Apresentação

O evangelho segundo São Lucas conta que, quando Jesus nasceu, seus pais receberam a visita inesperada de alguns pastores, os quais anunciaram que haviam sido visitados por um anjo, do qual haviam escutado estas palavras: “Eu vos anuncio uma grande alegria, que será também a de todo o povo: hoje, na cidade de Davi, nasceu para vós o Salvador, que é o Cristo Senhor!” (2,10-11). O Evangelista acrescenta: “todos os que ouviram os pastores ficavam admirados com aquilo que contavam. Maria, porém, guardava todas estas coisas, meditando-as no seu coração” (2,18-19). Que grande lição de sabedoria nos deu a Virgem Maria! Enquanto alguns apenas se admiram com as surpresas que a vida oferece, Ela, sabendo que nada escapa à Providência Divina, procura compreender o que Deus, através delas, está dizendo. Pois o Criador, como ensina o Salmo, não fala somente por meio de palavras: “Não são discursos nem frases ou palavras, nem são vozes que possam ser ouvidas; seu som ressoa e se espalha em toda a terra, chega aos confins do universo a sua voz” (cf. Sl 18 A (19),2-10).
Deus, que não muda, continua a nos falar de vários modos. E, nestes últimos tempos (cf. Hb 1, 1-2), nos fala de modo especial através da Predileta de seu Coração, a Santíssima Virgem Maria. Cada título, cada aparição, cada novo acontecimento envolvente a Mãe de Deus é repleto de significados e tem muito a dizer, sobretudo àqueles que por algum motivo estão a eles mais ligados. Podemos estar certos, então, de que o misterioso título de Nossa Senhora do Brasil tem algo de especial a nos ensinar. Para descobrir esse tesouro, é necessário aprender sua história.

Tudo inicia com uma escultura em madeira de 1,5 metros da Virgem Maria com o Menino Jesus. A Virgem tem traços indígenas e o Menino, traços mestiços. Ambos trazem corações feitos em ouro: a imagem foi originalmente conhecida como Nossa Senhora dos Divinos Corações. Uma antiga tradição conta que ela fora encomendada a um índio artesão por São José de Anchieta (1534-1597), quando este visitou Pernambuco após sua estadia no Espírito Santo, onde fundara a primeira capela dedicada ao Sagrado Coração de Jesus. A imagem teria permanecido em uma aldeia indígena até meados de 1630 e desaparecido durante os ataques dos holandeses calvinistas no Nordeste – em Pernambuco, sua ocupação se estendeu até 1654.
A Santa, que entre os indígenas havia adquirido certa fama de milagrosa, reaparece na história com os Frades Capuchinhos, os quais, tendo-a conhecido e escolhido como padroeira da recém fundada Prefeitura Apostólica de Pernambuco, entronizaram-na na famosa igreja de Nossa Senhora da Penha, no Recife. A Prefeitura foi criada em 1725 – em 1709, Capuchinhos italianos haviam retomado a Missão da Ordem na Penha, após anos de ocupação francesa.
