacidade ou falta de tempo, no desígnio que tenho de formar um verdadeiro devoto de Maria e um verdadeiro discípulo de Jesus Cristo.
112. Oh! bem empregado seria o meu esforço, se este escrito, caindo nas mãos duma alma bem-nascida, nascida de Deus e de Maria, e não do sangue, ou da vontade da carne, nem da vontade do homem (cf. Jo 1,13), lhe desvendasse e inspirasse, pela graça do Espírito Santo, a excelência e o prêmio da verdadeira e sólida devoção à Santíssima Virgem, como vou indicar. Se eu soubesse que meu sangue pecaminoso poderia servir para fazer entrar no coração as verdades que escrevo em honra de minha querida Mãe e soberana Senhora, da qual sou o último dos filhos e escravos, em lugar de tinta eu o usaria para formar esses caracteres, na esperança que me anima de encontrar boas almas que, por sua fidelidade à prática que ensino, compensarão minha boa Mãe e Senhora das perdas que lhe têm causado minha ingratidão e infidelidade.
113. Sinto-me, mais do que nunca, animado a crer e esperar em tudo que tenho profundamente gravado no coração, e que há muitos anos peço a Deus: que mais cedo ou mais tarde a Santíssima Virgem terá mais filhos, servidores e escravos[1], como nunca houve, e que, por este meio, Jesus Cristo, meu amado Mestre, reinará totalmente em todos os corações.
114. Vejo, no futuro, animais frementes, que se precipitam furiosos para dilacerar com seus dentes diabólicos este pequeno manuscrito e aquele de quem o Espírito Santo se serviu para escrevê-lo, ou ao menos para fazê-lo ficar envolto nas trevas e no silêncio de uma arca, a fim de que ele não apareça. Atacarão até, e perseguirão aqueles e aquelas que o lerem e o puserem em prática[2]. Mas não importa! tanto melhor! Esta visão me encoraja e me dá a esperança de um grande sucesso, isto é, um esquadrão de bravos e destemidos soldados de Jesus e de Maria, de ambos os sexos, para combater o mundo, o demônio e a natureza corrompida, nos tempos perigosos que virão, e como ainda não houve.
“Que legit, intelligat. Qui potest capere, capiat” (Mt 24,15; 19,12).
____________________
1. Note-se a associação destes dois termos: filho e escravo. A mesma aproximação foi feita pelo Catecismo do Concílio de Trento (p. I, cap. 3, “De secundo symboli articulo”, in fine).
2. Esta predição realizou-se ao pé da letra. Em todo o decorrer do século XVIII, os filhos de Montfort foram o alvo dos ataques dos jansenistas, em vista de seu zelo por esta devoção. E o precioso manuscrito, escondido durante as perturbações da Revolução Francesa, só foi encontrado em 1842 por um padre da Companhia de Maria, em um caixote de livros antigos.
 
ARTIGO II - As práticas da verdadeira devoção à Santíssima Virgem
§ I. As práticas comuns.
115. Há muitas práticas interiores da verdadeira devoção à SS. Virgem. As principais são, abreviadamente, as seguintes:
1. Honrá-la, como a digna Mãe de Deus, com o culto de hiperdulia, isto é, estimá-la e honrá-la sobre todos os outros santos, como a obra-prima da graça e a primeira depois de Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem. 2. Meditar suas virtudes, seus privilégios e seus atos. 3. Contemplar suas grandezas. 4. Fazer-lhe atos de amor, de louvor e reconhecimento. 5. Invocá- la cordialmente. 6. Oferecer-se e unir-se a ela. 7. Em todas as ações ter a intenção de agradar-lhe. 8. Começar, continuar e acabar todas as ações por ela, nela, com ela e para ela, a fim de fazê-las por Jesus Cristo, em Jesus Cristo, com Jesus Cristo e para Jesus Cristo, nosso último fim. Mais adiante explicaremos esta última prática (Cf. cap. VIII, art. II).

***
116. A verdadeira devoção à Santíssima Virgem tem também muitas práticas exteriores, das quais as principais são:
1°) Alistar-se em suas confrarias e ingressar em suas congregações; 2º) ingressar numa das ordens instituídas em sua honra; 3º) publicar seus louvores; 4º) dar esmolas, jejuar e mortificar-se o espírito e o corpo em sua honra; 5º) trazer consigo suas insígnias, como o santo rosário ou o terço, o escapulário ou a cadeiazinha; 6º) recitar com devoção, atenção e modéstia ou o santo rosário, composto de quinze dezenas de Ave-Marias, em honra dos quinze mistérios principais de Jesus Cristo, ou o terço de cinco dezenas, contemplando os cinco mistérios gozosos: a anunciação, a visitação, a natividade de Jesus Cristo, a purificação e o encontro de Jesus no templo; os cinco mistérios dolorosos: a agonia de Jesus no Jardim das Oliveiras, sua flagelação, a coroação de espinhos, Jesus levando a cruz, e a crucificação; os cinco mistérios gloriosos: a ressurreição de Jesus, sua ascensão, a descida do Espírito Santo, a assunção da Santíssima Virgem em corpo e alma ao céu, e sua coroação pelas três pessoas da Santíssima Trindade. Pode-se recitar também uma coroa de seis ou sete dezenas em honra dos anos que se crê a Santíssima Virgem ter vivido na terra; ou a coroinha da Santíssima Virgem, composta de três Pai-nossos e doze Ave-Marias, em honra de sua coroa de doze estrelas[1] ou privilégios; outrossim o ofício da Santíssima Virgem universalmente conhecido e recitado pela Igreja; o pequeno saltério da Santíssima Virgem que São Boaventura compôs em sua honra, tão terno e devoto que não se pode recitá-lo sem enternecimento; quatorze Pai-nossos e Ave-Marias em honra de suas quatorze alegrias; quaisquer outras orações, enfim, hinos e cânticos da Igreja, como o “Salve Rainha”, o “Alma”, o “Ave Regina caelorum”, ou o “Regina caeli”, conforme os di ferentes tempos; ou o “Ave, Maris Stella”, “O gloriosa Domina”, etc, ou o “Magnificat”, e outras orações e hinos de que andam cheios os devocionários; 7°) cantar e fazer cantar em sua honra cânticos espirituais; 8º) fazer-lhe um certo número de genuflexões ou reverências, dizendo-lhe, por exemplo, todas as manhãs, sessenta ou cem vezes: “Ave, Maria, Virgo Fidelis”, para, por meio dela, obter de Deus a fidelidade às graças durante o dia; e à noite: “Ave, Maria, Mater misericordiae”, para, por intermédio dela, alcançar de Deus o perdão dos pecados cometidos durante o dia; 9º) ter zelo por suas confrarias, ornar seus altares, coroar e enfeitar suas imagens; 10º) carregar ou fazer que se conduza sua imagem nas procissões, e trazê-la consigo como uma arma eficaz contra o demônio; 11º) mandar fazer imagens que a representem, ou seu nome, e colocá-los nas igrejas, nas casas, nos pórticos ou à entrada das cidades, igrejas e casas; 12º) consagrar-se a ela de uma maneira especial e solene.
117. Há uma quantidade de outras práticas da verdadeira devoção à Santíssima Virgem, que o Espírito Santo tem inspirado às almas de escol, e que são muito santificantes. Pode-se encontrá-las mais extensamente no livro Paraíso aberto a Filágia do Padre Paulo Barry, da Companhia de Jesus. Aí o autor coligiu grande número de devoções praticadas pelos santos em honra da Santíssima Virgem, devoções maravilhosamente úteis para santificar as almas, desde que sejam praticadas como devem, isto é:
1º) Com reta e boa intenção de agradar só a Deus, de unir-se a Jesus Cristo como o nosso fim último, e de edificar o próximo; 2º) com atenção, sem distrações voluntárias; 3º) com devoção, sem precipitação nem negligência; 4º) com modéstia e compostura, em atitude respeitosa e edificante.

§ II. A prática perfeita.
118. Depois de ler quase todos os livros que tratam da devoção à Santíssima Virgem e de conversar com as pessoas mais santas e instruídas destes últimos tempos, declaro firmemente que não encontrei nem aprendi outra prática de devoção à Santíssima Virgem semelhante a esta que vou iniciar, que exija de uma alma mais sacrifícios a Deus, que a despoje mais completamente de seu amor-próprio, que a conserve com mais fidelidade na graça e a graça nela, que a una com mais perfeição e facilidade a Jesus Cristo, e, afinal, que seja mais gloriosa para Deus, santificante para a alma e útil ao próximo.
119. O essencial desta devoção consiste no interior que ela deve formar, e, por este motivo, não será compreendida igualmente por todo o mundo. Alguns hão de deter-se no que ela tem de exterior, e não passarão avante, e estes serão o maior número; outros, em número reduzido, entrarão em seu interior, mas subirão apenas um degrau. Quem alcançará o segundo? Quem se elevará até ao terceiro? Quem, finalmente, se identificará nesta devoção? Aquele somente a quem o Espírito de Jesus Cristo revelar este segredo. Ele mesmo conduzirá a esse estado a alma fiel, fazendo-a progredir de virtude em virtude, de graça em graça e de luz em luz, para que ela chegue a transformar-se em Jesus Cristo, e atinja a plenitude de sua idade sobre a terra e de sua glória no céu.
____________________
1. Esta oração encontra-se no fim do volume.
 
Capítulo IV. Da perfeita devoção à Santíssima Virgem ou a perfeita consagração a Jesus Cristo
120. A mais perfeita devoção é aquela pela qual nos conformamos, unimos e consagramos mais perfeitamente a Jesus Cristo, pois toda a nossa perfeição consiste em sermos conformados, unidos e consagrados a Ele. Ora, pois que Maria é, de todas as criaturas, a mais conforme a Jesus Cristo, segue daí que, de todas as devoções, a que mais consagra e conforma uma alma a Nosso Senhor é a devoção à Santíssima Virgem, sua santa Mãe, e que, quanto mais uma alma se consagrar a Maria, mais consagrada estará a Jesus Cristo.
Eis por que a perfeita consagração a Jesus Cristo nada mais é que uma perfeita e inteira consagração à Santíssima Virgem, e nisto consiste a devoção que eu ensino; ou, por outra, uma perfeita renovação dos votos e promessas do santo batismo.
 
ARTIGO I - Uma perfeita e inteira consagração de si mesmo à Santíssima Virgem
121. Esta devoção consiste, portanto, em entregar-se inteiramente à Santíssima Virgem, a fim de, por ela, pertencer inteiramente a Jesus Cristo[1]. É preciso dar-lhe: 1º) nosso corpo com todos os seus membros e sentidos; 2º) nossa alma com todas as suas potências; 3º) nossos bens exteriores, que chamamos de fortuna, presentes e futuros; 4º) nossos bens interiores e espirituais, que são nossos méritos, nossas virtudes e nossas boas obras passadas, presentes e futuras. Numa palavra, tudo que temos na ordem da natureza e na ordem da graça, e tudo que, no porvir, poderemos ter na ordem da natureza, da graça e da glória, e isto sem nenhuma reserva, sem a reserva sequer de um real, de um cabelo, da menor boa ação, para toda a eternidade, sem pretender nem esperar a mínima recompensa de sua oferenda e de seu serviço, a não ser a honra de pertencer a Jesus Cristo por ela e nela, mesmo que esta amável Senhora não fosse, como é sempre, a mais liberal e reconhecida das criaturas.
122. Importa notar, aqui, duas coisas que há nas boas obras que fazemos, a saber: a satisfação e o mérito, ou o valor satisfatório ou impetratório e o valor meritório. O valor satisfatório ou impetratório de uma boa obra é uma boa ação na medida em que satisfaz a pena devida pelo pecado, ou em que obtém alguma nova graça; o valor meritório ou o mérito é uma boa ação, em quanto merece a graça e a glória eterna. Ora, nesta consagração de nós mesmos à Santíssima Virgem, nós lhe damos todo o valor satisfatório, impetratório e meritório, ou, por outra, as satisfações e os méritos de todas as nossas boas obras: damos-lhe nossos méritos, nossas graças e nossas virtudes, não para comunicá-los a outrem (porque nossos méritos, graças e virtudes, propriamente falando, são incomunicáveis; só Jesus Cristo, fazendo-se nosso penhor diante de seu Pai, pôde comunicar-nos seus méritos), mas para no-los conservar, aumentar e encarecer, como diremos ainda. (Cf. n. 146ss.). Damos-lhe nossas satisfações para que ela as comunique a quem bem lhe pareça e para maior glória de Deus.

***
123. Daí segue: 1º) que, por esta devoção, damos a Jesus Cristo, do modo mais perfeito, pois que o fazemos pelas mãos de Maria, tudo que lhe podemos dar, e muito mais que por outras devoções, pelas quais lhe damos uma parte de nosso tempo ou de nossas boas obras, ou uma parte de nossas satisfações e mortificações. Aqui damos e consagramos tudo, até o direito de dispor dos bens interiores, e as satisfações que ganhamos por nossas boas obras, dia a dia: e isto não se faz nem mesmo numa ordem religiosa. Nestas, consagram-se a Deus os bens de fortuna pelo voto de pobreza, os bens do corpo pelo voto de castidade, a vontade própria pelo voto de obediência, e, às vezes, a liberdade do corpo pelo voto de clausura. Não se lhe dá, porém, a liberdade ou o direito que temos de dispor de nossas boas obras, nem se renuncia tanto como se pode ao que o cristão tem de mais precioso e caro: seus méritos e satisfações.
124. 2º) Uma pessoa, que assim voluntariamente se consagrou e sacrificou a Jesus Cristo por Maria, já não pode dispor do valor de nenhuma de suas boas ações. Tudo que sofre, tudo que pensa, diz e faz de bem pertence a Maria, para que ela de tudo disponha conforme a vontade e para maior glória de seu Filho, sem que, entretanto, esta dependência prejudique de modo algum as obrigações de estado no qual esteja presentemente, ou venha a estar no futuro: por exemplo, as obrigações de um sacerdote que, por dever de ofício ou por outro motivo, deve aplicar o valor satisfatório e impetratório da santa missa a um particular; pois não se faz esta oferta a não ser conforme a ordem de Deus e os deveres de estado.
125. 3º) A consagração é feita conjuntamente à Santíssima Virgem e a Jesus Cristo; à Santíssima Virgem como ao meio perfeito que Jesus Cristo escolheu para se unir a nós e nós a ele; e a Nosso Senhor como o nosso fim último, ao qual devemos tudo o que somos, como a nosso Redentor e nosso Deus.
____________________
1. Cf. “Mentem, animam, corpus, nos ipsosque totos tibi consecramus” (SÃO JOÃO DAMASCENO. Sermo I in Dormitione B.V.).
 
ARTIGO II - Uma perfeita renovação dos votos do batismo
126. Disse acima (cf. n. 120) que a esta devoção podia-se chamar muito bem uma perfeita renovação dos votos ou promessas do santo batismo.
Todo cristão, antes do batismo, era escravo do demônio, pois lhe pertencia. Na ocasião do batismo o cristão, por sua própria boca ou pela de seu padrinho e de sua madrinha, renunciou a Satanás, a suas pompas e obras, e tomou Jesus Cristo para seu Mestre e soberano Senhor, passando a depender dele, na qualidade de escravo por amor. É o que se faz pela presente devoção: renuncia-se (como está indicado na fórmula de consagração) ao demônio, ao mundo, ao pecado e a si próprio, dando-se inteiramente a Jesus Cristo pelas mãos de Maria. Faz-se até algo mais, pois se, no batismo, falamos ordinariamente pela boca de outrem, pela boca do padrinho ou da madrinha, dando-nos a Jesus Cristo por procuração, nesta devoção fazemo-lo nós mesmos, voluntariamente, com conhecimento de causa.
No batismo não é pelas mãos de Maria que nos damos a Jesus Cristo, pelo menos de uma maneira expressa, nem fazemos doação a ele do valor de nossas boas ações; depois do batismo, ficamos inteiramente livres de aplicar esse valor a quem quisermos ou de conservá-lo para nós. Por essa devoção, damo-nos, porém, a Nosso Senhor pelas mãos de Maria, e lhe consagramos o valor de todas as nossas ações.
127. No santo batismo, diz Santo Tomás, os homens fazem o voto de renunciar ao demônio e às suas pompas: “In baptismo vovent homines abrenuntiare diabolo et pompis eius”[1]. E este voto, afirma Santo Agostinho, é o maior e o mais indispensável. “Votum maximum nostrum quo vovimus nos Christo esse mansuros”[2]. É também o que dizem os canonistas: “Praecipuum votum est quod in baptismate facimus” – o voto principal é o que fazemos no batismo. Quem, entretanto, guarda tão grande voto? Quem é que mantém fielmente as promessas do santo batismo? Não é um fato que quase todos os cristãos falseiam à fidelidade que no batismo prometeram a Jesus Cristo? Donde poderá vir esse desregramento universal, senão do esquecimento em que se vive das promessas e compromissos do santo batismo, e por que cada um não ratifica espontaneamente o contrato de aliança feito com Deus por seu padrinho e sua madrinha?
128. É tão verdade isto, que o Concílio de Sens, convocado por ordem de Luís o Bonachão para pôr cobro às grandes desordens dos cristãos, declarou que a causa principal da corrupção então reinante vinha do esquecimento e ignorância em que se vivia dos compromissos tomados no santo batismo; e não encontrou melhor remédio para tão grande mal do que induzir os cristãos a renovar as promessas do santo batismo.
129. O Catecismo do Concílio de Trento, fiel intérprete deste santo Concílio, exorta os curas a fazer o mesmo, e a relembrar aos fiéis que estão ligados e consagrados a Nosso Senhor Jesus Cristo, como escravos a seu Redentor e Senhor. Eis as palavras textuais: “Parochus fidelem populum ad eam rationem cohortabitur ut sciat aequissimum esse... nos ipsos, non secus ac mancipia Redemptori nostro et Domino in perpetuum addicere et consecrare”[3].
130. Ora, se os Concílios, os Santos Padres e a própria experiência nos mostram que o melhor meio de remediar os desregramentos dos cristãos é fazê-los relembrar as obrigações assumidas no batismo e renovar os votos que então fizeram, não é natural que se faça isto presentemente, de um modo perfeito, por esta devoção e consagração a Nosso Senhor, por intermédio de sua Mãe Santíssima? Digo “de um modo perfeito” porque nos servimos, nesta consagração a Jesus Cristo, do mais perfeito de todos os meios, que é a Santíssima Virgem.
____________________
1. Summa Theol. 2-2, q. 88, art. 2, arg. 1.
2. Epístola 59 ad Paulin.
3. Catec. Conc. Trid., p. I, cap. 3, art. 2, § 15, “De secundo Symboli articulo” in fine.
 
Respostas a algumas objeções
131. Não se pode objetar que esta devoção seja nova ou sem importância. Não é nova porque os concílios, os padres e muitos autores antigos e modernos falam desta consagração a Nosso Senhor ou renovação das promessas do batismo, como de uma prática antiga, aconselhando-a a todos os cristãos. Esta prática também não é sem importância, pois a principal fonte de todas as desordens e consequente condenação dos cristãos está no esquecimento e indiferença por esta renovação.
132. Alguns podem alegar que esta devoção, levando-nos a dar a Nosso Senhor, pelas mãos de Maria Santíssima, o valor de todas as nossas boas obras, orações, mortificações e esmolas, tornanos impotentes para socorrer as almas de nossos parentes, amigos e benfeitores.
A esses respondo primeiro que não é crível que nossos amigos, parentes ou benfeitores sofram prejuízo por nos termos devotado e consagrado sem reserva ao serviço de Nosso Senhor e de sua Mãe Santíssima. Seria fazer uma injúria ao poder e bondade de Jesus e Maria, que saberão muito bem valer os nossos parentes, amigos e benfeitores, aproveitando o nosso crédito espiritual, ou por outro meio qualquer.
Segundo, esta prática não impede que rezemos pelos outros, vivos ou mortos, se bem que a aplicação de nossas boas obras dependa da vontade da Santíssima Virgem; e, bem ao contrário, esta circunstância nos levará a rezar com muito mais confiança, do mesmo modo que uma pessoa rica, que tivesse doado a um grande príncipe todos os seus bens, rogaria com redobrada confiança a esse príncipe que beneficiasse a algum amigo necessitado. Seria até causar prazer a esse príncipe darlhe ocasião de demonstrar seu reconhecimento a uma pessoa que de tudo se tivesse despojado para engrandecê-lo, que se tivesse reduzido a completa pobreza para honrá-lo. O mesmo se deve dizer de Nosso Senhor e da Santíssima Virgem: eles jamais se deixarão vencer em reconhecimento.