Em 1828, por ocasião de tumultos e profanações que aconteciam em Pernambuco, o Frei Joaquim d’Afragola, fervoroso devoto da imagem, enviou-a em segredo a seu convento de origem em Nápoles, na Itália. Lá ela permaneceu por muito tempo na alfândega. Os frades não sabiam do que se tratava e, por falta de recursos para pagar os impostos, não retiraram aquela pesada caixa que lhes era destinada. A imagem apenas deixou a alfândega por iniciativa dos guardas que, curiosos, abriram a caixa e, impressionados, arcaram com os custos para liberá-la. Ela foi instalada no convento de Santo Efrém, onde os capuchinhos a expuseram para veneração dos fiéis. Foi lá que, por conta de sua origem, a imagem de Nossa Senhora dos Divinos Corações começou a ser chamada de Madonna del Brasile – isto é, Nossa Senhora do Brasil – e Virgem Mãe de Deus Brasileira.
A imagem, à qual foram atribuídos vários milagres pelo povo napolitano, tornou-se famosa quando, na madrugada de 22 de fevereiro de 1840, sobreviveu ilesa a um incêndio que destruiu a igreja de santo Efrém. O povo napolitano acorreu para vê-la intacta em meio às ruínas fumegantes e o prodígio se espalhou pela Itália. A igreja foi reconstruída e o local tornou-se meta de peregrinação: nasceu assim a devoção a Nossa Senhora do Brasil. Ao longo dos anos, o aumento dos milagres relatados fez com que a própria Santa Sé recomendasse a coroação da Santa com o título que hoje conhecemos: oficializava-se, então, o título de Nossa Senhora do Brasil. Em 1867, uma reorganização dos capuchinhos fez com que a imagem fosse transferida a outra igreja de Nápoles, também esta dedicada a Santo Efrém.
Todavia, tanto a imagem como esta nova devoção eram desconhecidas dos brasileiros. Foi apenas em 1924, por iniciativa do bispo D. Frederico de Souza Costa, que a história chegou a nós. Tendo ouvido falar da Santa, D. Frederico tratou de conhecê-la e dá-la a conhecer. O culto a Nossa Senhora do Brasil começou no Rio de Janeiro, em Porto Alegre e em São Paulo. Em 17 de dezembro de 1933 foi inaugurada na Urca, no Rio de Janeiro, a primeira igreja a ela consagrada. Em 1940, o arcebispo D. José de Afonseca e Silva criou, no Jardim América, em São Paulo, a paróquia a ela dedicada e, dois anos depois, iniciou-se a construção da igreja matriz.
Desde então, foram muitas as tentativas para trazer a imagem de volta a sua terra de origem – todas, infelizmente, inexitosas. De fato, seria para nós brasileiros uma grande honra e fonte de graças ter a presença física da Santa conosco, mas isso, no fundo, não é o essencial: o mais importante é sabermos extrair de todos estes acontecimentos as riquezas espirituais que Deus nos quer comunicar. Quantas são as coisas a serem tiradas dessa história tão singela, que poderíamos chamar de síntese da identidade e missão brasileiras! Diz Jesus que “todo escriba que se torna discípulo do Reino dos Céus é como um pai de família, que tira do seu tesouro coisas novas e velhas” (Mt 13,52). Vejamos, então, algumas das lições que podemos extrair da história de Nossa Senhora do Brasil, que foi intitulada Padroeira da Família Brasileira.