***
133. Outros dirão, talvez: Se eu der à Santíssima Virgem todo o valor de minhas ações para que ela o aplique a quem quiser, terei de sofrer talvez muito tempo no purgatório.
Esta objeção, produto do amor-próprio e da ignorância da liberalidade de Deus e de sua Mãe Santíssima, destrói-se por si mesmo. Uma alma cheia de fervor e generosa, que antepõe os interesses de Deus aos seus próprios, que tudo que tem dá a Deus inteiramente, sem reserva, que só aspira à glória e ao reino de Jesus Cristo por intermédio de sua Mãe Santíssima, e que se sacrifica completamente para obtê-lo, esta alma generosa, repito, e liberal, será castigada no outro mundo por ter sido mais liberal e desinteressada que as outras? Muito ao contrário, é a esta alma, como veremos a seguir, que Nosso Senhor e sua Mãe Santíssima se mostram mais generosos neste mundo e no outro, na ordem da natureza, da graça e da glória.

***
134. Vejamos agora, o mais brevemente que pudermos, os motivos que nos recomendam esta devoção, os maravilhosos efeitos que ela produz nas almas fiéis, e as práticas desta devoção.
 
Capítulo V. Motivos que nos recomendam esta devoção
 
ARTIGO I - Esta devoção nos põe inteiramente ao serviço de Deus
135. Primeiro motivo, que nos mostra a excelência desta consagração de nós mesmos a Jesus Cristo pelas mãos de Maria.
Desde que não se pode conceber sobre a terra emprego mais relevante que o serviço de Deus; se o menor servidor de Deus é mais rico, mais poderoso e mais nobre que todos os reis e imperadores da terra que não sejam também servidores de Deus, quais não serão as riquezas, o poder e a dignidade do fiel e perfeito servidor que se tiver devotado ao serviço divino, tão inteiramente e sem reserva quanto for capaz!? Assim será um fiel e amoroso escravo de Jesus e Maria, que, pelas mãos de Maria Santíssima, se entregar inteiramente ao serviço deste Rei dos reis, e que não reservar nada para si: nem todo o ouro da terra e as belezas do céu o podem pagar.
136. As outras congregações, associações e confrarias eretas em honra de Nosso Senhor e de Nossa Senhora, que promovem grande bem no cristianismo, não mandam que se dê tudo sem reserva; não prescrevem a seus associados mais que certas práticas e atos para satisfazerem suas obrigações; deixam-nos livres em todas as outras ações e instantes de sua vida. Mas nesta devoção, que apresento, damos sem reserva a Jesus e a Maria todos os nossos pensamentos, palavras, ações e sofrimentos, e todos os momentos da vida: de sorte que, ou despertados ou adormecidos, bebendo ou comendo, nas ações as mais importantes como nas mais corriqueiras, pode-se sempre dizer em verdade que o que fazemos, embora nem sequer nos ocorra a ideia, pertence a Jesus e a Maria em virtude da nossa oferta, a menos que o retratemos expressamente. Que consolação!
137. Além disso, como já ficou dito, não há outra prática como esta, pela qual nos desfazemos facilmente de um certo espírito de propriedade, que se insinua até nas melhores ações; e nosso bom Jesus nos dá esta grande graça em recompensa do ato heroico e desinteressado que fizemos, cedendo-lhe, pelas mãos de sua Mãe Santíssima, todo o valor de nossas boas obras. Se, mesmo neste mundo, ele dá o cêntuplo àqueles que, por seu amor, abandonam os bens exteriores, temporais e caducos (Cf. Mt 19,20), em que proporção dará aos que lhe sacrificarem até seus bens interiores e espirituais?!
138. Jesus, nosso divino amigo, deu-se a nós sem reserva, seu corpo e sua alma, suas virtudes, graças e méritos: “Se toto totum me comparavit” – diz São Bernardo: Ele ganhou-me inteiramente dando-se inteiramente a mim. A justiça e a gratidão exigem, portanto, que lhe demos tudo que pudermos. Foi Ele o primeiro a ser liberal para conosco; sejamos também generosos para com Ele e experimentaremos mais ainda sua liberalidade, durante a vida, na hora da morte e por toda a eternidade. “Cum liberali liberalis erit.”
 
ARTIGO II - Esta devoção nos leva a imitar o exemplo dado por Jesus Cristo, e a praticar a humildade
139. Segundo motivo, que nos mostra que é justo e vantajoso aos cristãos consagrar-se, por esta prática, inteiramente à Santíssima Virgem, a fim de pertencer mais perfeitamente a Jesus Cristo.
Este bom Mestre não desdenhou encerrar-se no seio da Santíssima Virgem, como um cativo, um escravo amoroso, e submeter-se a ela, obedecendo-lhe durante trinta anos. É aqui, repito, que o espírito humano se confunde, quando reflete seriamente nesta atitude da divina Sabedoria encarnada, que não quis, embora podendo, dar-se diretamente aos homens, preferindo fazê-lo por intermédio da SS. Virgem; que não quis aparecer no mundo em plena idade viril, independente de quem quer que fosse, mas como uma criancinha dependendo dos cuidados de sua Mãe Santíssima, e mantida por ela. Esta Sabedoria infinita, cheia de um desejo imenso de glorificar a Deus seu Pai e de salvar os homens, não encontrou meio algum mais perfeito nem mais simples de fazê-lo, do que se submetendo em todas as coisas à Santíssima Virgem, não só durante oito, dez ou quinze anos, mas durante trinta anos; e Ele deu mais glória a Deus seu Pai durante todo esse tempo de submissão à Santíssima Virgem, como não lhe deu empregando os últimos três anos de sua vida a fazer prodígios, a pregar por toda parte, a converter os homens. Oh! que grande glória, damos a Deus, submeten-do-nos a Maria, a exemplo de Jesus.
Com um exemplo tão visível e conhecido de todo mundo, seremos insensatos a ponto de pensar que encontraremos um meio mais perfeito e mais certo para glorificar a Deus, que não seja subme-tendo-nos a Maria, a exemplo de seu Filho?
140. Lembremos aqui, para prova da dependência que devemos ter para com Maria, o que já ficou dito (n. 14-39), citando os exemplos que nos dão o Pai, o Filho e o Espírito Santo nesta dependência. Deus Pai nos deu e dá seu Filho por ela somente, só produz outros filhos por meio dela, e só por intermédio dela nos comunica suas graças. Deus Filho foi formado para todo o mundo, por ela, e não é senão por ela que é formado todos os dias, e gerado por ela em união com o Espírito Santo, e é ela a única via pela qual nos comunica suas virtudes e seus méritos. O Espírito Santo formou Jesus Cristo por meio dela, e por meio dela forma os membros de seu corpo místico, e só por ela nos dispensa seus dons e favores. Depois de exemplos tão claros e instantes, poderemos, sem uma extrema cegueira, prescindir de Maria, deixar de consa-grar-nos a ela e de depender dela para irmos a Deus e a Ele nos sacrificarmos?
141. Eis algumas passagens dos Santos Padres, que escolhi como prova do que acabo de dizer:
“Maria tem dois filhos, um, homem-Deus e o outro, puro homem; de um Maria é Mãe corporal, do outro, mãe espiritual” (São Boaventura e Orígenes)[1].
“Tal é a vontade de Deus que quis que tenhamos tudo por Maria. Se, portanto, temos alguma esperança, alguma graça, algum dom salutar, saibamos que isto nos vem por suas mãos” (São Bernardo)[2].
“Todos os dons, virtudes e graças do Espírito Santo são distribuídos pelas mãos de Maria, a quem ela quer, quando quer, como quer, e quanto quer” (São Bernardino)[3].
“Eras indigno de receber as graças divinas: por isso elas foram dadas a Maria, a fim de que por ela recebesses tudo o que terias” (São Bernardo)[4].
142. Deus, vendo que somos indignos de receber suas graças diretamente de suas mãos divinas, dá-as a Maria, a fim de obtermos por ela o que Ele nos quer dar; e também redunda em glória para Ele, receber pelas mãos de Maria o reconhecimento, o respeito e o amor que lhe devemos por seus benefícios. É, pois, muito justo que imitemos o procedimento de Deus, a fim – diz São Bernardo[5] – de que a graça volte a seu autor pelo mesmo canal por onde veio: “Ut eodem alveo ad largitorem gratia redeat quo fluxit”.
É o que fazemos por meio de nossa devoção: oferecemos e consagramos à Santíssima Virgem tudo o que somos e tudo o que possuímos, a fim de que Nosso Senhor receba por sua mediação a glória e o reconhecimento que lhe devemos. Reconhecemo-nos indignos e incapazes de, por nós mesmos, aproximar-nos de sua majestade infinita; e por isso servimo-nos da intercessão da Santíssima Virgem.
143. Além disso, é uma prática de grande humildade, virtude que Deus ama acima de todas as outras. Uma alma que se eleva a si mesma, rebaixa Deus; Deus resiste aos soberbos e dá sua graça aos humildes (Tg 4,6). Se vos rebaixais crendo-vos indignos de aparecer diante dele e de vos aproximar dele, Ele desce, rebaixa-se para vir até vós, para comprazer-se em vós, e para vos elevar. Quando, porém, tentamos aproximar-nos atrevidamente de Deus, sem medianeiro, Deus se esquiva e não conseguimos atingi-lo. Oh! quanto Ele ama a humildade de coração. É a esta humildade que convida esta prática de devoção, pois ensina a não nos aproximarmos diretamente de Nosso Senhor, por misericordioso e doce que Ele seja, mas a nos servirmos sempre da intercessão da Santíssima Virgem tanto para comparecer diante de Deus, como para lhe falar, aproximar-nos dele, oferecer-lhe qualquer coisa, para nos unirmos ou nos consagrarmos a Ele.
____________________
1. Speculum B.M.V., lect. III, § 1, 2º.
2. SÃO BERNARDO. De Aquaeductu, n. 6.
3. SÃO BERNARDINO DE SENA. Sermo in Nativ. B.V. art. un., cap. 8.
4. SÃO BERNARDO. Sermo 3 in vigilia Nativitatis Domini, n. 10.
5. “De Aquaeductu”, n. 18.
 
ARTIGO III - Esta devoção nos proporciona as boas graças da Santíssima Virgem
§ I. Maria se dá a quem é seu escravo por amor.
144. Terceiro motivo. A Santíssima Virgem, Mãe de doçura e misericórdia, que jamais se deixa vencer em amor e liberalidade, vendo que alguém se lhe entrega inteiramente, para honrá-la e servir-lhe, despojando-se do que tem de mais caro para com isso adorná-la, entrega-se também inteiramente e de um modo inefável, a quem tudo lhe dá. Ela o faz imergir no abismo de suas graças, reveste-o de seus merecimentos, dá-lhe o apoio de seu poder, ilumina-o com sua luz, abrasa-o de seu amor, comunica-lhe suas virtudes: sua humildade, sua fé, sua pureza, etc.; constitui-se seu penhor, seu suplemento, seu tudo para com Jesus. Como, enfim, essa pessoa consagrada é toda de Maria, Maria também é toda dela; de modo que se pode dizer desse perfeito servo e filho de Maria o que São João Evangelista diz de si próprio, que ele a tomou como um bem, para sua casa: “Accepit eam discipulus in sua” (Jo 19,27).
145. É isto que produz na alma fiel uma grande desconfiança, desprezo e ódio de si mesma, ao lado de uma confiança ilimitada na Santíssima Virgem, sua boa Senhora. Já não procura, como antes, o seu apoio em suas próprias disposições, intenções, méritos, virtudes e boas obras, pois, tendo sacrificado tudo a Jesus por esta boa Mãe, só lhe resta um tesouro que resume todos os seus bens e de que Ele não dispõe, e esse tesouro é Maria.
É o que o faz aproximar-se de Nosso Senhor, sem receio servil nem escrupuloso, e rezar com extrema confiança; é o que o faz adquirir os sentimentos do devoto e sábio abade Ruperto, o qual, aludindo à vitória de Jacob sobre um anjo (cf. Gn 32,24), dirige à Santíssima Virgem estas belas palavras: “Ó Maria, minha princesa e Mãe Imaculada de Deus-homem, Jesus Cristo, é meu desejo lutar com este Homem, isto é, o Verbo divino, armado não com meus próprios méritos, mas com os vossos: “O Domina, Dei Genitrix, Maria, et incorrupta Mater Dei et hominis, non meis, sed tuis armatus meritis, cum isto Viro, scilicet Verbo Dei, luctare cupio”[1].
Oh! quão poderoso e forte é, para Jesus Cristo, quem está armado dos méritos e da intercessão da digna Mãe de Deus, que, como diz Santo Agostinho, venceu amorosamente o Todo-poderoso.
____________________
1. Rup., Prolog. in Cant.

§ II. Maria purifica nossas boas obras, embeleza-as e as torna aceitáveis a seu Filho.
146. Esta bondosa Senhora purifica, embeleza e torna aceitáveis a seu Filho todas as nossas boas obras, porque, por esta devoção, as damos todas a Ele pelas mãos de sua Mãe Santíssima.
1º) Ela as purifica de toda mancha de amor-próprio e do apego imperceptível à criatura, apego que se insinua insensivelmente nas melhores ações. Desde que elas estão em suas mãos puríssimas e fecundas, estas mesmas mãos, que não foram jamais manchadas nem ociosas, e que purificam tudo que tocam, tiram do presente que lhe fazemos tudo que pode deteriorá-lo ou torná-lo imperfeito.
147. 2º) Ela embeleza nossas boas ações, ornando-as com seus méritos e virtudes. É como se um campônio, querendo ganhar a amizade do rei, se dirigisse à rainha, e lhe apresentasse uma maçã, que representasse todo o seu lucro, e lhe pedisse que a oferecesse ao rei. A rainha, acolhendo a pobre dádiva do camponês, punha-a no centro de grande e magnífico prato de ouro, e apresentava-a assim ao rei, da parte do ofertante. Nestas circunstâncias, a maçã, indigna por si mesma de ser oferecida ao rei, torna-se um presente digno de sua majestade, devido ao prato de ouro e à importância da pessoa que a apresenta.
148. 3º) Ela apresenta essas boas obras a Jesus Cristo, pois nada retém para si do que lhe ofertamos. Tudo remete fielmente a Jesus. Se algo lhe damos a ela, damos necessariamente a Jesus. Se a louvamos e glorificamos, logo ela louva e glorifica a Jesus. Hoje como outrora, quando Santa Isabel a exaltou, ela canta, quando a louvamos e bendizemos: “Magnificat anima mea Dominum...” (Lc 1,46).
149. 4º) Faz Jesus aceitar essas boas obras, por pequeno e pobre que seja o presente que ofertamos ao Santo dos santos e Rei dos reis. Quando apresentamos alguma coisa a Jesus, de nossa própria iniciativa e apoiados em nossa própria capacidade e disposição, Jesus examina o presente, e muitas vezes o rejeita em vista das manchas que a dádiva contraiu do nosso amor-próprio, como antigamente rejeitou os sacrifícios dos judeus por estarem cheios de vontade própria. Quando, porém, lhe apresentamos algo pelas mãos puras e virginais de sua bem-amada, tomamo-lo pelo seu lado fraco, se me é permitida a expressão. Ele não considera tanto a oferta que lhe fazemos como sua boa Mãe que lha apresenta; não olha tanto a procedência do presente como a portadora. Deste modo, Maria, que nunca foi repelida, e, pelo contrário, foi sempre bem recebida, faz que seja agradavelmente recebido pela Majestade divina tudo que lhe apresenta, pequeno ou grande: basta que Maria lho apresente para que Jesus o receba e acolha. Conselho valioso é o que dava São Bernardo aos que dirigia no caminho da perfeição: “Quando quiserdes oferecer qualquer coisa a Deus, tende o cuidado de oferecê-lo pelas mãos agradáveis e digníssimas de Maria, a menos que queirais ser rejeitados”[1].
150. E, como vimos (n. 146), a própria natureza não inspira aos pequenos como agir em relação aos grandes? Por que não há de levar-nos a graça a fazer o mesmo em relação a Deus, que está infinitamente acima de nós, e diante do qual somos menos que átomos? tendo além disso uma advogada tão poderosa, que não foi jamais repelida; tão habilidosa que conhece os segredos para ganhar o Coração de Deus; tão boa e caridosa que não se esquiva a ninguém, por pequeno e mau que seja.
Referirei mais adiante a verdadeira figura das verdades que afirmo, na história de Jacob e Rebeca (cf. cap. VI).
____________________
1. São Bernardo: “De Aquaeductu”.
 
ARTIGO IV - Esta devoção é um meio excelente de promover a maior glória de Deus
151. Quarto motivo. Esta devoção fielmente praticada é um excelente meio para fazer com que o valor de todas as nossas boas obras contribua para a maior glória de Deus. Quase ninguém age com este nobre intuito, apesar de a isto estarmos obrigados, ou porque não conhece em que consiste a maior glória de Deus, ou porque não a quer. Mas a Santíssima Virgem, a quem conferimos o valor de nossas boas obras, sabe perfeitamente em que consiste a maior glória de Deus, e nada faz que não contribua para este fim. Daí, um perfeito servo dessa amável Soberana, que a ela se consagrou inteiramente, como dissemos, pode dizer ousadamente que o valor de todas as suas ações, pensamentos e palavras, é aproveitado para a maior glória de Deus, a não ser que revogue expressamente a intenção de sua oferta. Pode-se encontrar algo de mais consolador para uma alma que ama a Deus com um amor puro e desinteressado, e que preza mais a glória e os interesses de Deus, que os seus próprios interesses?
 
ARTIGO V - Esta devoção conduz à união com Nosso Senhor
152. Quinto motivo. Esta devoção é um caminho fácil, curto, perfeito e seguro para chegar à união com Nosso Senhor, e nisto consiste a perfeição do cristão.

§ I. Esta devoção é um caminho fácil.
É um caminho fácil; é um caminho que Jesus Cristo abriu quando veio a nós, e no qual não há obstáculo que nos impeça de chegar a Ele. Pode-se, é verdade, chegar a Ele por outros caminhos; mas encontram-se muito mais cruzes e mortes estranhas, e muito mais empecilhos, que dificilmente se vencem. Será preciso passar por noites obscuras, por combates e agonias terríveis, escalar montanhas escarpadas, pisando espinhos agudos, atravessar desertos horríveis. Enquanto que pelo caminho de Maria passa-se com muito mais doçura e tranquilidade.
Aí se encontram, sem dúvida, rudes combates a travar, e dificuldades enormes para vencer. Mas esta boa Mãe e Senhora está sempre tão próxima e presente a seus fiéis servos, para alumiá-los em suas trevas, esclarecê-los em suas dúvidas, encorajá-los em seus receios, sustê-los em seus combates e dificuldades, que, em verdade, este caminho virginal, para chegar a Jesus Cristo é um caminho de rosas e de mel, em vista de outros caminhos. Houve alguns santos, mas em pequeno número, como Santo Efrém, São João Damasceno, São Bernardo, São Bernardino, São Boaventura, São Francisco de Sales, etc., que trilharam este caminho ameno para ir a Jesus Cristo, porque o Espírito Santo, esposo fiel de Maria, o indicou a eles por uma graça especial; os outros santos, porém, que são em muito maior número, embora tenham tido devoção à Santíssima Virgem, não entraram, ou entraram muito pouco, nesta via. E por isso tiveram de arrostar provas bem mais rudes e mais perigosas.

***
153. A que atribuir, então – dirá algum fiel servidor desta boa Mãe –, que seus servos tenham de enfrentar tantas ocasiões de sofrer, e mais que os outros que não lhe são devotos? Contradizem-nos, perseguem-nos, caluniam- nos, não os suportam[1]; ou, então, andam em trevas interiores, e em aridez de deserto onde não pinga nem uma gota de orvalho celeste. Se esta devoção torna mais fácil o caminho que conduz a Jesus Cristo, donde vem que eles são tão desprezados?
154. Respondo-lhes que é bem verdade que os mais fiéis servos da Santíssima Virgem, porque são seus grandes favoritos, recebem dela as maiores graças e favores do céu, isto é, as cruzes; mas sustento que são também os servidores de Maria que levam estas cruzes com mais facilidade, mérito e glória; e mais que, onde outro qualquer pararia mil vezes e até cairia, eles não se detêm e, ao contrário, avançam sempre, porque esta boa Mãe, cheia de graça e unção do Espírito Santo, adoça todas as cruzes que para eles talha, no mel de sua doçura maternal e na unção do puro amor; deste modo, eles as suportam alegremente, como nozes confeitadas, que, de natureza, são amargas. E creio que uma pessoa que quer ser devota e viver piedosamente em Jesus Cristo, e, por conseguinte, sofrer perseguições e carregar todos os dias sua cruz, não carregará nunca grandes cruzes, ou não as carregará alegremente até ao fim, sem uma terna devoção à Santíssima Virgem, que torna doces as cruzes; do mesmo modo que uma pessoa não poderia, sem uma grande violência, impossível de manter indefinidamente, comer nozes verdes que não fossem saturadas de açúcar.