Se pensássemos como os poderosos deste mundo, provavelmente desprezaríamos uma devoção cuja origem é tão simplória: passaram-se já vários séculos, e tão poucos a conhecem! Ademais, a Senhora do Brasil foi assim chamada por estrangeiros, e por muito tempo não havia sequer um brasileiro a conhecê-la! E, no entanto, que erro cometeríamos... Pensemos bem: não foi assim que Deus sempre agiu na História – Ele, que escolheu fazer de Seu Filho eterno, destinado a ser o Novo Adão e Rei do Universo, o filho de um humilde carpinteiro de uma província esquecida nos confins do Império Romano, desprovida de qualquer importância – não à toa Natanael havia questionado: “de Nazaré pode sair algo de bom?” (Jo 1,46); não seria coerente que a Virgem Puríssima, por meio da qual Deus “derrubou os poderosos de seus tronos e exaltou os humildes” (Lc 1,52), quisesse dar-se a nós dessa maneira? Que grande sinal de predileção, portanto, é a misteriosa pequenez com a qual Deus conduz o povo brasileiro!

De fato, coisa semelhante se deu com a imagem de Nossa Padroeira, a Senhora Aparecida: enquanto outras Terras narram aparições e eventos extraordinários, a Virgem Maria decidiu nos visitar por meio de uma pequenina imagem encontrada no leito de um rio. Eis a sábia lógica divina: Suas grandes obras costumam iniciar na humildade do silêncio e da pobreza, para depois crescerem e se tornarem gloriosas. Também a nós, brasileiros, Deus parece conceder tal vocação! Sim, devemos buscar com todas as forças, por meio do trabalho e da oração ordinários, a santificação de nossos pobres corações, para que, à medida que estes se conformem aos Divinos Corações de Jesus e Maria, também o nosso grande e sofrido Brasil, Terra de Santa Cruz, alcance a glória à qual está destinado e venha a ser luz para o mundo inteiro. A história de Nossa Senhora do Brasil parece nos ensinar essa lição.
Ademais, que tal título tenha nascido em terra estrangeira é também fonte de precioso ensinamento. A fé cristã, à diferença das tantas crenças surgidas ao longo da História, não é fruto do engenho humano, mas dom inimaginável de Deus para a salvação dos homens. Nós não a criamos, mas a recebemos e acolhemos com docilidade e gratidão. De fato, convém saber que todas as heresias e males que acometem nossa amada Igreja nascem quando nós, ao invés de sermos transformados à imagem de Cristo, procuramos deformá-lo à imagem de nossos caprichos. Que Nossa Senhora do Brasil tenha sido assim chamada por italianos é mais uma prova de que não somos nós que queremos nos promover, mas de que é Deus a querer nos presentear com o amor de Maria. O mesmo ensina a imprevista história da devoção: não foi planejada foi cristãos devotos, mas tecida pela Providência ao longo dos séculos. Lembremo-nos, porém, de que “o amor de Cristo nos impele” – caritas Christi urget nos (2Cor 5,14): suas bênçãos requerem aquela alegre e esforçada correspondência, pois amor com amor se paga. Se o Brasil é uma terra abençoada, temos que nos empenhar para que dê frutos!

Por fim, vale mencionar dois detalhes da imagem original – deixando as restantes riquezas desta devoção para serem descobertas pelos corações devotos. Sendo uma imagem dos Divinos Corações, ela se reveste de singular significado nestes tempos de apostasia da fé. A meditação e contemplação dos Divinos Corações têm sido promovida pela Igreja de modo especial nos últimos dois séculos, como forma de ajudar a humanidade a redescobrir o infinito Amor de Deus revelado em Jesus Cristo, única esperança deste mundo. De fato, a Virgem Santíssima, cujas aparições se têm propagado nas últimas décadas, preparando a humanidade para os desafios que estão por vir, por vezes nos exortou a não temer, pois, no fim, seu Imaculado Coração triunfará.

Por outro lado, os traços índios e mestiços da Imagem são um reflexo da lógica da Encarnação: Deus, sem deixar de ser o que é, se transforma no que não é, para salvar aqueles que estão longe dEle! São duas coisas irrenunciáveis na vocação cristã ao apostolado: sem renunciar a ser o que somos por vocação, isto é, sem jamais abrir mão das verdades de nossa fé e da renúncia a todo tipo de pecado, fazermo-nos como São Paulo: “assim, livre em relação a todos, eu me tornei escravo de todos, a fim de ganhar o maior número possível. Com os judeus, me fiz judeu, para ganhar os judeus. Com os súditos da Lei, me fiz súdito da Lei – embora não fosse mais súdito da Lei –, para ganhar os súditos da Lei. Com os sem-Lei, me fiz um sem-lei – eu que não era sem a lei de Deus, já que estava na lei de Cristo –, para ganhar os sem-lei. Com os fracos me fiz fraco, para ganhar os fracos. Para todos eu me fiz tudo, para certamente salvar alguns” (1Cor 9,19-22). Também a Virgem Maria se apresenta a cada povo com os traços que A tornam mais atraente para os corações humildes. Não por alguma ideologia passageira – e as há em tanta profusão, atualmente! – mas por sincera caridade, a qual jamais se separa da Verdade!

Nossa Senhora dos Divinos Corações, rogai por nós!
Nossa Senhora do Brasil, rogai por nós!

 Primeiro Dia

IGNORÂNCIA DO MAL
Como acontecerá isso, se não conheço homem algum? (Lc 1, 34)
Pai, perdoa-lhes! Eles não sabem o que fazem! (Lc 23, 34)

Do momento em que foi pregado na Cruz até quando entregou Seu Espírito, Jesus proferiu Sete Palavras – e são também Sete as Palavras que nos Evangelhos se atribui a Maria, desde o anúncio do anjo Gabriel até o início da vida pública de seu Filho, em Caná. A partir deste paralelo, nossa novena seguirá, durante seus sete primeiros dias, a tradição espiritual de relacionar cada Palavra de Nossa Senhora à correspondente Palavra de seu Filho.
Neste primeiro dia, então, as Palavras de Maria e de Jesus convergem no tema da ignorância: os algozes do Senhor não sabem o que fazem, e Nossa Senhora não conhece homem algum.
No mundo em que vivemos, toda ignorância é sempre associada a um defeito, um dos piores males que pode afligir alguém. A era da informação tenta nos convencer de que nossa felicidade depende de termos acesso constante a um fluxo torrencial e indiscriminado de dados: a cada minuto nosso celular apita com uma nova notificação, curtida, tweet ou story de que devemos tomar conhecimento “com urgência”... Na Escritura, por outro lado, qualquer sabedoria deste mundo que não seja capaz de reconhecer a Deus é chamada de loucura (cf. 1Cor 1, 20-21), e por isso os pequeninos são julgados espiritualmente mais perspicazes do que os sábios e entendidos (cf. Lc 10, 21).
Na Primeira Palavra de Jesus e de Maria, com efeito, a ignorância é tida como algo positivo, como uma benção: é precisamente porque não sabem o que fazem que Jesus intercede por seus carrascos (cf. At 3, 16); e para a jovem Maria, que havia consagrado a própria virgindade a Deus, o não conhecer homem significava fidelidade ao voto assumido.
Mas como pode a ignorância ser algo bom? É possível que algum tipo de conhecimento nos seja indesejável? Aqui convém lembrarmos que a tentação de Satanás a nossos primeiros pais foi justamente a de almejarem ser “conhecedores do bem e do mal” (Gn 3, 5). E é precisamente este tipo de conhecimento – aquele que tem por objeto o mal – que nos é nocivo: pois todo aquele que experimenta o mal e o pecado, longe de compreendê-lo, torna-se antes incapaz de entender-lhe a maldade.
São justamente os mais castos que entendem a malícia da impureza, como também são os mais honestos que percebem a feiura da injustiça. Exatamente por isso é que Jesus e Maria, as duas pessoas mais inocentes que andaram nesta terra, eram os mais capazes de sofrer com a visão do mal – e foi esta sua maior angústia no Calvário.
Infelizmente, nenhum de nós pecadores pode afirmar sua ignorância nesta matéria: todos conhecemos o pecado, e conhecemo-lo por experiência própria – embora não sejamos sempre capazes de enxergar-lhe as consequências... A boa notícia, no entanto, é que existe para nós uma “escola de desaprendizado”, que nos permite purificar a alma e voltar a enxergar a vida com os olhos de Deus: o Tribunal de Misericórdia que se nos abre no Confessionário. Aproveitemos desta novena, então, para suplicarmos a graça de desaprender nossa malícia com uma boa Confissão, feita com a candura das criancinhas (cf. Mt 18, 3).

Maria, exemplo de ignorância do mal

Ó puríssima Virgem Maria, que em todas as vicissitudes da vida trilhastes apenas o caminho do bem e vos abstivestes de toda experiência do mal: rogo-vos me obtenhais a graça de imitar o vosso exemplo na pureza de coração perante toda espécie de malícia.
Ajudai-me a dirigir os pensamentos unicamente ao que é verdadeiro, nobre, justo, puro, amável, honroso, virtuoso e louvável, e a não ter nunca diante dos olhos qualquer coisa má, injustiça ou pecado (cf. Sl 100 (101); Fl 4, 8).
Acolhei com bondade maternal as súplicas que Vos dirijo nesta Novena, e apresentai-as a Jesus, que se dignou tomar-vos por sua Mãe na terra e no Céu.
Amém.

Rogai por nós, Nossa Senhora do Brasil, para que sejamos dignos das promessas de Cristo.

 Segundo Dia

ADESÃO À VONTADE DIVINA
Faça-se em mim segundo a tua palavra. (Lc 1, 38)
Em verdade te digo: hoje estarás comigo no paraíso. (Lc 23, 43)