§ II. Esta devoção é um caminho curto.
155. Esta devoção à Santíssima Virgem é um caminho curto[2] para encontrar Jesus Cristo, seja porque dele não nos extraviamos, seja porque, como acabo de dizer, nele marchamos com mais alegria e facilidade, e, consequentemente, com mais prontidão. Avançamos mais, em pouco tempo de submissão e dependência a Maria, do que em anos inteiros de vontade própria e contando apenas com o próprio esforço; pois o homem obediente e submisso a Maria Santíssima cantará vitórias (Pv 21,28) assinaladas sobre seus inimigos. Estes hão de querer impedi-lo de avançar, ou obrigá-lo a recuar, ou derrubá-lo; mas, apoiado, auxiliado e guiado por Maria, ele, sem cair, sem recuar, sem mesmo se atrasar, avançará a passos de gigante em direção a Jesus Cristo, pelo mesmo caminho, que, como está escrito (Sl 18,6), Jesus trilhou para vir a nós em largos passos e em pouco tempo.
156. Por que viveu Jesus Cristo tão pouco sobre a terra, e por que esses poucos anos que aqui viveu passou-os quase todos em submissão e obediência a sua Mãe? Ah! é que, tendo vivido pouco, encheu a carreira de uma longa vida (Sb 4,13); viveu longamente e mais do que Adão, do qual veio reparar as perdas, embora este tenha vivido mais de novecentos anos; e Jesus Cristo viveu longamente, porque viveu bem submisso e bem unido a sua Mãe Santíssima, para obedecer a Deus seu Pai; pois: 1º) aquele que honra sua mãe assemelha-se a um homem que entesoura, diz o Espírito Santo, isto é, aquele que honra a Maria, sua Mãe, ao ponto de submeter-se a ela e obedecer-lhe em tudo, em breve se tornará rico, pois acumula tesouros todos os dias, pelo segredo desta pedra filosofal: “Qui honorat matrem, quasi qui thesaurizat” (Eclo 3,5); 2º) porque, conforme uma interpretação espiritual da palavra do Espírito Santo: “Senectus mea in misericordia uberi, – Minha velhice se encontra na misericórdia do seio” (Sl 91,11), é no seio de Maria, que “envolveu e gerou um homem perfeito” (cf. Jr 31,22), e que “teve a capacidade de conter aquele que o universo todo não compreende nem contém”[3], é no seio de Maria que os jovens envelhecem em luz, em santidade, em experiência e em sabedoria, e onde, em poucos anos, se atinge a plenitude da idade de Jesus Cristo.

§ III. Esta devoção é um caminho perfeito.
157. Esta prática de devoção à Santíssima Virgem é um caminho perfeito para ir e unir-se a Jesus Cristo, pois Maria é a mais perfeita e a mais santa das criaturas, e Jesus Cristo, que veio perfeitamente a nós, não tomou outro caminho em sua grande e admirável viagem. O Altíssimo, o Incompreensível, o Inacessível, aquele que é, quis vir a nós, pequenos vermes da terra, que nada somos. Como se fez isto? O Altíssimo desceu perfeita e divinamente até nós por meio da humilde Maria, sem nada perder de sua divindade e santidade; e é por Maria que os pequeninos devem subir perfeita e divinamente ao Altíssimo sem recear coisa alguma. O Incompreensível deixou-se compreender e conter perfeitamente por Maria, sem nada perder de sua imensidade; é também pela pequena Maria que devemos deixar-nos conduzir e conter perfeitamente sem a menor reserva. O Inacessível aproximou-se, uniu-se estreitamente, perfeitamente e até pessoalmente à nossa humanidade por meio de Maria, sem perder uma parcela de sua majestade; é também por Maria que devemos aproximar-nos de Deus e unir- nos a sua majestade, perfeita e estreitamente, sem temor de repulsa. Aquele que é quis, enfim, vir ao que não é, e fazer que aquele que não é se torne Deus ou aquele que é. E Ele o fez perfeitamente, dando-se e submetendo-se inteiramente à Virgem Maria sem deixar de ser no tempo aquele que é na eternidade; outrossim, é por Maria que, se bem que sejamos nada, podemos tornar-nos semelhantes a Deus, pela graça e pela glória, dando-nos a ela tão perfeita e inteiramente, que nada sejamos em nós mesmos e tudo nela, sem receio de nos enganar.
158. Ainda que me apresentem um caminho novo para ir a Jesus Cristo, e que esse caminho seja pavimentado com todos os merecimentos dos bem- aventurados, ornado de todas as suas virtudes heroicas, iluminado e decorado de todas as luzes e belezas dos anjos, e que todos os anjos e santos lá estejam para conduzir, defender e amparar aqueles e aquelas que o quiserem palmilhar; em verdade, em verdade, digo ousadamente, e digo a verdade, eu havia de preferir a este, tão perfeito, o caminho imaculado de Maria: “Posui immaculatam viam meam” (Sl 18,33), via ou caminho sem a menor nódoa ou mancha, sem pecado original ou atual, sem sombras nem trevas; e quando meu amável Jesus vier, em sua glória, uma segunda vez à terra (como é certo) para aqui reinar, o caminho que escolherá será Maria Santíssima, o mesmo pelo qual ele veio com segurança e perfeitamente a primera vez. A diferença entre a primeira e a última vinda é que a primeira foi secreta e oculta, e a segunda será gloriosa e retumbante; ambas, porém, são perfeitas, porque, como a primeira, também a segunda será por Maria. Eis um mistério que não podemos compreender: “Hic taceat omnis lingua”.

§ IV. Esta devoção é um caminho seguro.
159. Esta devoção à Santíssima Virgem é um caminho seguro para irmos a Jesus Cristo e adquirirmos a perfeição, unindo-nos a ele:
1º) Porque esta prática, preconizada por mim, não é nova; é tão antiga, que não se pode, como diz Boudon[4], em um livro que escreveu sobre esta devoção, determinar-lhe com toda a precisão os começos. Em todo caso é certo que há mais de 700 anos encontram-se vestígios dela na Igreja[5].
Santo Odilon, abade de Cluni, que viveu cerca do ano 1040 foi um dos primeiros que a praticaram na França, conforme está anotado em sua vida.
O Cardeal Pedro Damião[6] refere que em 1016 o bem-aventurado Marinho, seu irmão, se fez escravo da Santíssima Virgem, em presença de seu diretor e de um modo bem edificante: pôs a corda ao pescoço, tomou a disciplina, e depositou sobre o altar uma quantia de dinheiro como sinal de seu devotamento e consagração à Santíssima Virgem; e assim continuou tão fielmente, que, na hora da morte, mereceu ser visitado e consolado por sua boa Soberana, de cujos lábios recebeu as promessas do paraíso em recompensa de seus serviços.
Cesário Bollando menciona um ilustre cavaleiro, Vautier de Birbak, parente chegado dos duques de Lovaina, que, aí pelo ano 1300, fez esta consagração à Santíssima Virgem.
Esta devoção foi praticada por muitos particulares até ao século XVII, quando se tornou pública.
160. O Padre Simão de Roias da Ordem da Trindade, também chamada da redenção dos cativos, pregador do Rei Filipe III, pôs em voga esta devoção em toda a Espanha (em 1611) e na Alemanha[7]; a instâncias de Filipe III, obteve de Gregório XV grandes indulgências para aqueles que a praticassem.
O padre de Los Rios, da Ordem de Santo Agostinho, aplicou-se com seu íntimo amigo, o padre de Roias, a espalhar esta devoção por toda a Espanha e Alemanha, o que fez por seus escritos e pregações. Compôs um grosso volume intitulado Hierarquia Mariana[8], no qual trata, com piedade e erudição, da Antiguidade, da excelência e da solidez desta devoção.
161. Os reverendos padres teatinos estabeleceram esta devoção na Itália, na Sicília e na Saboia, no século XVII.
O Rev. Pe. Estanislau Falácio, da Companhia de Jesus, incrementou maravilhosamente esta devoção na Polônia[9].
O Rev. Pe. Cornélio a Lápide, recomendável tanto por sua piedade como por seu profundo saber, tendo recebido de vários bispos e teólogos a incumbência de dar seu parecer sobre esta devoção, examinou-a acuradamente e teceu-lhe louvores dignos de sua piedade, e seu exemplo foi seguido por muitas outras pessoas importantes.
Os reverendos padres jesuítas, sempre zelosos do serviço da Santíssima Virgem, apresentaram ao Duque Fernando da Baviera, em nome dos congreganistas de Colônia, um pequeno tratado desta devoção[10]. O duque, que era, então, arcebispo de Colônia, deu-lhe sua aprovação e a permissão de imprimi-lo, exortando todos os curas e religiosos de sua diocese de propagar, quanto pudessem, esta sólida devoção.
162. O cardeal de Bérulle, cuja memória é abençoada por toda a França, foi um dos mais zelosos em espalhar esta devoção, apesar de todas as calúnias e perseguições que lhe levantaram e moveram os críticos e os libertinos. Acusaram-no de inventar novidade e superstição; escreveram e publicaram contra ele um panfleto difamatório, e serviram-se, ou antes o demônio, por seu ministério, de mil estratagemas para impedi-lo de divulgar na França esta devoção. Mas o grande e santo homem só opôs a suas calúnias uma inalterável paciência, e às suas objeções, contidas no tal libelo, um pequeno escrito em que as refuta energicamente, demonstrando que esta devoção é fundada no exemplo de Jesus Cristo, nas obrigações que lhe devemos, e nos votos que fizemos no santo batismo; e é especialmente com esta última razão que ele fecha a boca a seus adversários, fazendo ver que esta consagração à Santíssima Virgem e a Jesus Cristo por suas mãos, nada mais é que uma perfeita renovação das promessas do batismo. Diz, enfim, muitas coisas belas que se pode ler em suas obras.
163. No livro de Boudon, já citado (n. 150), encontram-se os nomes dos papas que aprovaram esta devoção, dos teólogos que a examinaram, pode-se ler das perseguições que lhe suscitaram e que venceu, e dos milhares de pessoas que a abraçaram, sem que jamais papa algum a tenha condenado; nem seria possível fazê-lo sem derrubar os fundamentos do cristianismo.
Fica, portanto, de pé que esta devoção não é nova, e que não é comum, por ser preciosa demais para ser apreciada e praticada por todo mundo.

***
164. 2º) Esta devoção é um meio seguro para ir a Jesus Cristo, porque pertence à Santíssima Virgem e lhe é próprio conduzir-nos a Jesus Cristo, como compete a Jesus Cristo conduzir-nos ao Pai celestial. E não creiam erroneamente as pessoas espirituais que Maria seja um empecilho no caminho que conduz à união divina. Pois seria possível que aquela que achou graça diante de Deus para o mundo todo em geral, e para cada um em particular, fosse um empecilho a uma alma que busca a grande graça da união com Ele? Seria possível que aquela que tem sido cheia e superabundante de graças, e tão unida e transformada em Deus, a ponto de Ele encarnar-se nela, impedisse uma alma de ficar perfeitamente unida a Deus?
É verdade que a vista de outras criaturas, ainda que santas, poderia, talvez, em certos tempos, retardar a união divina; mas não Maria, como já disse e direi sempre sem me cansar. Uma das razões por que tão poucas almas atingem a plenitude da idade de Jesus Cristo, é que Maria, a Mãe do Filho e a Esposa do Espírito Santo, não está suficientemente formada nos corações. Quem quiser o fruto bem maduro e formado deve ter a árvore que o produz; quem quer possuir o fruto de vida, Jesus Cristo, deve ter a árvore da vida, que é Maria. Quem quiser ter em si a operação do Espírito Santo, deve ter sua Esposa fiel e inseparável, Maria Santíssima, que o torna fértil e fecundo, como já dissemos alhures (n. 20-21).
165. Persuadi-vos, portanto, de que quanto mais contemplardes Maria em vossas orações, meditações, ações e sofrimentos, se não de um modo distinto e perceptível, ao menos geral e imperceptível, tanto mais perfeitamente encontrareis Jesus Cristo, que, com Maria, é sempre grande, poderoso, ativo e incompreensível, e muito mais que no céu e em qualquer criatura do universo. Assim, Maria Santíssima, toda abismada em Deus, está longe de tornar-se um obstáculo aos perfeitos no seu caminho para chegar à união com Deus, e, bem ao contrário, não houve até hoje, nem haverá nunca criatura que nos auxilie mais eficazmente do que ela nesta grande obra, seja pelas graças que para este efeito vos comunicará, pois ninguém fica cheio do pensa-mento de Deus se não for por ela, diz um santo[11]: “Nemo cogitatione Dei repletur nisi per te”; seja pelas ilusões e trapaças do espírito maligno contra o qual ela vos garantirá.
166. Onde está Maria, não entra o espírito maligno; e um dos sinais mais infalíveis de que se está sendo conduzido pelo bom espírito é a circunstância de ser muito devoto de Maria, de pensar nela muitas vezes, e de falar-lhe frequentemente. É esta a opinião de um santo[12] que acrescenta que, como a respiração é sinal inconfundível de que o corpo não está morto, o pensamento assíduo e a invocação amorosa de Maria é um sinal certo de que a alma não está morta pelo pecado.
167. Maria sozinha esmagou e exterminou as heresias, diz a Igreja com o Espírito Santo que a conduz: “Sola cunctas haereses interemisti in universo mundo”[13]; e embora os críticos resmunguem contra esta afirmação, jamais um fiel devoto de Maria cairá na heresia ou na ilusão, pelo menos formal; poderá errar materialmente, tomar a mentira por verdade, e o espírito maligno pelo bom, e isto mesmo não tão facilmente como outro qualquer. Mais cedo ou mais tarde, porém, reconhecerá sua falta e seu erro material, e, quando o reconhecer, não teimará de modo algum em crer e sustentar o que tomara por verdade.

***
168. Qualquer pessoa, portanto, sem receio de ilusão comum às pessoas de oração, que quiser avançar no caminho da perfeição e achar segura e perfeitamente Jesus Cristo, abrace de todo o coração, “corde magno et animo volenti” (2Mc 1,3), esta devoção à Santíssima Virgem, que talvez ainda desconheça. Entre neste caminho excelente que não conhecia e que eu lhe mostro (1Cor 12,31). É um caminho trilhado por Jesus Cristo, a Sabedoria encarnada, nosso único chefe. Os fiéis que o trilharem não podem estar enganados.
É um caminho fácil devido à plenitude da graça e da unção do Espírito Santo, de que está cheio: ninguém, que marche neste caminho, se cansa, nem recua. É um caminho curto que em pouco tempo nos leva a Jesus Cristo. É um caminho perfeito, onde não há lama, nem poeira, nem a menor sujeira do pecado. É, enfim, um caminho seguro que, de um modo reto e garantido, sem voltas para a direita ou para a esquerda, nos conduz a Jesus Cristo e à vida eterna. Entremos, portanto, neste caminho, e marchemos dia e noite, até à plenitude da idade de Jesus Cristo (cf. Ef 4,13).
____________________
1. “Servientes tibi plus aliis invadunt dracones inferni” (SÃO BOAVENTURA. Psalter. maius B.V., S1 118).
2. “Tu es via compendiosa in caelo” (SÃO BERNARDO. Laudes glor. Virginis). • Cf. “Recta et tanquam compendiaria via ad Iesum per Mariam itur” (BENTO XV. Epist. ad R.P.D. Schoepfer. – AAS 1914, p. 515).
3. Cf. Gradual da Missa da Santíssima Virgem (de Pentecostes ao Advento); 1o Responso do Ofício da Santíssima Virgem.
4. Henri-Marie Boudon, doutor em teologia, falecido em odor de santidade, em 1702, como arcediago de Evreux. Autor do livro intitulado “A santa escravidão da admirável Mãe de Deus”, e de outras obras, todas impregnadas de uma ardente devoção à Santíssima Virgem.
5. O santo Rei Dagoberto II (século VII) consagrou-se assim à Santíssima Virgem, na qualidade de escravo (apud KRONENBURG. “Maria’s Heerlikheid”, 1, 98). O mesmo fez o Papa João VII (701-707).
6. Declarado “doutor da Igreja” por Leão XII.
7. O próprio Imperador Fernando II fez esta consagração com toda a sua corte, em 1640.
8. Editado em Antuérpia em 1641.
9. O rei da Polônia Wladislaf encarregou os jesuítas de pregá-la em seu reino. 10. Intitulado “Mancipium Virginis” – A escravidão da Virgem. Colônia, 1634. 11. SÃO GERMANO DE CONSTANTINOPLA (Sermo 2 in Dormit.).
12. Id. Orat. in Encaenia veneranda aedis B.V.
13. Ofício da Santíssima Virgem, 1ª antífona do 3º noturno.
 
ARTIGO VI - Esta devoção dá uma grande liberdade interior
169. Sexto motivo. Esta prática de devoção dá, às pessoas que a praticam fielmente, uma grande liberdade interior, que é a liberdade dos filhos de Deus (cf. Rm 8,21). Visto que, por esta devoção, nos tornamos escravos de Jesus Cristo, consagrando-nos todo a Ele nesta condição, este bom Mestre, em recompensa do cativeiro por amor a que nos submetemos, tira, primeiro, à alma todo escrúpulo e temor servil, que a constrangem, escravizam e perturbam ; segundo, alarga o coração por uma santa confiança em Deus, fazendo-o considerá-lo como Pai; terceiro, inspira-lhe um amor terno e filial.
170. Sem me deter em amontoar razões para provar esta verdade, contento-me de citar uma passagem histórica que li na vida da Madre Inês de Jesus, religiosa jacobina[1] do convento de Langeac em Auvergne, a qual morreu em odor de santidade nesse mesmo lugar, em 1634. Não tinha ela ainda sete anos, quando, uma ocasião, sofrendo tormentos de espírito, ouviu uma voz que lhe disse que, se ela quisesse livrar-se de todos os seus sofrimentos e ser protegida contra todos os seus inimigos, se fizesse quanto antes escrava de Jesus e de sua Mãe Santíssima. Mal chegou em casa, entregou-se inteiramente a Jesus e Maria, como lhe aconselhara a voz, embora não soubesse antes em que consistia esta devoção; e, tendo encontrado uma corrente de ferro, cingiu-se com ela os rins e a usou até à morte. Depois desse ato todas as suas penas e escrúpulos cessaram, e ela se achou numa grande paz e bem-estar de coração, e isto a levou a ensinar esta devoção a muitas outras pessoas, que fizeram grandes progressos, entre outros, a M. Olier, que instituiu o seminário de São Sulpício, e a muitos outros padres e eclesiásticos do mesmo seminário... Um dia a Santíssima Virgem lhe apareceu e lhe pôs ao pescoço uma cadeia de ouro para lhe testemunhar a alegria de tê-la como escrava de seu Filho e sua; e Santa Cecília, que acompanhava a Santíssima Virgem, lhe disse: Felizes os fiéis escravos da Rainha do céu, pois gozarão da verdadeira liberdade: “Tibi servire libertas”.
____________________
1. Até à Revolução Francesa os religiosos da Ordem de São Domingos eram chamados jacobinos, do nome da igreja de Saint-Jacques (São Tiago) em Paris, perto da qual a Ordem se estabeleceu.
 