Nesta vida podemos gozar de muitos bens: saúde, prosperidade, inteligência, influência, amigos e família – mas a verdade é que, mais cedo ou mais tarde (e no limite, na hora da morte), seremos privados de todos eles. A única coisa que possuímos incondicionalmente é nossa vontade livre: na terra como no Céu (e também no inferno!), nossa vontade é irrevogavelmente nossa. Por conseguinte, a única coisa que realmente importa na vida é o modo com que orientamos nossa vontade, e o fim último a que a dirigimos – e é precisamente neste tema que confluem a Segunda Palavra de Maria e de Jesus.
No caso de Nosso Senhor, aquela salutar Palavra “hoje estarás comigo no Paraíso” foi dirigida ao Bom Ladrão, após uma radical reorientação da vontade. Lembremos, afinal, que este ladrão nem sempre foi bom: nos instantes iniciais da crucifixão, o Evangelho nos diz que insultavam ao Senhor “os dois ladrões que foram crucificados com ele” (cf. Mt 27, 44). Ao verem Jesus intercedendo ao Pai por seus carrascos, cada um dos malfeitores reagiu de forma diferente: um deles continuou a ofendê-lo, mas o outro o repreendeu: “‘Nem sequer temes a Deus, tu que sofres a mesma condenação? Para nós, é justo sofrermos, pois estamos recebendo o que merecemos; mas este, não fez nada de mal’. E acrescentou: ‘Jesus, lembra-te de mim, quando entrares no teu reino’” (Lc 23, 39-42). O antigo ladrão tornava-se agora São Dimas, “aquele que nasceu ao pôr-do-sol”, porque no poente de sua vida aceitou livremente a vontade de Deus a seu respeito.
Quanto a Nossa Senhora, sua Segunda Palavra é o assentimento irrestrito que com seu Fiat dá ao anjo que lhe viera comunicar os desígnios de Deus. “O fiat é muito mais que uma autorização: é uma adesão absoluta e firme ao plano divino; é um ato positivo de vontade pelo qual a Virgem queria o cumprimento dos propósitos divinos, não propriamente sem pensar em si mesma, mas aceitando de uma vez para sempre tudo o que o futuro lhe pudesse reservar, fosse o que fosse”[1].
Assim como São Dimas e Nossa Senhora, cada um de nós é chamado pela Providência a ocupar um lugar único no grande plano universal de salvação, por meio da aceitação da Cruz que lhe é própria. Quando recomenda que cada qual tome a sua cruz (Mt 16, 24; Lc 9, 23), Cristo deixa entrever “que todos têm sua cruz, e, se com olhos desapaixonados dermos uma volta ao mundo, acharemos que é assim. Que estado há no mundo, desde o mais alto ao mais humilde, desde o mais livre ao mais sujeito, desde o mais abundante ao mais pobre, desde o mais apetecido ao mais desprezado, que, ou por fora, ou por dentro não tenha sua cruz? Umas vemos, outras não vemos, e as menos visíveis são ordinariamente as mais pesadas, porque são as mais interiores, e as que carregam só na alma. É este mundo como o Monte Calvário, em que se acham todos os estados, e todos com cruz”[2].
E em que consiste este tomar a Cruz? Não se trata de fazer grandes coisas, mas de fazer com grande amor. “De fato, não é importante o radicalismo em si, mas se este é uma resposta ao amor de Deus. As coisas espiritualmente significativas na Igreja nunca acontecem porque alguém decidiu fazê-las, mas porque Deus encontra alguém disponível a acolhê-lo de maneira tão radical que ele pode se manifestar e cumprir a sua redenção”[3]. Por isso é que uma Santa Teresinha podia proclamar admirada o grande mistério pelo qual “apanhar um alfinete por amor pode converter uma alma”, e um Fulton Sheen podia afirmar que “esfregar o chão do escritório por amor a Deus é maior que comandar o escritório por amor ao dinheiro”[4]. “No serviço de Deus, não há ofícios de pouca categoria: todos são de muita importância. – A categoria do ofício depende do nível espiritual de quem o realiza”[5].
O caminho para nossa santidade, portanto, é aquele que Maria escolheu na Anunciação, que o Bom Ladrão escolheu no Calvário: o abandono à vontade divina. Supliquemos, então, a graça de entregarmos livremente nosso ser ao plano que Deus traçou para nós.

Maria, exemplo de adesão à vontade divina

Ó obedientíssima Virgem Maria, que com o anúncio do anjo tomastes consciência do papel a que a Providência Vos havia destinado no grande plano divino, e sob essa luz passastes a enxergar todas as alegrias e cruzes que constituíam a trama de vossa existência: obtende-me a graça de ver aquilo que Deus quer em minha vida, e de querê-lo eu também, com todo o coração, ao longo dos mil pequenos acontecimentos de cada dia. Recomendo-Vos também aqueles que se debatem sob o peso de suas Cruzes, para que, discernindo nelas a doce companhia do Crucificado, saibam dar-Lhe seu Fiat. Amém.