ARTIGO VII - Nosso próximo aufere grandes bens desta devoção
171. Sétimo motivo. O que pode ainda nos levar a abraçar esta devoção são os grandes bens que por ela receberá nosso próximo. Pois, praticando-a, exercemos para com ele a caridade de uma maneira eminente, já que lhe damos pelas mãos de Maria o que temos de mais caro, isto é, o valor satisfatório o impetratório de todas as nossas boas obras, sem excetuar o menor dos bons pensamentos e o mais leve sofrimento; consentimos em que tudo que adquirimos, e que havemos de adquirir de satisfações, seja, até à hora da morte, empregado conforme a vontade da Santíssima Virgem, à conversão dos pecadores ou à libertação das almas do purgatório.
Não é isto amar perfeitamente o próximo? Não é este o verdadeiro discípulo de Jesus Cristo, que se reconhece pela caridade? (Jo 13,35). Não é este o meio de converter os pecadores, sem temer a vaidade, e de livrar as almas do purgatório, sem fazer quase nada mais do que aquilo a que cada um está obrigado em seu estado?
172. Para conhecer a excelência deste motivo, seria preciso conhecer o bem que é converter um pecador ou livrar uma alma do purgatório: bem infinito, maior que criar o céu e a terra[1], pois que é dar a uma alma a posse de Deus. Mesmo que, por esta prática, não se livrasse mais que uma alma do purgatório, ou se convertesse apenas um pecador, não seria isto bastante para induzir todo homem verdadeiramente caridoso a abraçá-la?
É preciso notar ainda que nossas boas obras, passando pelas mãos de Maria, recebem um aumento de pureza, e, por conseguinte, de mérito e de valor satisfatório e impetratório; por isso elas se tornam muito mais capazes de aliviar as almas do purgatório e de converter os pecadores do que se não passassem pelas mãos virginais e liberais de Maria. O pouco que damos pela Santíssima Virgem, sem vontade própria, e por uma desinteressada caridade, torna-se, em verdade, bem mais potente para abrandar a cólera de Deus e atrair sua misericórdia; e há de verificar-se à hora da morte que uma pessoa fiel a esta prática terá, por este meio, libertado inúmeras almas do purgatório, e convertido muitos pecadores, conquanto só tenha feito as ações comuns e ordinárias do seu estado. Que alegria haverá em seu julgamento! Que glória na eternidade!
____________________
1. SANTO AGOSTINHO. Tract. 72 in Ioann. a medio.
 
ARTIGO VIII - Esta devoção é um meio admirável de perseverança
173. Oitavo motivo. Finalmente, o motivo mais poderoso, que, de certo modo, nos induz a esta devoção à Santíssima Virgem, é constituir um meio admirável para perseverar na virtude e ser fiel. Como se explica que a maior parte das conversões dos pecadores não seja durável? Donde vem a facilidade de recair no pecado? Por que a maior parte dos justos, ao invés de avançar de virtude em virtude e adquirir novas graças, perdem muitas vezes o pouco de virtudes e graças que tinham? Esta infelicidade provém, como já o demonstrei (cf. n. 87-89), de que o homem, sendo tão corrompido, tão fraco e tão inconstante, fia-se em si próprio, e crê-se capaz de guardar o tesouro de suas graças, virtudes e méritos.
Por esta devoção confiamos à Santíssima Virgem, fiel por excelência, tudo o que possuímos; tomamo-la por depositária universal de todos os bens da natureza e da graça. É em sua fidelidade que confiamos, no seu poder que nos apoiamos, em sua misericórdia e caridade que nos baseamos, para que ela conserve e aumente nossas virtudes e méritos, a despeito do demônio, do mundo e da carne, que envidam todos os esforços para no-los arrebatar. Dizemos-lhe como um bom filho a sua mãe: “Depositum custodi” (1Tm 6,20), isto é, minha boa Mãe e Soberana, reconheço que até ao presente muito mais graças tenho de Deus recebido por vossa intercessão do que mereço, e minha funesta experiência me ensina que bem frágil é o vaso em que guardo esse tesouro, e que por demais fraco e miserável eu sou, para conservá-lo em mim: “adolescentulus sum ergo et contemptus” (Sl 118,141); recebei em depósito tudo o que possuo, e conservai-mo por vossa fidelidade e vosso poder. Se me guardardes, nada perderei; se me sustentardes, não cairei; se me protegerdes, estarei a salvo de meus inimigos.
174. É o que diz São Bernardo para inspirar-nos esta prática: “Enquanto Maria vos sustenta, não caís; enquanto vos protege, não temeis; enquanto vos conduz, não vos fatigais; e, sendo-vos propícia, chegareis ao porto de salvação: Ipsa tenente, non corruis; ipsa protegente, non metuis; ipsa duce, non fatigaris; ipsa propitia, pervenis”[1]. O mesmo parece dizer São Boaventura em termos ainda mais claros: A Santíssima Virgem, diz ele, está não só detida na plenitude dos santos, mas também guarda e detém os santos na plenitude para que esta não diminua; impede que suas virtudes se dissipem, que seus méritos pereçam, que se percam suas graças, que os prejudiquem os demônios; impede, por fim, que Nosso Senhor castigue os pecadores: “Virgo non solum in plenitudine sanctorum detinetur, sed etiam in plenitudine sanctos detinet, ne plenitudo minuatur; detinet virtutes ne fugiant; detinet merita ne pereant; detinet gratias ne effluant; detinet daemones ne noceant; detinet Filium ne peccatores percutiat”[2].
175. A Santíssima Virgem é a Virgem fiel que, por sua fidelidade a Deus, repara as perdas que Eva infiel causou por sua infidelidade, e que obtém de Deus a fidelidade e a perseverança para aqueles que a ela se apegam. Por isso um santo a compara à âncora firme, porque os retém e impede de soçobrar no mar agitado deste mundo, onde tantas pessoas naufragam por não se firmarem nesta âncora inabalável. “Prendemos, diz ele, as almas à vossa esperança, como a uma âncora firme: Animas ad spem tuam sicut ad firmam anchoram alligamus”[3]. Foi a ela que os santos mais se agarraram, e prenderam os outros, com o fito de perseverar na virtude. Felizes, mil vezes felizes os cristãos que agora se apegam fiel e inteiramente a ela, como a uma âncora firme. Os arrancos da tempestade deste mundo não os farão submergir, nem perder os tesouros celestes. Bemaventurados os que nela buscam abrigo como na arca de Noé. As águas do dilúvio de pecados, que afogam tanta gente, não lhes farão mal, pois: “Qui operantur in me non peccabunt” – os que se guiam por mim não pecarão (Eclo 24,30), diz ela com a Sabedoria. Bem-aventurados os filhos infiéis da desgraçada Eva que se apegam à Mãe e Virgem fiel, que permanecem sempre fiéis e que não faltam jamais à sua palavra: “Fidelis permanet, se ipsam negare non potest”[4], e que ama aqueles que a amam: “Ego diligentes me diligo” (Pr 8,17), não só de um amor afetivo, mas de um amor efetivo e eficaz, impedindo-os, por uma grande abundância de graças, de recuar na virtude, ou de cair no caminho, perdendo a graça de seu Filho.
176. Esta boa Mãe recebe sempre, por pura caridade, tudo que lhe entregamos em depósito; e, desde que ela o recebeu como depositária, é obrigada por justiça, em virtude do contrato de depósito, a guardá-lo para nós; do mesmo modo que uma pessoa, a quem eu confiasse mil escudos, seria obrigada a guardá-los para mim, de tal modo que se, por sua negligência, meus mil escudos se perdessem, seria ela, com justiça, a responsável. Mas isto não acontece, pois Maria, a Virgem fiel, jamais deixaria se perder, por sua negligência, o que lhe tivéssemos confiado. Antes passarão o céu e a terra do que ela ser negligente e infiel para com aqueles que dela se fiam.

***
177. Pobres filhos de Maria! extrema é vossa fraqueza, grande, vossa inconstância, viciado, o vosso íntimo! Sois, eu o confesso, da mesma massa corrompida que os filhos de Adão e Eva; mas não percais por isso a coragem; consolaivos, regozijai-vos: eis o segredo que vos ensino, segredo desconhecido de quase todos os cristãos, até dos mais devotos.
Não deixeis vosso ouro e vossa prata nos cofres, já forçados pelo espírito maligno que vos roubou, cofres por demais exíguos e fracos e velhos para conter um tesouro tão grande e tão precioso. Não depositeis a água pura e cristalina da fonte em vossos vasos manchados e infeccionados pelo pecado. Pode ser que o pecado aí já não esteja, mas o odor permanece ainda e a água ficará contaminada. Não despejeis vosso vinho fino em velhos tonéis que já contiveram vinho ordinário: ficará estragado e o perdereis.
178. Embora me entendais, almas predestinadas, falo mais abertamente. Não confieis o ouro de vossa caridade, a prata de vossa pureza, as águas das graças celestes, nem os vinhos de vossos méritos e virtudes a um saco roto, a um cofre velho e quebrado, a um vaso contaminado e corrompido, como vós sois; porque sereis pilhados pelos ladrões, isto é, os demônios, que buscam e espreitam, noite e dia, o momento próprio para o ataque; estragareis, com o mau odor do amor-próprio, da confiança própria e da vontade própria, tudo o que Deus vos dá de mais puro.
Depositai, derramai no seio e no coração de Maria todos os vossos tesouros, todas as vossas graças e virtudes. Maria é um vaso espiritual, um vaso honorífico, um vaso insigne de devoção: “Vas spirituale, vas honorabile, vas insigne devotionis”. Depois que aí se encerrou o próprio Deus em pessoa, com todas as suas perfeições, este vaso tornou-se todo espiritual, e a morada espiritual das almas mais espirituais. Tornou-se honorável, e o trono de honra dos maiores príncipes da eternidade. Tornou-se insigne na devoção e a morada dos mais ilustres em doçura, em graças e virtudes. Tornou-se, enfim, rico como uma casa de ouro, forte como a torre de Davi, puro como uma torre de marfim.
179. Oh! quão feliz é o homem que tudo deu a Maria e que nela confia em tudo e por tudo. Ele é todo de Maria e Maria é toda dele. Pode dizer afoitamente com David: “Haec facta est mihi: Maria foi feita para mim” (S1 118,56); ou com o discípulo amado: “Accepi eam in mea” (Jo 19,27) – Eu a tomei como toda a minha riqueza; ou com o próprio Jesus Cristo: “Omnia mea tua sunt, et omnia tua mea sunt: Todas as minhas coisas são tuas, e as tuas são minhas” (Jo 17,10).

***
180. Se algum crítico, ao ler isto, achar que falo exageradamente e por excesso de devoção, infeliz dele, pois não me compreende, ou por ser um homem carnal que não aprecia as coisas do espírito, ou por ser do mundo que não pode receber o Espírito Santo, ou, ainda, por ser orgulhoso e crítico, que condena e despreza o que não entende. As almas, porém, que não nasceram do sangue nem da vontade da carne (Jo 1,13) mas de Deus e de Maria, me compreendem e apreciam; e é para elas, afinal, que eu escrevo.
181. Digo, entretanto, para uns e outros, voltando ao assunto interrompido, que Maria Santíssima, porque é a mais honesta e a mais generosa de todas as puras criaturas, não se deixa vencer jamais em amor e liberalidade. E por um ovo, diz um santo homem ela dá um boi, isto é, por pouco que lhe demos ela dá mais do que recebeu de Deus; e, por conseguinte, se uma alma se lhe entrega sem reserva, ela se dá a esta alma também sem reserva, se nela depositamos toda a nossa confiança, trabalhando de nosso lado em adquirir as virtudes e domar as paixões.
182. Que os fiéis servidores de Maria digam, pois, ousadamente com São João Damasceno: “Tendo confiança em vós, ó Mãe de Deus, serei salvo; tendo vossa proteção, não temerei; com vosso auxílio, combaterei os meus inimigos e os porei em fuga; pois vossa devoção é uma arma de salvação que Deus dá a quem quer salvar: Spem tuam habens, o Deipara, servabor; defensionem tuam possidens, non timebo; persequar inimicos meos et in fugam vertam, habens protectionem tuam et auxilium tuum; nam tibi devotum esse est arma quaedam salutis quae Deus his dat quos vult salvos fieri” (Sermo de Annunc).
____________________
1. Homilia 2 super “Missus est” n. 17.
2. Speculum B.V., lect. VII, § 6.
3. SÃO JOÃO DAMASCENO. “Sermo 1 in Dormitione B.M.V.”.
4. Aplicação à Santíssima Virgem das palavras de São Paulo: 2Tm 2,13.
 
Capítulo VI. Figura bíblica desta perfeita devoção: Rebeca e Jacó
183. De todas as verdades que acabo de descrever em relação à Santíssima Virgem, o Espírito Santo nos apresenta, na Sagrada Escritura (Gn 27), uma figura admirável na história de Jacó, o qual recebeu a bênção de Isaac, graças à solicitude e engenho de sua mãe Rebeca.
Ei-la tal como a conta o Espírito Santo. Em seguida ajuntarei a explicação.
 
ARTIGO I - Rebeca e Jacó
§ I. História de Jacó.
184. Esaú vendera a Jacó seu direito de primogenitura. Anos depois, Rebeca, mãe dos dois irmãos, assegurou a Jacó, – que ela amava ternamente –, as vantagens daquele privilégio, empregando, para isto, uma astúcia santa e cheia de mistério. Pois Isaac, sentindo-se extremamente velho, quis, antes de morrer, abençoar seus filhos, e, chamando Esaú, o preferido, ordenou-lhe que fosse caçar algo para ele comer. Depois o abençoaria. Rebeca, prontamente, pôs Jacó ao corrente do que se passava, e disse-lhe que fosse buscar dois cabritos no rebanho. Assim que ele lhos trouxe, ela os preparou do modo que Isaac mais gostava. Em seguida, com as vestes de Esaú, que ela guardava, vestiu Jacó e com as peles dos cabritos envolveu-lhe o pescoço e as mãos, a fim de que Isaac, que não podia ver, acreditasse, tateando-lhe as mãos, que fosse Esaú, embora ouvindo a Voz de Jacó. Isaac, com efeito, ficou surpreso ao ouvir a voz que ele reconhecia como a de Jacó, mas, fazendo-o aproximar- se e tateandolhe os pelos que cobriam as mãos do filho, murmurou: Em verdade a voz é de Jacó, mas as mãos são de Esaú. E, convencido, comeu. Em seguida, ao beijar Jacó sentiu a fragrância das roupas de Esaú, o que acabou por dissipar-lhe as dúvidas. Abençoou-o, então, e desejou-lhe o orvalho do céu e a fecundidade da terra; estabeleceu-o senhor de todos os seus irmãos, e terminou a bênção com estas palavras: “Aquele que te amaldiçoar seja amaldiçoado, e aquele que te abençoar seja cumulado de bênçãos”.
Apenas Isaac acabara de falar, entrou Esaú trazendo um guisado da caça que abatera, e o apresentou ao pai, pedindo-lhe que comesse e em seguida o abençoasse. O santo patriarca ficou extremamente surpreendido, ao ficar ciente do engano, mas, longe de retratar o que fizera, confirmou-o, pois reconhecia no fato, evidentemente, o dedo de Deus. Então Esaú, como observa a Sagrada Escritura, gritou com grande clamor, e acusando em altas vozes o embuste de seu irmão, perguntou ao pai se ele não tinha outra bênção. Neste ponto, notam os Santos Padres, ele era a imagem dos que facilmente conciliam Deus com o mundo, querendo gozar ao mesmo tempo as consolações do céu e as da terra. Isaac, comovido pelos gritos de Esaú, abençoou-o, enfim, mas a bênção que lhe deu foi uma bênção terrena, sujeitando-o ao irmão. Por isso Esaú concebeu um ódio tão profundo contra Jacó que, para matá-lo, só esperava a morte do pai. E Jacó não teria podido evitar a morte, se sua extremosa mãe Rebeca não o protegesse com sua habilidade e os bons conselhos que lhe deu e que ele seguiu.

§ II. Interpretação da história de Jacó.
185. Antes de explicar esta história tão bela, é preciso notar que, conforme todos os Santos Padres e intérpretes da Sagrada Escritura, Jacó é figura de Jesus Cristo e dos predestinados, enquanto Esaú é figura dos réprobos; basta, apenas, examinar a atitude de um e de outro para verificá-lo.

1º) Esaú, figura dos réprobos
1º) Esaú, o mais velho, era forte e robusto de corpo, destro e habilidoso no manejo do arco e na arte da caça.
2º) Quase não parava em casa, e, confiante em sua força e destreza, só trabalhava fora, ao ar livre.
3º) Pouco se incomodava de agradar a sua mãe Rebeca, e nada fazia por ela.
4º) Era guloso e gostava tanto de satisfazer o paladar, que chegou a vender seu direito de primogenitura por um prato de lentilhas.
5º) Estava, como Caim, cheio de inveja de seu irmão Jacó, e o perseguia sem tréguas.
186. Eis a conduta dos réprobos, todos os dias:
1º) Fiam-se em sua força e indústria nos negócios temporais; são muito fortes, muito hábeis e esclarecidos para as coisas da terra, mas extremamente fracos e ignorantes nas coisas do céu: “In terrenis fortes, in caelestibus debiles”. Por isso:
187. 2º) Não se demoram ou se demoram muito pouco em sua própria casa, quer dizer no seu interior, que é a casa interior e essencial dada por Deus a cada homem para aí morar, conforme seu exemplo, pois Deus mora sempre em sua casa. Os réprobos não amam o retiro, nem a espiritualidade, nem a devoção interior e chamam de espíritos acanhados, carolas e selvagens aqueles que são espirituais e retirados do mundo, e que trabalham mais no interior do que fora.
188. 3º) Os réprobos não se preocupam de modo algum com a devoção à Santíssima Virgem, a Mãe dos predestinados. É verdade que não a odeiam formalmente, fazem-lhe às vezes um elogio, dizem que a amam, praticam até alguma devoção em sua honra, mas, de resto, não suportariam vê-la amada ternamente, porque não têm para ela as ternuras de Jacó. Acham motivo de censura nas práticas de devoção, a que se entregam os bons filhos e servos da Virgem Santíssima para obter sua afeição, na certeza de que esta devoção lhes é necessária à salvação, e acham mais que, desde que não odeiam formalmente a Santíssima Virgem, e que não desprezam abertamente sua devoção, isso é bastante e já ganharam as boas graças da Santíssima Virgem e são seus servos, ao recitarem ou resmungarem algumas orações em sua honra, sem a menor ternura por ela nem emenda para eles.
189. 4º) Esses réprobos vendem seu direito de primogenitura, isto é, os gozos do paraíso, por um prato de lentilhas, os prazeres da terra. Riem, bebem, comem, divertem-se, jogam, dançam, etc., sem a mínima preocupação, como Esaú, de se tornarem dignos da bênção do Pai celeste. Em três palavras, eles só pensam na terra, só amam a terra, só falam e agem pela terra e pelos prazeres terrenos, vendendo, por um instante de prazer, por uma vã fumaça de honra, e por um pedaço de matéria amarela ou branca, a graça batismal, sua veste de inocência, sua celestial herança.
190. 5º) Os réprobos, finalmente, em segredo ou às claras, odeiam e perseguem diariamente os predestinados. Prejudicam-nos quanto podem, desprezam-nos, roubam-nos, enganam-nos, empobrecem-nos, expulsam-nos, reduzem-nos a pó; enquanto eles mesmos fazem fortuna, gozam seus prazeres, vivem em situação esplêndida, enriquecem, se engrandecem e levam vida folgada.

2º) Jacó, figura dos predestinados
191. 1º) Jacó, o caçula, era de compleição franzina, meigo e sossegado. Permanecia em casa o mais possível, para ganhar as graças de sua mãe Rebeca, que o amava ternamente. Se saía de casa, não o fazia por vontade própria, nem por confiança em sua própria habilidade, mas para obedecer a sua mãe.
192. 2º) Amava e honrava sua mãe: por isso ficava em casa junto dela. Seu maior contentamento era vê-la; evitava tudo que pudesse desagradar-lhe e fazia tudo que imaginava agradar-lhe. Tudo isso concorria para aumentar em Rebeca o amor que dedicava ao filho.
193. 3º) Em todas as coisas ele era submisso a sua mãe, obedecia-lhe inteiramente em tudo, com obediência pronta, sem tardanças, e amorosa, sem queixas; ao menor sinal da vontade materna, o pequeno Jacó corria e trabalhava. Acreditava piamente, sem discutir, em tudo que a mãe lhe dizia: por exemplo, quando Rebeca o mandou buscar os dois cabritos, e ele os trouxe a fim de ela os preparar para Isaac, Jacó não replicou nem observou que bastava um para satisfazer o apetite de um só homem, mas, sem discernir, fez exatamente como ela mandou.
194. 4º) Ele depositava uma confiança sem limites em sua querida mãe; como não contava absolutamente com sua própria experiência, apoiava-se unicamente na proteção e nos desvelos maternos. Chamava por ela em todas as suas necessidades e a consultava em todas as suas dúvidas: por exemplo, quando lhe perguntou se, em vez da bênção, não receberia a maldição de seu pai, creu e confiou na resposta que ela lhe deu de que tomaria sobre si a maldição.
195. 5º) Ele imitava, enfim, na medida de sua capacidade, as virtudes que via em sua mãe; e parece que uma das razões por que ele permanecia em casa, tão sedentário, é que procurava imitar sua virtuosa mãe, e afastar-se de más companhias, que corrompem os costumes. Por tal motivo, tornou-se digno de receber a dupla bênção de seu querido pai.
196. Eis também a conduta diária dos predestinados:
1º) Vivem em casa, sedentariamente, com sua mãe, quer dizer, amam o recolhimento, são interiores, e se aplicam à oração, mas conforme o exemplo e a companhia de sua Mãe, a Santíssima Virgem, cuja glória está toda no interior e que, durante a vida inteira, tanto amou o retiro e a oração. É verdade que aparecem às vezes fora, no mundo; fazem-no, porém, em obediência à vontade de Deus e de sua querida Mãe, para cumprir os deveres de seu estado. Por grandes coisas que façam no exterior e que apareçam, preferem muito mais as que fazem no interior, em companhia da Santíssima Virgem, porque aí executam a grande obra de sua perfeição, ao lado da qual todas as outras são como brinquedos de criança. Por isso, enquanto que seus irmãos e irmãs trabalham muitas vezes para o exterior com mais entusiasmo, habilidade e sucesso, recebendo os louvores e aprovações do mundo, eles sabem, pela luz do Espírito Santo, que há muito mais glória, bem e prazer em permanecer oculto no reconhecimento com Jesus Cristo, seu modelo, numa submissão inteira e perfeita a sua Mãe, do que em realizar, por si próprio, maravilhas naturais e da graça no mundo, como tantos Esaús e réprobos. “Gloria et divitiae in domo eius” (Sl 111,3) – a glória para Deus e as riquezas para os homens encontram-se na casa de Maria.
Senhor Jesus, quão amáveis são vossos tabernáculos! O pardal encontrou uma casa para se alojar, e a rola, um ninho, onde abrigar seus filhotes. Oh! como é feliz o homem que mora na casa de Maria, na qual fizestes, primeiro, a vossa morada! É nesta casa de predestinados que ele de Vós somente recebe socorro, e em seu coração dispôs subidas e degraus de todas as virtudes, para elevar-se à perfeição neste vale de lágrimas. “Quam dilecta tabernacula...” (Sl 83).
197. 2º) Eles amam ternamente e honram em verdade a Santíssima Virgem, como sua boa Mãe e Senhora. Amam-na não só com a boca, mas verdadeiramente; honram-na não só no exterior, mas no fundo do coração; evitam, como Jacó, tudo que pode desagradar-lhe, e praticam com fervor tudo que creem poder adquirir-lhes sua benevolência. Trazem-lhe e lhe entregam não só dois cabritos como Jacó a Rebeca, mas seu corpo e sua alma, com tudo que do corpo e da alma depende, de que são figura os dois cabritos de Jacó, 1o) para que ela os receba como um dom que lhe pertence ; 2º) para que os sacrifique e faça morrer ao pecado e a si próprios, escorchando-os e despojando-os da própria pele de seu amor-próprio, e para agradar, por este meio, a Jesus, seu Filho, que não quer para amigos e discípulos, senão aqueles que estiverem mortos a si mesmos; 3º) para que os prepare ao gosto do Pai celeste, e para servir à sua maior glória, que ela conhece melhor que nenhuma outra criatura; 4º) para que, por seus cuidados e intercessões, este corpo e esta alma, purificados de toda mancha, bem mortos, bem despojados e bem preparados, sejam um manjar delicado, digno do paladar e da bênção do Pai celeste. Não é o que farão as pessoas predestinadas, que apreciarão e praticarão a consagração perfeita a Jesus Cristo pelas mãos de Maria, como lhes ensinamos, para testemunhar a Jesus e Maria um amor efetivo e corajoso?
Os réprobos dizem que amam a Jesus, que honram Maria, mas não com sua substância[1], com os seus haveres, ao ponto de lhes sacrificar seu corpo com os sentidos, sua alma com todas as paixões, como fazem os predestinados.
198. 3º) Eles são submissos e obedientes à Santíssima Virgem, como a sua boa Mãe, a exemplo de Jesus Cristo, que, dos trinta e três anos que viveu sobre a terra, dedicou trinta a glorificar a Deus seu Pai, por uma perfeita e inteira submissão a sua Mãe Santíssima. A ela obedecem, seguindo com exatidão os seus conselhos, como o pequeno Jacó seguia os de sua mãe, que lhe diz: “Acquiesce consiliis meis” (Gn 27,8) – Meu filho, segue meus conselhos; ou como os criados nas bodas de Caná, aos quais a Santíssima Virgem diz: “Quodcumque dixerit vobis facite” – Fazei tudo o que Ele vos disser (Jo 2,5). Por ter obedecido a sua mãe, Jacó recebeu a bênção, como por milagre, embora por direito natural não devesse recebê-la; porque os servos nas bodas de Caná seguiram o conselho da Santíssima Virgem, foram honrados com o primeiro milagre de Jesus Cristo, que nessa ocasião, a pedido de sua Mãe, converteu a água em vinho. Assim, todos aqueles que até ao fim dos séculos receberem a bênção do Pai celeste, e forem honrados com as maravilhas de Deus, só receberão estas graças em consequência de sua perfeita obediência a Maria; os Esaús, ao contrário, perderão sua bênção, por falta de submissão à Santíssima Virgem.
199. 4º) Os predestinados têm uma grande confiança na bondade e no poder da Santíssima Virgem; reclamam sem cessar seu socorro; olham-na como a estrela polar guiando-os a seguro porto; comunicam-lhe, com o coração aberto, suas penas e suas necessidades; acolhem-se à sua misericórdia e doçura para, por sua intercessão, alcançar o perdão de seus pecados, ou para gozar de seus maternais carinhos em suas aflições e contrariedades. Atiram-se até, escondem-se e se perdem de um modo admirável em seu regaço amoroso e virginal, para aí ficarem abrasados de amor, para aí se purificarem das menores manchas, e para aí encontrarem plenamente a Jesus, que aí reside como no mais glorioso dos tronos. Oh! que felicidade! “Não creiais, diz o Abade Guerrico, que seja maior felicidade habitar o seio de Abraão que o seio de Maria, pois neste colocou o Senhor o seu trono: Ne credideris maioris esse felicitatis habitare in sinu Abrahae quam in sinu Mariae, cum in eo Dominus posuerit thronum suum”[2]. Os réprobos, ao contrário, põem toda a confiança em si próprios, só comem, como o filho pródigo, o que comem os porcos; como vermes, só se alimentam de terra; e porque amam somente as coisas visíveis e passageiras, como os mundanos, não apreciam as doçuras e suavidades do seio de Maria. Não sentem aquele apoio e aquela confiança que os predestinados sentem pela Santíssima Virgem, sua boa Mãe. Amam miseravelmente sua fome exterior, como diz São Gregório[3], porque não querem provar a suavidade que está preparada no próprio íntimo deles e no íntimo de Jesus e de Maria.
200. 5º) Finalmente, os predestinados mantêm-se nos caminhos da Santíssima Virgem, isto é, imitam-na, e nisto eles são verdadeiramente felizes e devotos, trazendo assim o sinal infalível de sua predestinação. Esta boa Mãe lhes diz: “Beati qui custodiunt vias meas” (Pr 8,32) – Bem-aventurados os que praticam minhas virtudes, e caminham sobre as pegadas de minha vida, com o socorro da divina graça. Eles são felizes neste mundo, durante sua vida, devido à abundância de graças e de doçuras que eu lhes comunico de minha plenitude e com muito mais abundância que aos outros que não me imitam tão esforçadamente; eles são felizes em sua morte, que é doce e tranquila, e na qual eu os assisto, para os conduzir às alegrias da eternidade; serão finalmente, felizes na eternidade, porque jamais se perdeu algum dos meus servos, que durante a vida tenha imitado fielmente as minhas virtudes.
Os réprobos, ao contrário, são infelizes durante a vida, em sua morte e na eternidade, porque não imitam a Santíssima Virgem em suas virtudes, contentando-se com pertencer a alguma de suas confrarias, com recitar uma ou outra oração em sua honra ou fazer qualquer devoção exterior.
Ó Virgem Santíssima, minha boa Mãe, quão felizes são aqueles – eu o repito com transportes de coração – quão felizes são aqueles que, sem se deixar seduzir por uma falsa devoção, guardam fielmente vossos caminhos, vossos conselhos e vossas ordens! Quão infelizes, porém, e malditos, aqueles, que, abusando de vossa devoção, não guardam os mandamentos de vosso Filho! “Maledicti omnes qui declinant a mandatis tuis” – Malditos os que se afastam de teus mandamentos (Sl 118,21).
____________________
1. Cf. Pr 3,9: “Honora Dominum de tua substantia” (Honra o Senhor com os teus haveres).
2. Sermo 1 in Assumptione, n. 4.
3. “Amamus foris miseri famem nostram” (Homil. 36 in Evangel.)
 
ARTIGO II - A Santíssima Virgem e os seus escravos por amor
201. Eis, em seguida, os caridosos deveres que a Santíssima Virgem cumpre, como a melhor das mães, para com seus fiéis servos, que a ela se deram como indiquei, e conforme a figura de Jacó.

§ I. Ela os ama.
“Ego diligentes me diligo – Eu amo aqueles que me amam” (Pr 8,17). Ela os ama primeiro, porque é sua verdadeira Mãe; ora, uma mãe ama sempre seu filho, o fruto de suas entranhas; segundo, ela os ama por reconhecimento, pois que eles efetivamente a amam como sua boa Mãe; terceiro, ela os ama, porque, sendo predestinados, Deus os ama: “Iacob dilexi, Esau autem odio habui – Amei Jacó, porém aborreci Esaú” (Rm 9,13); quarto, ela os ama porque eles se lhe consagraram, e porque são sua partilha e herança: “In Israel hereditare” (Eclo 24,13).
202. Ela os ama ternamente, e com mais ternura que todas as mães juntas. Acumulai, se puderdes, num só coração materno e por um filho único, todo o amor natural que todas as mães deste mundo têm por seus filhos: sem dúvida essa mãe amaria muito esse filho. É verdade, entretanto, que Maria ama ainda mais ternamente seus filhos do que aquela mãe amaria o seu. Ela não os ama somente com afeição, mas também com eficácia. Seu amor por eles é ativo e efetivo, como aquele de Rebeca por Jacob, e muito mais. Eis o que esta boa Mãe, da qual Rebeca era apenas a figura, faz com o fito de alcançar, para seus filhos, a bênção do Pai celestial:
203. 1º) Ela espreita, como Rebeca, as ocasiões favoráveis de lhes proporcionar algum bem, de os engrandecer, de os enriquecer. Ela vê claramente em Deus todos os bens e males, as boas e más fortunas, as bênçãos e as maldições divinas, e por isso, já de longe, dispõe as coisas para isentar seus servos de todo mal e cumulá-los de todos os bens; de sorte que, se há um bom proveito a alcançar em Deus, pela fidelidade duma criatura em algum alto emprego, é certo que Maria o conseguirá para algum de seus filhos, e lhe dará a graça de chegar ao fim com fidelidade: “Ipsa procurat negotia nostra”, diz um santo.
204. 2º) Ela lhes dá bons conselhos, como Rebeca a Jacó: “Fili mi, acquiesce consiliis meis – Meu filho, segue meus conselhos” (Gn 27,8). E, entre outros conselhos, ela lhes sugere levar-lhe dois cabritos, isto é, seu corpo e sua alma, de lhos consagrar para que ela prepare um manjar agradável a Deus, e de fazer tudo que Jesus Cristo, seu Filho, nos ensinou pela palavra e pelo exemplo. Se não é diretamente que lhes dá seus conselhos, fá-lo pelo ministério dos anjos, para os quais constitui o maior prazer e a maior honra obedecer à menor de suas ordens para descer à terra e auxiliar seus fiéis servos.
205. 3º) Quando lhe levamos e consagramos nosso corpo e nossa alma com tudo que deles depende, sem nada excetuar, que faz esta boa Mãe? O mesmo que fez, outrora, Rebeca aos dois cabritos que Jacó lhe trouxe: 1º) mata-os, tirando-lhes a vida do velho Adão; 2º) escorcha-os e despoja da pele natural, das inclinações naturais, do amor próprio, da vontade própria e de todo apego à criatura; 3º) purifica-os de toda mancha, sujeira e pecado; 4º) prepara-os ao gosto de Deus e para sua maior glória. Ninguém como ela conhece perfeitamente este gosto divino e esta maior glória do Altíssimo, e, portanto, só ela pode, sem se enganar, aprontar e preparar nosso corpo e nossa alma de acordo com esse gosto infinitamente elevado e essa glória infinitamente oculta.
206. 4º) Esta boa Mãe, depois de receber a oferenda perfeita que lhe fizemos de nós mesmos e de nossos próprios méritos e satisfações, pela devoção de que falei, depois de nos ter despojado de nossos antigos hábitos, limpa-nos e nos torna dignos de aparecer diante de nosso Pai celeste. 1º) Ela nos cobre com as vestes limpas, novas, preciosas e perfumadas de Esaú, o primogênito, isto é, de Jesus Cristo seu Filho, daquelas vestes que ela conserva em sua casa, ou, por outra, em seu poder, pois que é a tesoureira, a dispensadora universal dos méritos e virtudes de seu Filho Jesus Cristo, dons que ela dispensa e comunica a quem quer, quando quer, como quer, e em quanto quer, como já vimos acima (cf. n. 25 e n. 141). 2º) Ela rodeia o pescoço e as mãos de seus servos com o pelo dos carneiros mortos e escorchados, quer dizer, ela os reveste dos méritos e do valor de suas próprias ações. Ela mata e mortifica, em verdade, tudo que eles têm de impuro e imperfeito em suas pessoas; mas não perde nem dissipa o bem que neles a graça já realizou; pelo contrário, guarda-o e aumenta-o para lhes ornar e fortalecer o pescoço e as mãos, isto é, para que eles tenham força para carregar o jugo do Senhor, que se carrega ao pescoço, e para fazerem grandes coisas que redundem na glória de Deus e na salvação de seus irmãos. 3º) Ela põe um novo perfume e uma nova graça nessas vestes e ornamentos, pelo contato de suas próprias vestes: seus méritos e suas virtudes, que ela, ao morrer, lhes legou em testamento, como diz uma santa religiosa do século XVII, morta em odor de santidade, e que o soube por revelação; de modo que todos os seus servidores, seus fiéis servos e escravos ficam duplamente vestidos: com as vestes dela e com as de seu Filho: “Omnes domestici eius vestiti sunt duplicibus” (Pr 31,21). Por isso eles não têm que recear o frio de Jesus Cristo, branco como a neve, que os réprobos, completamente nus e despojados dos méritos de Jesus Cristo e da Santíssima Virgem, não poderão suportar.
207. 5º) Ela consegue-lhes, enfim, a bênção do Pai celeste, se bem que eles sejam os segundos, os filhos adotivos, e, portanto, não devessem recebê-la. Com essas roupas novas, preciosas e odorosas, e com seu corpo e sua alma bem preparados e dispostos, eles se aproximam confiantes do leito de repouso do Pai celeste. Este os ouve e os reconhece pela voz, a voz do pecador; toca-lhes as mãos cobertas de pelos; aspira o perfume que de suas vestes se desprende; come alegremente o que Maria lhe preparou; e neles reconhecendo os méritos e o bom odor de seu Filho e de sua Mãe Santíssima: 1º) dá-lhes sua dupla bênção, bênção do orvalho do céu: “De rore caeli” (Gn 27,28), isto é, da graça divina que é a semente da glória: “Benedixit nos in omni benedictione spirituali in Christo lesu” (Ef 1,3: Deus nos abençoou com toda a bênção espiritual em Cristo Jesus); bênção da fertilidade da terra: “De pinguedine terrae” (Gn 27,28), em outras palavras, que este bom Pai lhes dá seu pão cotidiano e uma abundância suficiente de bens deste mundo; 2º) fá-los senhores de seus outros irmãos, os reprovados, embora esta primazia nem sempre transpareça neste mundo que passa num instante, e no qual dominam muitas vezes os reprovados: “Peccatores effabuntur et gloriabuntur... (Sl 93,3,4), Vidi impium superexaltatum et elevatum” (Sl 36,35); essa primazia é, no entanto, verdadeira e será manifestada por toda a eternidade, no outro mundo, onde os justos, como diz o Espírito Santo, dominarão e comandarão as nações: “Dominabuntur populis” (Sb 3,8); 3o) sua majestade, não contente de abençoá-los em suas pessoas e em seus bens, abençoa ainda todos os que eles abençoarem, e amaldiçoa todos os que os amaldiçoarem e perseguirem.

§ II. Ela os mantém.
208. O segundo dever de caridade que a Santíssima Virgem exerce para com seus fiéis servos é provê-los de tudo para o corpo e para a alma. Ela lhes fornece as vestes duplas, como acabamos de ver; dá-lhes de comer os manjares mais finos da mesa de Deus; dá-lhes o pão da vida que ela formou: “A generationibus meis implemini” (Eclo 24,26): “Meus queridos filhos, lhes diz ela, sob o nome da Sabedoria, enchei-vos de meus frutos, isto é, de Jesus, o fruto de vida que eu pus no mundo para vós. – “Venite, comedite panem meum et bibite vinum quod miscui vobis” (Pr 9,5); “comedite et bibite, et inebriamini, carissimi” (Ct 5,1): Vinde, lhes repete, comei do meu pão, que é Jesus, e bebei do vinho de seu amor, que para vós preparei com o leite de meus seios. E como é a tesoureira e a dispensadora dos dons e das graças do Altíssimo, ela toma uma boa porção, a melhor, para alimentar e sustentar seus filhos e servos. Eles são fortalecidos com o pão vivo, embriagados com o vinho que gera virgens (cf. Zc 9,17); são levados ao seio: “ad ubera portamini” (Is 66,12); e têm tanta facilidade em carregar o jugo de Jesus Cristo, que quase não lhe sentem o peso, graças ao óleo da devoção com que ela o faz apodrecer: “Iugum eorum computrescet a facie olei” (Is 10,27).

§ III. Ela os conduz.
209. O terceiro bem que a Santíssima Virgem faz a seus fiéis servos é conduzi-los e dirigi-los conforme a vontade de seu Filho. Rebeca conduzia o pequeno Jacó e de vez em quando lhe dava bons conselhos, e deu-lhos tanto para ele atrair a bênção de Isaac, como para subtrair-se à fúria de Esaú. Maria, a estrela do mar, guia todos os seus fiéis servos a bom porto; mostra-lhes os caminhos da vida eterna; desvia-os dos passos perigosos; leva-os pela mão nas sendas da justiça; sustém-nos quando estão prestes a cair; levan-ta- os quando caíram; repreende-os, como mãe caridosa, quando cometem alguma falta; e até, às vezes, os castiga amorosamente. Um filho que obedece a Maria, pode acaso errar o caminho que leva à eternidade? “Ipsam sequens, non devias: Seguindo-a, não vos extraviareis”, diz São Bernardo. Não temais que um verdadeiro filho de Maria se deixe enganar pelo demônio e venha a cair em alguma heresia formal. Onde se manifesta a mão condutora de Maria, aí não se encontram nem o espírito maligno com suas ilusões, nem os hereges com seus sofismas: “Ipsa tenente, non corruis”[1].

§ IV. Ela os defende e protege.
210. O quarto favor que a Santíssima Virgem presta a seus filhos e fiéis servos é defen-dê-los e protegê-los de seus inimigos. Rebeca, por seus cuidados e por sua habilidade, livrou Jacó dos perigos que o ameaçavam, e particularmente da morte que lhe jurara Esaú, e que, no auge da raiva e inveja que o dominavam, ele teria levado a termo, como outrora Caim a seu irmão Abel. Maria, a Mãe misericordiosa dos predestinados, abriga-os sob as asas de sua proteção, como uma galinha aos pintinhos. Ela lhes fala, abaixa-se até a eles, é condescendente para com suas fraquezas, protege-os contra as garras do gavião e do abutre; acompanha-os como um exército em linha de batalha: “ut castrorum acies ordinata” (Ct 6,3). Pode um homem, garantido por um exército de cem mil soldados, ter receio de seus inimigos? Menos ainda há de recear um servo fiel de Maria, rodeado que está da proteção e força de sua Mãe Santíssima. Esta Mãe e Princesa poderosa enviaria antes batalhões de milhares de anjos em socorro de um só de seus servos, para que se não dissesse que um servo fiel de Maria, que a ela se confiou, sucumbiu à malícia, ao número e à força do inimigo.

§ V. Ela intercede por eles.
211. O quinto, enfim, e o maior bem, que a amabilíssima Maria proporciona a seus fiéis devotos, é interceder por eles junto de seu Filho, apaziguá-lo por suas preces, uni-los a ele por um forte elo, e para ele os conservar.
Rebeca mandou a Jacó que se aproximasse do leito de Isaac; e o ancião tateou as mãos e os braços do filho, abraçou-o e beijou-o com alegria, mostrando-se contente e satisfeito com o acepipe que Jacó lhe apresentava. E ao aspirar com extrema satisfação o perfume que se evolava das vestes de Esaú, exclamou: “Ecce odor filii mei sicut odor agri pleni, cui benedixit Dominus: Eis que o cheiro de meu filho é como o cheiro de um campo florido que o Senhor abençoou” (Gn 27,27). Este campo florido, cujo odor encanta o coração do pai, outro não é que o odor das virtudes e dos méritos de Maria, que é um campo cheio de graça, no qual Deus Pai semeou, qual grão de trigo dos eleitos, o seu Filho único.
Oh! benvindo é, junto de Jesus Cristo, Pai do futuro século, um filho que rescende o bom odor de Maria. E quão pronta e perfeitamente lhe fica unido, já o demonstramos longamente.
212. Além disso, depois de cumular de favores seus filhos e servos fiéis, Maria Santíssima lhes obtém a bênção do Pai celestial e a união com Jesus Cristo, e, mais, conserva-os em Jesus Cristo e Jesus Cristo neles. Ela os guarda e por eles vela constantemente, para que não percam a graça de Deus e não caiam nas armadilhas do inimigo: “In plenitudine sanctos detinet: Detém os santos em sua plenitude”[2], e ajuda-os a perseverar até ao fim, como já vimos.
Aí está a explicação desta grande e antiga figura da predestinação e da condenação, figura tão desconhecida e tão cheia de mistérios.
____________________
1. Palavras de São Bernardo, citadas e comentadas mais acima, n. 174.
2. Palavras de São Boaventura já citadas e comentadas (n. 174).
 
Capítulo VII. Efeitos maravilhosos que esta devoção produz numa alma que lhe é fiel
213. Meu querido irmão, convencei-vos de que, se vos tornardes fiel às práticas interiores e exteriores desta devoção, que vos indico em seguida:
 
ARTIGO I - Conhecimento e desprezo de si mesmo
1º) Pela luz que o Espírito Santo vos dará por intermédio de Maria, sua querida esposa, conhecereis vosso fundo mau, vossa corrupção e vossa incapacidade para todo bem, e, em consequência deste conhecimento, vos desprezareis, e será com horror que pensareis em vós mesmo. Considerar-vos-eis como uma lesma asquerosa que tudo estraga com sua baba, como um sapo repugnante que tudo envenena com sua peçonha, ou como a serpente traiçoeira que só busca enganar. A humilde Maria vos dará, enfim, parte de sua profunda humildade, com que vos desprezareis a vós mesmo, sem desprezar pessoa alguma, e gostareis até de ser desprezado.
 
ARTIGO II - Participação da fé de Maria
214. 2º) A Santíssima Virgem vos dará uma parte de sua fé, a maior que já houve na terra, maior que a de todos os patriarcas, profetas, apóstolos e todos os santos. Agora, reinando nos céus, ela já não tem esta fé, pois vê claramente todas as coisas em Deus, pela luz da glória. Com assentimento do Altíssimo, ela, entretanto, não a perdeu ao entrar na glória; guardou-a para seus fiéis servos e servas na Igreja militante. Quanto mais, portanto, ganhardes a benevolência desta Princesa e Virgem fiel, tanto mais profunda fé tereis em toda a vossa conduta: uma fé pura, que vos levará à despreocupação por tudo que é sensível e extraordinário; uma fé viva e animada pela caridade que fará com que vossas ações sejam motivadas por puro amor; uma fé firme e inquebrantável como um rochedo, que vos manterá firme e constante no meio das tempestades e tormentas; uma fé ativa e penetrante que, semelhante a uma chave misteriosa, vos dará entrada em todos os mistérios de Jesus Cristo, nos novíssimos do homem e no coração do próprio Deus; fé corajosa que vos fará empreender sem hesitações, e realizar grandes coisas para Deus e a salvação das almas; fé, finalmente, que será vosso fanal luminoso, vossa via divina, vosso tesouro escondido da divina Sabedoria, e vossa arma invencível, da qual vos servireis para aclarar os que jazem nas trevas e nas sombras da morte, para abrasar os tíbios e os que necessitam do ouro candente da caridade, para dar vida aos que estão mortos pelo pecado, para tocar e comover, por vossas palavras doces e poderosas, os corações de mármore e derrubar os cedros do Líbano, e para, enfim, resistir ao demônio e a todos os inimigos da salvação.
 
ARTIGO III - Graça do puro amor
215. 3º) Esta Mãe do amor formoso (Eclo 24,24) aliviará vosso coração de todo escrúpulo e de todo temor servil; ela o abrirá e alargará para correr pelo caminho dos mandamentos de seu Filho (cf. Sl 118,32), com a santa liberdade dos filhos de Deus, e para nele introduzir o puro amor, de que ela possui o tesouro; de tal modo que não mais vos conduzireis, como o fizestes até aqui, pelo receio ao Deus de caridade, mas pelo puro amor, unicamente. Passareis a olhá-lo como vosso bondoso Pai, tratando de agradar-lhe incessantemente; com Ele conversareis confidentemente, à semelhança de um filho com seu pai. Se, por acaso, o ofenderdes, humilhar-vos-eis em continente diante dele, pedir-lhe-eis perdão humildemente, lhe estendereis simplesmente a mão, e vos levantareis amorosamente, sem perturbação nem inquietação, e sem desfalecimentos continuareis a caminhar para Ele.
 
ARTIGO IV - Grande confiança em Deus e em Maria
216. 4º) A Santíssima Virgem vos encherá de grande confiança em Deus e nela: 1º) porque não vos aproximareis mais de Jesus Cristo por vós mesmo, mas sempre por intermédio desta bondosa Mãe; 2º) porque, tendo lhe dado todos os vossos méritos, graças e satisfações, para que deles disponha à sua vontade, ela vos comunicará suas virtudes e vos revestirá de seus méritos, de sorte que podereis dizer confiantemente a Deus: “Eis Maria, vossa serva: faça-se em mim conforme a vossa palavra: Ecce ancilla Domini; fiat mihi secundum verbum tuum” (Lc 1,38); 3º) porque, desde que vos destes a ela inteiramente, de corpo e alma, ela, que é liberal com os liberais, e mais liberal que os próprios liberais, dar-se-á a vós em troca, e isto de um modo maravilhoso, mas verdadeiro; assim podereis dizer-lhe ousadamente: “Tuus sum ego, salvum me fac! – Eu vos pertenço, Santíssima Virgem, salvai-me!” (Sl 118,94) ou, como já disse (cf. n. 179), com o discípulo amado: “Accepi te in mea” – eu vos tomei, Mãe Santíssima, como todo o meu bem. Podereis ainda dizer com São Boaventura: “Ecce Domina salvatrix mea, fiducialiter agam, et non timebo, quia fortitudo mea, et laus mea in Domino es tu...”[1] e em outro lugar: “Tuus totus ego sum, et omnia mea tua sunt; o Virgo gloriosa, super omnia benedicta, ponam te ut signaculum super cor meum, quia fortis est ut mors dilectio tua[2] – Minha querida Senhora e Salvadora, agirei com confiança e não temerei porque sois minha força e meu louvor no Senhor... Sou todo vosso, e tudo que tenho vos pertence; ó gloriosa Virgem, bendita sobre todas as coisas criadas, que eu vos ponha como uma marca sobre meu coração, pois vossa dileção é forte como a morte!” Podereis dizer a Deus com os sentimentos do profeta: “Domine, non est exaltatum cor meum, neque elati sunt oculi mei; neque ambulavi in magnis, neque in mirabilibus super me; si non humiliter sentiebam, sed exaltavi animam meam; sicut ablactatus est super matre sua, ita retributio in anima mea (Sl 130,1-2) – Senhor, nem meu coração nem meus olhos têm motivo para se elevar e ensoberbecer, nem de buscar coisas grandes e maravilhosas; e mesmo assim, ainda não sou humilde; mas elevei e encorajei minha alma pela confiança; sou como uma criança, afastada dos prazeres da terra e apoiada ao seio de minha mãe; e é neste seio que sou cumulado de bens. 4º) O que aumenta ainda vossa confiança nela é que, tendo lhe dado em depósito tudo o que tendes de bom para dar ou guardar, confiareis menos em vós e muito mais nela, que é vosso tesouro. Oh! que confiança e consolação para uma alma poder chamar também seu o tesouro de Deus, onde Deus depositou o que tem de mais precioso! “Ipsa est thesaurus Domini – Ela é, diz um santo, o tesouro do Senhor”[3].
______________________
1. Psalter. maius B.V., Cant. instar Is 12,2.
2. Psalter. maius B.V., Cant. instar Ex 15.
3. Idiota (In contemplationo B.M.V.).
 
ARTIGO V - Comunicação da alma e do espírito de Maria
217. 5º) A alma da Santíssima Virgem se comunicará a vós para glorificar o Senhor; seu espírito tomará o lugar do vosso para regozijar-se em Deus, contanto que pratiqueis fielmente esta devoção. “Sit in singulis anima Mariae, ut magnified Dominum; sit in singulis spiritus Mariae, ut exultet in Deo[1] – Que a alma de Maria esteja em cada um para aí glorificar o Senhor; que o espírito de Maria esteja em cada um para aí regozijar-se em Deus”. Ah! quando virá este tempo feliz – diz um santo de nossos dias, todo dado a Maria – quando virá este tempo feliz em que Maria será estabelecida Senhora e Soberana nos corações, para submetê-los plenamente ao império de seu grande e único Jesus? Quando chegará o dia em que as almas respirarão Maria, como o corpo respira o ar? Então, coisas maravilhosas acontecerão neste mundo, onde o Espírito Santo, encontrando sua querida Esposa como que reproduzida nas almas, a elas descerá abundantemente, enchendo-as de seus dons, particularmente do dom da sabedoria, a fim de operar maravilhas de graça. Meu caro irmão, quando chegará esse tempo feliz, esse século de Maria, em que inúmeras almas escolhidas, per-dendo-se no abismo de seu interior, se tornarão cópias vivas de Maria, para amar e glorificar Jesus Cristo? Esse tempo só chegará quando se conhecer e praticar a devoção que ensino, “Ut adveniat regnum tuum, adveniat regnum Mariae”.
____________________
1. SANTO AMBRÓSIO (Expositio in Lc, 1. III, n. 26).
 
ARTIGO VI - Transformação das almas em Maria à imagem de Jesus Cristo
218. 6º) Se Maria, que é a árvore da vida, for bem cultivada em nossa alma pela fidelidade às práticas desta devoção, ela dará fruto em seu tempo; e seu fruto não é outro senão Jesus Cristo. Vejo tantos devotos e devotas que buscam Jesus Cristo, estes por uma via e uma prática, aqueles por outra; e muitas vezes depois de muito labutar durante a noite, podem dizer: “Per totam noctem laborantes, nihil cepimus – Trabalhando a noite inteira, nada apanhamos” (Lc 5,5). E pode-se responder-lhes: “Laborastis multum, et intulistis parum – muito trabalhastes e pouco ganhastes”[1]. Jesus Cristo está ainda muito fraco em vós. Mas, pelo caminho imaculado de Maria e por esta prática divina que ensino, trabalha-se durante o dia, trabalha-se num lugar santo, trabalha-se pouco. Em Maria não há noite, pois ela jamais pecou, nem teve sequer a sombra de um pecado. Maria é um lugar santo, o Santo dos santos, em que se formam e modelam os santos.
219. Notai, se vos apraz, que eu digo que os santos são moldados em Maria. Há grande diferença entre executar uma figura em relevo, a martelo e a cinzel, e executá-la por um molde. Os escultores e estatuários têm de esforçar-se muito para fazer uma figura da primeira maneira, e gastam muito tempo; mas, da segunda maneira, trabalham pouco e terminam em pouco tempo. Santo Agostinho chama a Santíssima Virgem “forma Dei”, o molde de Deus. “Si formam Dei te appellem, digna exsistis”[2] o molde próprio para formar e moldar deuses. Aquele que é lançado no molde divino fica em breve formado e moldado em Jesus Cristo, e Jesus Cristo nele: com pouca despesa e em pouco tempo, ele se tornará deus, pois foi lançado no mesmo molde que formou um Deus.
220. Parece-me que posso muito bem comparar esses diretores e pessoas devotas que pretendem formar Jesus Cristo em si mesmos ou dos outros, por meio de práticas diferentes destas, a escultores que, depositando toda a confiança na própria perícia, conhecimento e arte, dão uma infinidade de marteladas e embotam o cinzel numa pedra dura, ou numa madeira áspera, para fazer a imagem de Jesus Cristo; e às vezes não conseguem dar expressão natural a Jesus Cristo, ou por falta de conhecimentos ou devido a algum golpe desastrado que prejudica toda a obra. Aqueles, porém, que abraçam este segredo da graça que lhes apresento, eu os comparo a fundidores e moldadores que, tendo encontrado o belo molde de Maria, no qual Jesus Cristo foi natural e divinamente formado, sem se fiar na própria habilidade, mas unicamente na eficiência do molde, lançam-se e perdem-se em Maria para se tornarem o retrato natural de Jesus Cristo.
221. Bela e verdadeira comparação! Quem a compreenderá, porém? Desejo que sejais vós, querido irmão. Mas lembrai-vos que só se lança no molde o que está fundido e líquido, isto é, que é mister destruir e fundir em vós o velho Adão, para que venha a ser o novo em Maria.
____________________
1. Ag 1,6 (O texto exato diz: “Seminastis multum ...”).
2. Sermo 208 (inter opera S. Augustini): “Sois digna de ser chamada o molde de Deus”.
 
ARTIGO VII - A maior glória de Jesus Cristo
222. 7º) Por esta prática, fielmente observada, dareis a Jesus Cristo mais glória em um mês, que por qualquer outra, embora mais difícil, em muitos anos. – Eis as razões do que afirmo:
1º) Porque, fazendo vossas ações pela Santíssima Virgem, como esta prática ensina, abandonais vossas próprias intenções e operações, ainda que boas e conhecidas, para vos perder, por assim dizer, nas da Santíssima Virgem, embora as desconheçais; e por aí entrais a participar da sublimidade de suas intenções, que foram tão puras, que ela deu mais glória a Deus, pela menor de suas ações, por exemplo, fiando na sua roca, dando um ponto de agulha, do que um São Lourenço estendido na grelha, por seu cruel martírio, e mesmo que todos os santos por suas mais heroicas ações; pelo que, durante sua vida neste mundo, ela conquistou tal soma inefável de graças e méritos que se contariam antes as estrelas do firmamento, as gotas d’água do mar e os grãos de areia das praias; e ela deu mais glória a Deus que todos os anjos e santos reunidos e como eles jamais deram nem poderão dar. Ó prodígio de Maria! vós só podeis realizar prodígios de graça nas almas que querem de boa mente abismar-se em vós.
223. 2º) Porque uma alma, por esta prática, considerando nada tudo o que pensa ou faz por si mesma, e pondo todo o seu apoio e complacência nas disposições de Maria, para aproximar-se de Jesus Cristo e até para falar-lhe, pratica mais humildade que as almas que agem por si mesmas, que se apoiam e comprazem nas próprias disposições. Consequentemente, ela glorifica mais altamente a Deus, que só é glorificado perfeitamente pelos humildes e pequenos de coração.
224. 3º) Porque a Santíssima Virgem, querendo, por uma grande caridade, receber em suas mãos virginais o presente de nossas ações, dá-lhes uma beleza e brilho admiráveis; ela mesma as oferece a Jesus Cristo, e Nosso Senhor é assim mais glorificado que se nós lhas oferecêssemos por nossas mãos criminosas.
225. 4º) Enfim, porque nunca pensais em Maria, sem que ela, em vosso lugar, pense em Deus. Nunca a louvais nem honrais, sem que ela convosco louve e honre a Deus. Maria está toda em conexão com Deus, e com toda a propriedade eu a chamaria a relação de Deus, que só existe em referência a Deus, o eco de Deus, que só diz e repete Deus. Santa Isabel louvou Maria e chamou-a bem-aventurada, porque ela creu, e Maria, o eco fiel de Deus, entoou: “Magnificat anima mea Dominum – Minha alma glorifica o Senhor” (Lc 1,46). O que fez nessa ocasião, Maria o faz todos os dias; quando a louvamos, amamos, honramos ou lhe damos algo, Deus é louvado, amado, honrado, e recebe por Maria e em Maria.
 
Capítulo VIII. Práticas particulares desta devoção
 
ARTIGO I - Práticas exteriores
226. Se bem que o essencial desta devoção consista no interior, ela conta também práticas exteriores que é preciso não negligenciar : “Haec oportuit facere et illa non omittere” (Mt 23,23); tanto porque as práticas exteriores bem-feitas ajudam as interiores, como porque relembram ao homem, que se conduz sempre pelos sentidos, o que fez ou deve fazer; também porque são próprias para edificar o próximo que as vê, o que já não acontece com as práticas puramente interiores. Nenhum mundano, portanto, critique, nem meta aqui o nariz, dizendo que a verdadeira devoção está no coração, que é preciso evitar exterioridades, que nisto pode haver vaidade, que é preferível ocultar cada um sua devoção, etc. Respondo-lhes com meu Mestre: “Assim brilhe a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem vosso Pai que está nos céus” (Mt 5,16). Não quer isso dizer, como observa São Gregório[1], que devamos fazer nossas ações e devoções exteriores para agradar aos homens e daí tirar louvores, o que seria vaidade; mas fazê-las às vezes diante dos homens, com o fito de agradar a Deus e glorificá-lo, sem nos preocupar com o desprezo ou os louvores dos homens.
Citarei apenas abreviadamente algumas práticas exteriores, que não qualifico de exteriores porque sejam feitas sem interior, mas porque contêm qualquer exterioridade, e para distin-gui-las das que são estritamente interiores.

§ I. Consagração depois de exercícios preparatórios.
227. Primeira prática. Aqueles e aquelas que quiserem adotar esta devoção, que não está erigida em confraria, como seria de desejar[2], depois de ter, como já disse na primeira parte desta preparação ao reino de Jesus Cristo[3], empregado ao menos doze dias em desapegar-se do espírito do mundo, contrário ao de Jesus Cristo, dedicarão três semanas a encher-se de Jesus Cristo por intermédio da Santíssima Virgem[4]. Eis a ordem que poderão observar:
228. Durante a primeira semana aplicarão todas as suas orações e atos de piedade para pedir o conhecimento de si mesmo e a contrição por seus pecados. Tudo farão em espírito de humildade. Para isso poderão, se quiserem, meditar sobre o que ficou dito sobre o nosso fundo de maldade[5], e considerar-se, nos seis dias desta semana, como uma lesma, um sapo, um porco, uma serpente, um bode; ou, então, estas três palavras de São Bernardo: “Cogita quid fueris, semen putridum; quid sis, vas stercorum; quid futurus sis, esca verminum”[6]. Pedirão a Nosso Senhor e a seu Espírito Santo que os esclareça, dizendo: “Domine, ut videam”[7]; ou “Noverim me”[8]; ou “Veni, Sancte Spiritus”, e dirão todos os dias a ladainha do Espírito Santo e a oração que segue[9]. Recorrerão à Santíssima Virgem e lhe pedirão esta grande graça que deve ser o fundamento das outras, e para isso recitarão todos os dias o “Ave, Maris Stella” e as ladainhas.
229. Durante a segunda semana, aplicar-se-ão em todas as suas orações e obras cotidianas, em conhecer a Santíssima Virgem. Implorarão este conhecimento ao Espírito Santo. Poderão ler e meditar o que já dissemos a respeito. Recitarão, como na primeira semana, as ladainhas do Espírito Santo, o “Ave, Maris Stella”, e mais um rosário todos os dias, ou pelo menos o terço, nesta intenção.
230. A terceira semana será empregada em conhecer Jesus Cristo. Poderão ler e meditar o que dissemos neste sentido, e recitar a oração de Santo Agostinho, inserida no número 67. Poderão, com o mesmo santo, dizer e repetir centenas de vezes por dia: “Noverim te: Senhor, que eu vos conheça”, ou então: “Domine, ut videam – Senhor, fazei que eu veja quem sois”. Como nas semanas precedentes, recitarão as ladainhas do Espírito Santo e o “Ave, Maris Stella”, ajuntando as ladainhas do Santíssimo nome de Jesus.
231. Ao fim destas três semanas, confessar-se-ão e comungarão na intenção de se darem a Jesus Cristo na condição de escravos por amor, pelas mãos de Maria. E depois da comunhão, que cuidarão de fazer conforme o método que segue (cf. n. 266), recitarão a fórmula de consagração, que se encontra também adiante (cf. p. 280); será necessário que a escrevam ou mandem escrever, se não estiver impressa, e a assinem no mesmo dia em que a fizerem.
232. Nesse dia, será bom renderem algum tributo a Jesus Cristo e a sua Mãe Santíssima, seja em penitência de sua infidelidade passada às promessas do batismo, seja em sinal de sua dependência do domínio de Jesus e de Maria. Ora, esse tributo será conforme a devoção e capacidade de cada um: um jejum, uma mortificação, uma esmola, um círio. Ainda que não deem mais que um alfinete em homenagem, contanto que o deem de bom coração, é o bastante para Jesus, que só olha a boa vontade.
233. Todos os anos, ao menos, no mesmo dia, renovarão a consagração, observando as mesmas práticas durante três semanas.
Poderão até, todos os meses e, quiçá, todos os dias, renovar, com as poucas palavras seguintes, tudo o que fizerem: “Tuus totus ego sum, et omnia mea tua sunt – Sou todo vosso e tudo o que tenho vos pertence”, ó meu amável Jesus, por Maria, vossa Mãe Santíssima[10].

§ II. Recitação da coroinha da Santíssima Virgem.
234. Segunda prática. Recitarão todos os dias de sua vida, sem, entretanto, nenhum constrangimento, a coroinha da Santíssima Virgem, composta de três Pai-nossos e doze Ave-Marias, em honra dos doze privilégios e grandezas da Santíssima Virgem. Esta prática é muito antiga e tem seu fundamento na Sagrada Escritura. São João viu uma mulher coroada de doze estrelas, vestida do sol e tendo a lua debaixo de seus pés (Ap 12,1) e esta mulher, na opinião dos intérpretes[11] é a Santíssima Virgem.
235. Há muitos modos de rezar bem esta coroinha e seria demasiado longo mencioná-los. O Espírito Santo o inspirará àqueles e àquelas que mais fiéis se mostrarem a esta devoção. Para rezá-la bem simplesmente é preciso dizer em primeiro lugar: “Dignare me laudare te, Virgo sacrata; da mihi virtutem contra hostes tuos”[12]; em seguida, reza-se o Credo, depois um Pai-nosso, quatro Ave-Marias e um Glória-ao-Pai; ainda um Pai-nosso, quatro Ave- Marias, e um Glória-ao-Pai; e assim por diante. Ao terminar, diz-se: “Sub tuum praesidium”.

§ III. Usar pequenas cadeias de ferro.
236. Terceira prática. É muito louvável, glorioso e útil àqueles e àquelas, que assim demonstrarão ser escravos de Jesus em Maria, trazer, como sinal de sua amorosa escravidão, pequenas cadeias de ferro, bentas com uma bênção especial[13].
Estas demonstrações exteriores não são, na verdade, essenciais, e uma
pessoa pode bem se dispensar, embora tenha abraçado esta devoção. Não posso, contudo, esquivar-me a louvar aqueles e aquelas que, depois de terem rompido as cadeias vergonhosas da escravidão do demônio, a que os tinha arrastado o pecado original, e talvez os pecados atuais, se entregaram voluntariamente à gloriosa escravidão de Jesus Cristo e com São Paulo se gloriam de estar acorrentados por Jesus Cristo (cf. Ef 3,1), com correntes que, embora de ferro e sem brilho, são mais gloriosas e mais preciosas que todos os colares de ouro dos imperadores.
237. Nos tempos de outrora era a cruz o que havia de mais infamante; hoje, no entanto, é o símbolo mais glorioso do cristianismo. Digamos o mesmo dos ferros da escravidão. Nada havia de mais ignominioso entre os antigos, e ainda atualmente entre os pagãos. Entre os cristãos, porém, são essas cadeias de Jesus Cristo o distintivo mais ilustre, pois elas nos livram e preservam dos liames vergonhosos do pecado e do demônio; elas nos restituem a liberdade e nos ligam a Jesus e Maria, não a contragosto e a força, como a forçados, mas por caridade, por amor, como a filhos: “Traham eos in vinculis caritatis” (Os 11,4) – eu os atrairei a mim, diz Deus pela boca do profeta, com os vínculos da caridade, que, por consequência, são fortes como a morte (cf. Ct 8,6), e, de certo modo, mais fortes naqueles que fielmente trouxerem, até à morte, esses distintivos gloriosos. Pois a morte, destruindo- lhes embora o corpo e reduzindo-o à podridão, não destruirá as algemas de sua escravidão, as quais, por serem de ferro, não se corrompem tão facilmente. E, no dia da ressurreição dos corpos, no juízo final, quem sabe, essas cadeias, pendentes ainda de seus ossos, não virão a constituir uma parte de sua glória, mudando-se em cadeias de luz e de glória? Felizes, portanto, mil vezes felizes os escravos ilustres de Jesus em Maria, que até ao túmulo usarem essas cadeias!

***
238. Eis os motivos por que se usam estas cadeiazinhas:
1º) Relembram ao cristão os votos e compromissos do batismo, a renovação perfeita das promessas batismais que ele fez por esta devoção, e a estrita obrigação em que está de se conservar fiel. O homem, porque se deixa levar mais pelos sentidos do que pela fé pura, esquece facilmente suas obrigações para com Deus, se não tiver algo que lhas traga à memória. Por isso estas pequenas cadeias servem para lembrar ao cristão aquelas cadeias do pecado e da escravidão do demônio, de que o santo batismo o livrou, e a dependência que, neste sacramento, votou a Jesus Cristo, e a ratificação dessa dependência, feita ao renovar os seus votos; e um dos motivos por que tão poucos cristãos pensam nas promessas do santo batismo, e vivem com tanta libertinagem como se nada houvessem prometido a Deus, como se fossem pagãos, é não trazerem nenhuma marca ou distintivo exterior que disso os relembre.
239. 2º) Mostra que ele não se envergonha de ser escravo e servo de Jesus Cristo, e que renunciou à escravidão funesta do mundo, do pecado e do demônio.
3º) Garantem-no e preservam-no dos grilhões do pecado e do demônio, pois, ou estaremos agrilhoados pelas correntes do inimigo, ou traremos as cadeias da caridade e da salvação: “Vincula peccatorum; in vinculis caritatis”.
240. Ah! querido irmão, despedacemos os grilhões do pecado e dos pecadores, do mundo e dos mundanos, do demônio e de seus asseclas, e lancemos longe de nós seu jugo funesto: “Dirumpamus vincula eorum et proiiciamus a nobis iugum ipsorum” (Sl 2,3). Metamos nossos pés, para servir-nos das palavras do Espírito Santo, em seus ferros gloriosos e nosso pescoço em suas cadeias: “Iniice pedem tuum in compedes illius, et in torques illius collum tuum” (Eclo 6,25). Curvemos os ombros e carreguemos a Sabedoria, que é Jesus Cristo, e não nos enfademos de suas correntes: “Subiice humerum tuum et porta illam, et ne acedieris vinculis eius” (Eclo 6,26). Notareis que o Espírito Santo, antes de dizer estas palavras, prepara a alma, a fim de que ela não rejeite o importante conselho. Eis as suas palavras: “Audi, fili, et accipe consilium intellectus, et ne abiicias consilium meum – Ouve, filho, e recebe uma sábia advertência, e não rejeites o meu conselho” (Eclo 6,24).
241. Permiti, caríssimo amigo, que me una aqui ao Espírito Santo, para dar-vos o mesmo conselho: “Vincula illius, alligatura salutaris” (Eclo 6,31) – Suas cadeias são cadeias de salvação. Jesus pendente da cruz deve atrair tudo a si, e tudo, de bom ou mau grado, será atraído. Do mesmo modo ele atrairá os réprobos pelas correntes de seus pecados, para acorrentá-los, como forçados e demônios, à sua ira eterna e à sua justiça vingadora. Nos últimos tempos, porém, atrairá especialmente os predestinados, pelas cadeias da caridade: “Omnia traham ad meipsum” (Jo 12,32). “Traham eos in vinculis caritatis” (Os 11,4).
242. Esses amorosos escravos de Jesus Cristo ou acorrentados de Jesus Cristo, “vincti Christi” (Ef 3,1), podem usar suas cadeias ou ao pescoço ou no braço, ou na cintura, ou nos pés. O Padre Vicente Caraffa, sétimo geral da Companhia de Jesus, falecido em odor de santidade no ano 1643, usava, como sinal de sua servidão, um círculo de ferro nos pés, e dizia que lamentava não poder arrastar publicamente os grilhões. A Madre Inês de Jesus, a quem já nos referimos (n. 170), trazia sempre uma corrente de ferro na cintura. Outros a usaram ao pescoço, em penitência pelos colares de pérola que costumam usar no mundo. Outros a usaram no braço, para se lembrarem, no trabalho manual, que eram escravos de Jesus Cristo.

§ IV. Devoção especial ao mistério da Encarnação.
243. Quarta prática. Terão uma devoção especial pelo mistério da Encarnação do Verbo, a 25 de março[14], que é o mistério adequado a esta devoção, pois que esta devoção foi inspirada pelo Espírito Santo: 1º para honrar e imitar a dependência em que Deus Filho quis estar de Maria, para glória de Deus seu Pai e para nossa salvação; dependência que transparece particularmente neste mistério em que Jesus Cristo se torna cativo e escravo no seio de Maria Santíssima, aí dependendo dela em tudo; 2º para agradecer a Deus as graças incomparáveis que concedeu a Maria, principalmente por tê-la escolhido para sua Mãe digníssima, escolha feita neste mistério. São estes os dois fins principais da escravização a Jesus Cristo em Maria.
244. Peço-vos notar que digo ordinariamente: “o escravo de Jesus em Maria, a escravização a Jesus em Maria”. Pode-se, é verdade, dizer como muitos já o disseram até aqui, “o escravo de Maria, a escravidão da Santíssima Virgem”. Creio, porém, que é melhor dizer “escravo de Jesus em Maria” como aconselhava M. Tronson, superior geral do seminário de São Sulpício, o qual era conhecido por sua rara prudência e grande piedade. Assim aconselhou ele a um eclesiástico que o consultou sobre o assunto. As razões são estas:
245. 1º Visto estarmos num século orgulhoso, em que pululam os sábios enfatuados, os espíritos fortes e críticos, que sempre acham o que falar das mais sólidas e bem estabelecidas práticas de piedade, é preferível, para evitar- lhes ocasião de crítica desnecessária, dizer “escravidão de Jesus em Maria” e dizer-se “escravo de Jesus Cristo” do que escravo de Maria. Assim a denominação desta devoção será dada antes pela sua finalidade, Jesus Cristo, que pelo caminho e meio para atingir este fim, Maria Santíssima. Pode-se, entretanto, usar uma ou outra sem o menor escrúpulo, como eu faço. Um homem, por exemplo, que vai de Orleans a Tours pelo caminho de Amboise, pode evidentemente dizer que vai a Amboise e que vai a Tours. A única diferença é que Amboise é apenas o caminho para ir a Tours e Tours é o fim, o termo de sua viagem.
246. Como o principal mistério que se celebra e honra nesta devoção é o mistério da Encarnação, no qual só se pode contemplar Jesus em Maria, e encarnado em seu seio, é mais adequado dizer-se “a escravidão de Jesus em Maria”, de Jesus residindo e reinando em Maria, conforme a bela oração de tantos homens célebres: “Ó Jesus vivendo em Maria, vinde e vivei em nós, em vosso espírito de santidade”, etc.[15]
247. 3º Este modo de falar patenteia ainda mais a união íntima entre Jesus e Maria. Tão intimamente estão unidos que um é tudo no outro: Jesus é tudo em Maria e Maria é tudo em Jesus; ou, melhor, ela já não existe, mas Jesus somente nela, e antes se separaria do sol a luz, do que apartar Maria de Jesus. É assim que se pode chamar Nosso Senhor “Jesus de Maria”, e a Santíssima Virgem “Maria de Jesus”.
248. O tempo não me permite deter-me aqui para explicar as excelências e as grandezas do mistério de Jesus vivendo e reinando em Maria, ou da Encarnação do Verbo. Contento-me, por isso, em dizer, em três palavras, que é este o primeiro mistério de Jesus Cristo, o mais oculto, o mais elevado e o menos conhecido; que é neste mistério que Jesus, em colaboração com Maria, em seu seio, e por isto chamado pelos santos “aula sacramentorum”, sala dos segredos de Deus[16], escolheu todos os eleitos; que foi neste mistério que Ele operou todos os mistérios subsequentes de sua vida, pela aceitação deles: “Iesus ingrediens mundum dicit: Ecce venio ut faciam, Deus, voluntatem tuam” (cf. Hb 10,5-9). Por conseguinte, este mistério é um resumo de todos os mistérios, e contém a vontade e a graça de todos. Este mistério é, enfim, o trono da misericórdia, da liberdade e da glória de Deus. O trono da misericórdia de Deus, porque, já que não podemos aproximar-nos de Jesus senão por Maria, não podemos ver Jesus nem lhe falar senão por intermédio de Maria. Jesus atende sempre a sua querida Mãe e concede sempre sua graça e sua misericórdia aos pobres pecadores: “Adeamus ergo cum fiducia ad thronum gratiae – Cheguemo-nos, pois, confiadamente, ao trono da graça” (Hb 4,16). É o trono de sua liberalidade para Maria, porque este novo Adão, enquanto permaneceu nesse verdadeiro paraíso terrestre, aí realizou ocultamente tantas maravilhas que nem os anjos nem os homens as compreendem; por isso os santos chamaram Maria a magnificência de Deus: “Magnificentia Dei”[17], como se Deus só fosse magnífico em Maria: “Solummodo ibi magnificus Dominus” (Is 33,21). É o trono de sua glória para seu Pai, pois foi em Maria que Jesus Cristo acalmou perfeitamente seu Pai irritado contra os homens; que Ele recuperou perfeitamente a glória que o pecado lhe tinha arrebatado, e que, pelo sacrifício, que neste mistério fez de sua vontade e de si mesmo, lhe deu mais glória como jamais lhe deram todos os sacrifícios da antiga lei, e, finalmente, lhe deu uma glória infinita como ainda não recebera de criatura humana.

§ V. Grande devoção à Ave-Maria e ao terço.
249. Quinta prática. Terão grande devoção ao recitar a Ave-Maria, ou a Saudação Angélica, da qual bem poucos cristãos, mesmo esclarecidos, conhecem o valor, o mérito, a excelência e a necessidade. Foi preciso que a Santíssima Virgem aparecesse várias vezes a grandes santos muito doutos, para lhes demonstrar o mérito desta pequena oração, como sucedeu a São Domingos, a São João Capistrano, ao bem-aventurado Alano de la Roche. E eles compuseram livros inteiros sobre as maravilhas e a eficácia da Ave- Maria, para conversão das almas. Altamente publicaram e pregaram que a salvação do mundo começou pela Ave-Maria, e a salvação de cada um em particular está ligada a esta prece; que foi esta prece que trouxe à terra seca e árida o fruto da vida, e que é esta mesma prece que deve fazer germinar em nossa alma a palavra de Deus e produzir o fruto de vida, Jesus Cristo; que a Ave-Maria é um orvalho celeste, que umedece a terra, isto é, a alma, para fazer brotar o fruto no tempo adequado; e que uma alma que não for orvalhada por esta prece ou orvalho celeste não dará fruto algum, nem dará senão espinhos, e não estará longe de ser amaldiçoada (Hb 6,8).
250. No livro De dignitate Rosarii do bem-aventurado Alano de la Roche, lê-se o seguinte que a Santíssima Virgem lhe revelou: “Saibas, meu filho, e comunica-o a todos, que um sinal provável e próximo de condenação eterna é a aversão, a tibieza, a negligência em rezar a Saudação Angélica, que foi a reparação de todo o mundo – Scias enim et securè intelligas et inde latè omnibus patefacias, quod videlicet signum probabile est et propinquum aeternae damnationis horrere et acediari ac negligere Salutationem angelicam, totius mundi reparationem” (cap. II). Eis aí palavras consoladoras e terríveis, que se custaria a crer, se não no-las garantissem esse santo homem e antes dele São Domingos, como, depois dele, muitos personagens fidedignos, com a experiência de muitos séculos. Pois sempre se verificou que aqueles que trazem o sinal de condenação, como os hereges, os ímpios, os orgulhosos, e os mundanos, odeiam e desprezam a Ave-Maria e o terço. Os hereges ainda aprendem e recitam o Pai-nosso, mas abominam a Ave- Maria e o terço. Trariam antes uma serpente sobre o peito do que o rosário ou o terço. Os orgulhosos também, embora católicos, mas tendo as mesmas inclinações que seu pai Lúcifer, desprezam ou mostram uma indiferença completa pela Ave-Maria, conside rando o terço como uma devoção efeminada, suficiente para os ignorantes e analfabetos. Ao contrário, tem-se visto e a experiência o prova que aqueles e aquelas que possuem outros e grandes indícios de predestinação, amam, apreciam e recitam com prazer a Ave-Maria. E que quanto mais são de Deus, tanto mais amam esta oração. É o que a Santíssima Virgem diz também ao bem-aventurado Alano, em seguida às palavras que citei.
251. Não sei como isto acontece nem por que; entretanto é verdade, e não conheço melhor segredo para verificar se uma pessoa é de Deus, do que examinar se gosta ou não de rezar a Ave-Maria e o terço. Digo: gosta, pois pode acontecer que alguém esteja na impossibilidade natural ou até sobrenatural de dizê-la, mas sempre a ama e a inspira aos outros.

***
252. Almas predestinadas, escravas de Jesus em Maria, aprendei que a Ave-Maria é a mais bela de todas as orações, depois do Pai-nosso. É a saudação mais perfeita que podeis fazer a Maria, pois é a saudação que o Altíssimo indicou a um arcanjo, para ganhar o coração da Virgem de Nazaré. E tão poderosas foram aquelas palavras, pelo encanto secreto que contêm, que Maria deu seu pleno consentimento para a Encarnação do Verbo, embora relutasse em sua profunda humildade. É por esta saudação que também vós ganhareis infalivelmente seu coração, contanto que a digais como deveis.
253. A Ave-Maria, rezada com devoção, atenção e modéstia, é, como dizem os santos, o inimigo do demônio, pondo-o logo em fuga, e o martelo que o esmaga; a santificação da alma, a alegria dos anjos, a melodia dos predestinados, o cântico do Novo Testamento, o prazer de Maria e a glória da Santíssima Trindade. A Ave-Maria é um orvalho celeste que torna a alma fecunda; é um beijo casto e amoroso que se dá em Maria, é uma rosa vermelha que se lhe apresenta, é uma pérola preciosa que se lhe oferece, é uma taça de ambrosia e de néctar divino que se lhe dá. Todas estas comparações são de santos ilustres.
254. Rogo-vos instantemente, pelo amor que vos consagro em Jesus e Maria, que não vos contenteis de recitar a coroinha da Santíssima Virgem, mas também o vosso terço, e até, se houver tempo, o vosso rosário, todos os dias, e abençoareis, na hora da morte, o dia e a hora em que me acreditastes; e, depois de ter semeado sob as bênçãos de Jesus e de Maria, colhereis bênçãos eternas no céu: “Qui seminat in benedictionibus, de benedictionibus et metet” (2Cor 9,6).

§ VI. Recitação do Magnificat.
255. Sexta prática. Para agradecer a Deus pelas graças que concedeu à Santíssima Virgem, dirão frequentemente o Magnificat, a exemplo da bem- aventurada Maria d’Oignies e de muitos outros santos. É a única oração e a única obra composta por Maria, ou, melhor, que Jesus fez por meio dela, pois Ele fala pela boca de sua Mãe Santíssima. É o maior sacrifício de louvor que Deus já recebeu na lei da graça. É, dum lado, o mais humilde e o mais reconhecido e, doutro, o mais sublime e mais elevado de todos os cânticos. Há neste cântico mistérios tão grandes e tão ocultos, que os próprios anjos ignoram. Gerson, que foi um doutor tão sábio quanto piedoso, depois de empregar grande parte de sua vida escrevendo tratados cheios de erudição e piedade, sobre os mais difíceis temas, tremeu e vacilou no fim da carreira, ao empreender a explicação do Magnificat, com que tencionava coroar todas as suas obras. Num volume in-folio, ele nos diz coisas admiráveis do belo e divino cântico. Entre outras, afirma que a Santíssima Virgem o recitava muitas vezes sozinha, principalmente depois da santa comunhão, em ação de graças. O sábio Benzônio, numa explicação do mesmo cântico, cita vários milagres operados por sua virtude, e diz que os demônios tremem e fogem, quando ouvem as palavras do Magnificat: “Fecit potentiam in brachio suo, dispersit superbos mente cordis sui” (Lc 1,51).

§ VII. O desprezo pelo mundo.
256. Sétima prática. Os fiéis servos de Maria devem desprezar, odiar e fugir ao mundo corrompido, e servir-se das práticas de desprezo pelo mundo, que assinalamos na primeira parte[18].
____________________
1. Homil. II in Evangel.
2. Os votos de São Luís Maria de Montfort se realizaram. Sua querida devoção está ereta em Arquiconfraria, cujos membros, já numerosos, multiplicam-se de um modo extraordinário.
3. Estas palavras de São Luís Maria parecem aludir a outra obra que teria servido de introdução a esta, como, por exemplo: “L’amour de la Sagesse éternelle” (Cf. cap. VII e XVI).
4. Cf. no fim do volume os exercícios espirituais aconselhados pelo autor para esses doze dias e essas três semanas preparatórias à consagração.
5. Cf. acima n. 78ss.
6. “Pensa no que foste: um pouco de lodo; no que és: vaso de escórias; no que serás: pasto de vermes” (SÃO BERNARDO, inter opera: Meditação sobre o conhecimento da condição humana).
7. “Senhor, fazei que eu veja” (Lc 18,41).
8. SANTO AGOSTINHO: “Que eu me conheça”.
9. Estas ladainhas do Espírito Santo encontram-se no apêndice no fim do volume.
10. Os membros da Arquiconfraria de Maria, Rainha dos corações, ganham uma indulgência de 300 dias todas as vezes que renovarem sua consagração, pelas palavras: “Sou todo vosso, e tudo que possuo vos ofereço, ó meu amável Jesus, por Maria, vossa Mãe santíssima”.
11. Entre outros, SANTO AGOSTINHO (Tract. de Symbolo ad Catechumenos, 1. IV, cap. I); • SÃO BERNARDO (Sermo super “Signum Magnum”, n. 3).
12. “Fazei-me digno de vos louvar, ó Virgem sagrada, e dai-me força contra os vossos inimigos”.
13. Poder-se-ia crer que certos decretos das Congregações Romanas tenham proibido terminantemente o uso dessas pequenas cadeias. Nada vemos, contudo, nesses decretos que interdite esta prática, símbolo da escravidão a Jesus em Maria, no que consiste propriamente a devoção do B. Montfort (Cf. Analecta Iuris Pontificii, 1a série, col. 757).
14. No dia 25 de março, todos os membros da Arquiconfraria de Maria, Rainha dos corações, podem ganhar uma indulgência plenária.
15. Cf. esta oração no fim do volume, p. 297.
16. SANTO AMBRÓSIO. De Instit. Virg., cap. VII, n. 50.
17. RICARDO DE SÃO LOURENÇO. De laud. Virg. 1. IV.
18. Cf. nota 3 do n. 227. Cf. “L’Amour de la Sagesse éternelle”, cap. XVI.
 
ARTIGO II - Práticas especiais e interiores para os que querem tornar-se perfeitos
257. Além das práticas exteriores da devoção que vimos referindo, as quais não se deve omitir por negligência ou desprezo, na medida em que o estado e as condições de cada um o permitem, acrescentamos algumas práticas interiores assaz santificantes para aqueles chamados pelo Espírito Santo a mais alta perfeição.
Consiste, em quatro palavras, em fazer todas as suas ações por Maria, com Maria, em Maria e para Maria, a fim de fazê-las mais perfeitamente por Jesus, com Jesus, em Jesus e para Jesus.

§ I. Fazer todas as ações por Maria.
258. 1º) É preciso fazer todas as ações por Maria, quer dizer, em todas as coisas obedecer à Santíssima Virgem, e em tudo conduzir-se por seu espírito, que é o santo espírito de Deus. São filhos de Deus os que se conduzem pelo espírito de Deus: “Qui spiritu Dei aguntur, ii sunt filii Dei” (Rm 8,14). E os que pautam sua conduta pelo espírito de Maria são filhos de Maria e, por conseguinte, filhos de Deus, como já demonstramos; entre tantos devotos da Santíssima Virgem, só os que se conduzem por seu espírito é que são devotos verdadeiros e fiéis. Disse que o espírito de Maria é o espírito de Deus, porque ela jamais se conduziu por seu próprio espírito, e sempre pelo espírito de Deus, e este de tal modo a dominou que acabou se tornando seu próprio espírito. Por isto, diz Santo Ambrósio: “Sit in singulis... etc. – Esteja a alma de Maria em cada um para glorificar o Senhor; esteja em cada um o espírito de Maria para que se regozija em Deus”[1]. Quão feliz é uma alma quando, a exemplo do bom irmão jesuíta Rodriguez[2], falecido em odor de santidade, é toda possuída e governada pelo espírito de Maria, que é um espírito suave e forte, zeloso e prudente, humilde e corajoso, puro e fecundo!
259. Para que a alma se deixe conduzir por este espírito de Maria, é mister: 1º) Renunciar ao próprio espírito, às próprias luzes e vontades, antes de qualquer coisa: por exemplo, antes da oração, antes de dizer ou ouvir a santa missa, antes de comungar, etc...; pois as trevas de nosso próprio espírito e a malícia de nossa vontade própria, se bem que nos pareçam boas, poriam obstáculo ao santo espírito de Maria. 2º) É preciso entregar-se ao espírito de Maria para ser por ele movido e conduzido como ela quiser. Cumpre colocar- se e permanecer entre suas mãos virginais como um instrumento nas mãos de um operário, como uma cítara nas mãos de um artista. Cumpre abandonar-se e perder-se nela, como uma pedra que se atira ao mar. E isto se faz simplesmente e num instante, por um só olhar do espírito, um pequeno movimento da vontade, ou verbalmente, dizendo, por exemplo: “Renuncio a mim mesmo, dou-me a vós, minha querida Mãe”. E ainda que não sintamos nenhuma doçura sensível neste ato de união, ele não deixa de ser verdadeiro, do mesmo modo que, se disséssemos, com desagrado de Deus: “Dou-me ao demônio”, com a mesma sinceridade, embora o disséssemos sem mudança alguma sensível, não pertenceríamos menos verdadeiramente ao demônio. 3º) É preciso, de tempo em tempo, durante uma ação ou depois, renovar o ato de oferecimento e de união, e, quanto mais o fizermos, mais cedo nos santificaremos, e mais cedo chegaremos à união com Jesus Cristo, que segue sempre necessariamente a união com Maria, pois o espírito de Maria é o espírito de Jesus.

§ II. Fazer todas as ações com Maria.
260. 2º) É mister fazer todas as ações com Maria, isto é, em todas as ações olhar Maria como um modelo acabado de todas as virtudes e perfeições, que o Espírito Santo formou numa pura criatura, e imitá-lo na medida de nossa capacidade. Cumpre, portanto, que, em cada ação, consideremos como Maria a fez ou faria se estivesse em nosso lugar. Devemos, por isso, examinar e meditar as grandes virtudes que ela praticou durante a vida, especialmente: 1º) sua fé viva, pela qual creu fiel e constantemente até ao pé da cruz, sobre o Calvário; 2º) sua humildade profunda que a levou a esconder-se, a calar-se, a submeter-se a tudo e a colocar-se em último lugar; 3º) sua pureza divinal, que jamais teve nem terá semelhante sob o céu, e por fim todas as suas outras virtudes.
Lembrai-vos, repito-o uma segunda vez, de que Maria é o grande e único molde de Deus[3] próprio para fazer imagens vivas de Deus, com pouca despesa e em pouco tempo; e que uma alma que encontrou este molde, e que nele se perde, fica em breve mudada em Jesus Cristo, aí representado ao natural.

§ III. Fazer todas as ações em Maria.
261. 3º) É preciso fazer todas as ações em Maria.
Para compreender cabalmente esta prática, é necessário saber que a Santíssima Virgem é o verdadeiro paraíso terrestre do novo Adão, de que o antigo paraíso terrestre é apenas a figura. Há, portanto, neste paraíso terrestre, riquezas, belezas, raridades e doçuras inexplicáveis, que o novo Adão, Jesus Cristo, aí deixou. Neste paraíso Ele pôs suas complacências durante novos meses, aí operou suas maravilhas e aí acumulou riquezas com a magnificência de um Deus. Este lugar santíssimo é formado de uma terra virgem e imaculada, da qual se formou e nutriu o novo Adão, sem a menor mancha ou nódoa, por operação do Espírito Santo que aí habita. É neste paraíso terrestre que está em verdade a árvore da vida que produziu Jesus Cristo, o fruto de vida; a árvore da ciência do bem e do mal, que deu a luz ao mundo. Há, neste lugar divino, árvores plantadas pela mão de Deus e orvalhadas por sua unção divina, árvores que produziram e produzem, todos os dias, frutos maravilhosos de um sabor divino; há canteiros esmaltados de belas e variegadas flores de virtudes, cujo perfume delicia os próprios anjos. Ostentam-se neste lugar prados verdes de esperança, torres inexpugnáveis e fortes, habitações cheias de encanto e segurança, etc. Ninguém, exceto o Espírito Santo, pode dar a conhecer a verdade oculta sob estas figuras de coisas materiais. Reina neste lugar um ar puro, sem infecção, um ar de pureza; um belo dia sem noite, da humanidade santa; um belo sol sem sombras, da Divindade; uma fornalha ardente e contínua de caridade, na qual todo o ferro que aí se lança fica abrasado e se transforma em ouro; há um rio de humildade que surge da terra, e que, dividindo-se em quatro braços, rega todo este lugar encantado: são as quatro virtudes cardeais.
262. O Espírito Santo, pela boca dos Santos Padres, chama também a Santíssima Virgem: 1º) a porta oriental, por onde o sumo sacerdote Jesus Cristo entra e vem ao mundo (cf. Ez 44,2-3); por ela entrou da primeira vez, e por ela virá da segunda; 2º) o santuário da Divindade, o reclinatório da Santíssima Trindade, o trono de Deus, a cidade de Deus, o altar de Deus, o templo de Deus, o mundo de Deus. Todos estes diferentes epítetos e louvores são verdadeiros em relação às diversas maravilhas e graças que o Altíssimo realizou em Maria. Oh! que riqueza! que glória! que prazer! que felicidade poder entrar e habitar em Maria, em quem o Altíssimo colocou o trono de sua glória suprema!
263. Mas quão difícil é a pecadores, como somos, alcançar a permissão e a capacidade e a luz para entrar em lugar tão alto e tão santo, guardado não por um querubim, como o antigo paraíso terrestre, mas pelo próprio Espírito Santo, que dele se tornou o Senhor absoluto e do qual diz: “Hortus conclusus soror mea sponsa, hortus conclusus, fons signatus” (Ct 4,12). Maria é fechada; Maria é selada; os miseráveis filhos de Adão e Eva, expulsos do paraíso terrestre, só têm acesso a este outro paraíso por uma graça especial do Espírito Santo, a qual devem merecer.
264. Depois que, pela fidelidade, obtivemos esta graça insigne, é com complacência que devemos morar no belo interior de Maria, aí repousar em paz, aí apoiar-nos com toda a confiança, aí seguramente esconder-nos e perder-nos sem reserva, a fim de que neste seio virginal: 1º) a alma se alimente do leite de sua graça e de sua misericórdia maternal; 2º) aí fique livre de suas perturbações, de seus temores e escrúpulos ; 3º) aí esteja em segurança, ao abrigo de todos os seus inimigos, o demônio, o mundo e o pecado, que aí não têm jamais entrada; e por isso ela diz que os que operam nela, não pecarão: “Qui operantur in me, non peccabunt” (Eclo 24,30), isto é, os que, em espírito, habitam a Santíssima Virgem, não cometerão pecado grave; 4º) para que a alma fique formada em Jesus Cristo e Jesus Cristo nela; porque o seu seio, como dizem os Santos Padres[4], é a sala dos sacramentos divinos, onde Jesus Cristo e todos os eleitos se formaram: “Homo et homo natus est in ea” (Sl 86,5)[5].

§ IV. Fazer todas as ações para Maria.
265. 4°) É preciso fazer finalmente todas as ações para Maria. Porque, desde que nos entregamos completamente a seu serviço, é justo que façamos tudo para ela, como um criado, um servo, um escravo. Não a tomamos, porém, como fim último de nossos serviços, que é somente Jesus Cristo, mas como fim próximo, intermédio misterioso, e o meio mais fácil de chegar a Ele. A exemplo de um bom servo e escravo é preciso que não fiquemos ociosos, e sim que, apoiados por sua proteção, empreendamos e realizemos grandes coisas para tão augusta Soberana. É preciso defender seus privilégios quando alguém lhos disputar; sustentar sua glória, quando alguém a atacar; atrair todo o mundo, se for possível, ao seu serviço e a esta verdadeira e sólida devoção; falar, clamar contra todos os que abusem de sua devoção para ultrajar seu Filho; e ao mesmo tempo estabelecer esta verdadeira devoção. E como recompensa destes pequenos serviços, não devemos pretender mais que a honra de pertencer a uma Princesa tão amável, e a felicidade de, por meio dela, ficarmos unidos a Jesus Cristo, seu Filho, com um liame indissolúvel no tempo e na eternidade.
Glória a Jesus em Maria!
Glória a Maria em Jesus!
Glória a Deus somente!
____________________
1. Palavras já citadas e comentadas no n. 217,
2. Canonizado por Leão XIII, em 15 de janeiro de 1888. 3. Cf. n. 218s.
4. Cf. acima n. 248: “Aula sacramentorum”.
5. Sobre este texto, cf. o comentário de nosso Santo, n. 32.
 
Suplemento - Modo de praticar esta devoção na santa comunhão
 
I - Antes da comunhão
266. 1º) Humilhar-vos-eis profundamente diante de Deus. 2º) Renunciareis a vosso íntimo corrompido e a vossas disposições, ainda que vosso amor- próprio vo-las faça parecer boas. 3º) Renovareis vossa consagração, dizendo: “Tuus totus ego sum, et omnia mea tua sunt: Sou todo vosso, minha querida Senhora, com tudo que tenho”[1]. 4º) Suplicareis a esta boa Mãe que vos empreste seu coração, para, com as mesmas disposições, receberdes seu Filho. Fareis ver a ela, que importa à glória de seu Filho não ser introduzido num coração tão manchado como o vosso, e tão inconstante, que havia de tirar-lhe a glória ou perdê-la; se ela, entretanto, quiser habitar em vós para receber seu Filho, pode-o facilmente, em vista do domínio que tem sobre os corações; e, por ela, seu Filho será bem recebido, sem mancha, e sem perigo de ser ultrajado : “Deus in medio eius non commovebitur” (Sl 45,6). Dir-lhe- eis confidentemente que tudo que lhe tendes dado de vossos bens é pouco para honrá-la, mas, pela santa comunhão, lhe dareis o mesmo presente que o Pai eterno lhe deu, presente que mais há de honrá-la, que se lhe désseis todos os bens do mundo; e que, enfim, Jesus deseja ainda ter nela suas complacências e seu repouso, seja, embora, em vossa alma, mais suja e pobre do que o estábulo, ao qual Jesus não opôs dificuldades em descer, pois que ela lá estava. Com as seguintes e ternas palavras lhe pedireis seu coração: “Accipio te in mea omnia. Praebe mihi cor tuum, o Maria!”[2].
 
II - Durante a comunhão
267. Prestes a receber Nosso Senhor Jesus Cristo, dir-lhe-eis três vezes, depois do “Pater”: “Domine, non sum dignus...” etc., como se dissésseis, pela primeira vez, ao Pai eterno que, devido a vossos maus pensamentos e ingratidões para com Ele, não sois digno de receber seu único Filho. Eis, porém, Maria, sua serva: “Ecce ancilla Domini”, que tudo faz por vós, e que vos dá uma confiança e esperança especiais, junto de sua Majestade: “Quoniam singulariter in spe constituisti me” (Sl 4,10).
268. Direis ao Filho: “Domine, non sum dignus...” etc., que não sois digno de recebê-lo, por causa de vossas palavras inúteis e más, e vossa infidelidade em seu serviço; vós lhe rogais, entretanto, que tenha piedade de vós, pois que ides introduzi-lo na morada de sua própria Mãe e vossa, e que não o deixareis partir, sem que Ele venha aí alojar-se: “Tenui eum, nec dimittam, donec introducam illum in domum matris meae, et in cubiculum genitricis meae” (Ct 3,4). Implorar-lhe-eis que se levante e venha para o lugar de seu repouso e para a arca de sua santificação: “Surge, Domine, in requiem tuum, tu et arca sanctificationis tuae” (Sl 131,8). Dir-lhe-eis que, de modo algum, depositais vossa confiança em vossos méritos, vossa força e vossas preparações, como Esaú, e sim nos de Maria, vossa querida Mãe, a exemplo do pequeno Jacó nos desvelos de Rebeca; que, pecador e Esaú que sois, ousais aproximar-vos de sua santidade, ornado e apoiado pelas virtudes de sua Mãe Santíssima.
269. Direis ao Espírito Santo: “Domine, non sum dignus”, etc.; que não sois digno de receber a obra-prima de sua caridade, em vista da tibieza e iniquidade de vossas ações e de vossas resistências a suas inspirações. Mas toda a vossa confiança é Maria, sua fiel Esposa. E direis com São Bernardo: “Esta é a minha maior confiança; Esta é toda a razão da minha esperança”. Podeis mesmo pedir-lhe que desça ainda a Maria, sua Esposa inseparável; pois seu seio é tão puro e seu coração tão abrasado como sempre, e que se ele não descer à vossa alma, Jesus e Maria não serão aí formados, nem dignamente alojados.
____________________
1. Ou então a fórmula indulgenciada, indicada em “Notícia sobre a Arquiconfraria de Maria, Rainha dos corações” (Vantagens e privilégios, 3º).
2. Adaptação dos dois textos da Sagrada Escritura, comentados no decorrer do “Tratado”. Cf. Jo 19,27 e Pr 23,26.
 
III - Depois da santa comunhão
270. Inteiramente recolhido, os olhos fechados, depois da santa comunhão, introduzireis Jesus Cristo no coração de Maria. A sua Mãe o dareis, e ela o receberá amorosamente, colocá-lo-á em lugar de honra, adorá-lo-á profundamente, amá-lo-á perfeitamente, abraçá-lo-á estreitamente, e, em espírito e verdade, lhe prestará honras que nós, cercados de espessas trevas, desconhecemos.
271. Ou, então, jazei profundamente humilhado, na presença de Jesus residindo em Maria; ou permanecei como um escravo à porta do palácio real, onde o Rei se entretém com a Rainha; e, enquanto eles conversam sem necessidade de vossa presença, ide em espírito ao céu e a toda a terra rogar às criaturas que em vosso lugar agradeçam, adorem e amem a Jesus e Maria: “Venite, adoremus, venite!” (Sl 94,6).
272. Ou, ainda, pedi a Jesus, em união com Maria, que, por meio dela venha à terra o seu reino, ou a divina sabedoria, ou o amor divino, ou o perdão de vossos pecados, ou qualquer outra graça, mas sempre por Maria e em Maria. E, considerando-vos a vós mesmo, dizei: “Ne respicias, Domine, peccata mea – Senhor, não olheis os meus pecados”[1], “sed oculi tui videant aequitates Mariae”[2]: mas que vossos olhos só vejam em mim as virtudes e graças de Maria. E, lembran-do-vos de vossos pecados, acrescentareis: “Inimicus homo hoc fecit” (Mt 13,28): Eu, que sou o meu maior inimigo, cometi esses pecados; ou, então: “Ab homine iniquo et doloso erue me” (Sl 42,1), ou: “Te oportet crescere, me autem minui” (cf. Jo 3,30): Meu Jesus, é preciso que cresçais em minha alma e que eu diminua. Maria, é preciso que cresçais em mim e que eu seja menos do que tenho sido. “Crescite et multiplicamini” (Gn 1,22): Ó Jesus e Maria, crescei em mim e multiplicai-vos fora, nos outros.
273. São infinidade os pensamentos que o Espírito Santo fornece, e vos fornecerá se fordes bastante interior, mortificado e fiel a esta grande e sublime devoção, que acabo de vos ensinar. Lembrai-vos que, quanto mais deixardes Maria agir em vossa comunhão, mais será Jesus glorificado; e tanto mais deixareis agir Maria para Jesus, e Jesus em Maria, quanto mais profundamente vos humilhardes, e, então, os ouvireis em paz e silêncio, sem vos afligirdes para ver, degustar, nem sentir, pois, em toda parte, o justo vive da fé, e especialmente na santa comunhão que é um ato de fé: “Iustus meus ex fide vivit” (Hb 10,38).
____________________
1. Missal romano, 1ª orat. ante communionem.
2. S1 16,2, aplicado à Santíssima Virgem.