Rogai por nós, Nossa Senhora do Brasil, para que sejamos dignos das promessas de Cristo.

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1 Federico Suárez, A Virgem Nossa Senhora.
2 Padre Antonio Vieira, Sermão das chagas de São Francisco.
3. Marko Ivan Rupnik, O Discernimento.
4. Seven Words of Jesus and Mary.
5. São Josemaria Escrivá, Forja, n. 618

 Terceiro Dia

COMPANHEIRISMO ESPIRITUAL
Eis aqui a serva do Senhor! (Lc 1, 38)
Jesus, ao ver sua mãe e, ao lado dela, o discípulo a quem amava, disse à mãe: ‘Mulher, eis teu filho!’ Depois disse ao discípulo: ‘Eis tua mãe!’ (Jo 19, 25-27)

Não seria errado dizer que a santidade consiste na intimidade com Deus – o maior dos mandamentos, afinal, é o “Amarás o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todo o teu entendimento”. Mas estaria equivocada toda noção de amor a Deus que pretendesse excluir ou preterir o amor a todos os outros homens e mulheres, filhos do mesmo Pai: o próprio Jesus, afinal, relembra que o segundo mandamento, semelhante ao primeiro e com o qual compõe uma unidade de que “dependem toda a lei e os profetas”, é aquele “Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Mt 22, 3740). São João é enfático neste ponto: “Se alguém disser: ‘Amo a Deus’, mas odeia seu irmão, é mentiroso. Porque aquele que não ama seu irmão, a quem vê, é incapaz de amar a Deus, a quem não vê” (1Jo 4, 20).
Em princípio, a Providência divina poderia ter disposto a grande história da salvação de tal forma que cada homem percorresse as sendas de sua vida terrena sem sofrer nem exercer influência sobre seus semelhantes – e contudo “aprouve a Deus salvar e santificar os homens, não individualmente, excluída qualquer ligação entre eles, mas constituindo-os em povo que O conhecesse na verdade e O servisse santamente.”[6]
À luz desta verdade de nossa fé, comentava um monge trapista, revisitando as primeiras reminiscências sobre a aquisição de sua consciência moral: “uma vez que a ninguém é possível, nem jamais seria, viver apenas por si próprio e para si próprio, os destinos de milhares de outras pessoas estavam fadados a ser afetados – alguns remotamente, mas outros de forma muito direta e imediata – pelas minhas próprias escolhas e decisões e desejos, como também a minha própria vida haveria de ser moldada e modificada de acordo com a deles. Eu entrava num universo moral em que estaria em relação com todos os demais seres racionais, e no qual multidões inteiras de nós, densas quais enxames de abelhas, arrastar-se-iam reciprocamente em direção a um dado fim comum de bem ou mal, paz ou guerra”[7].
É este companheirismo espiritual o ponto em que se tangenciam a Terceira Palavra de Jesus e a de Maria.
No caso de Nosso Senhor, esta Palavra constituiu em sua Mãe um novo vínculo de maternidade – já não carnal, mas espiritual. E ao falar em termos universais (“Mulher, eis teu filho!”, e não, como seria mais intuitivo, “Mãe, eis aí João!”), Jesus denotava a universalidade do vínculo então instituído: Maria passava a ser mãe na fé de todos discípulos de seu Filho. Aquela mesma Mãe da Alegria que em Belém dera à luz a Cristo, em parto virginal e indolor, tornava-se agora a Mãe das Dores, parturindo entre prantos e gemidos a cada cristão.
Ao receber de seu Filho este novo encargo, Maria deve certamente ter-se lembrado de sua própria Terceira Palavra – aquele Ecce ancilla Domini, “Eis aqui a serva do Senhor”, com que manifestara não tanto uma aceitação passiva dos desígnios divinos a seu respeito, quanto uma prontidão ativa a engajar-se no serviço dos demais. Tanto é assim que, tão logo respondeu ao anjo, Nossa Senhora, ao invés de reclamar atenção para si espalhando a notícia de que seria a Mãe do Messias, “levantou-se e foi apressadamente” numa viagem de cinco dias através das montanhas à casa de sua parenta Isabel, para acudir-lhe às necessidades (Lc 1, 39). E a resposta da anciã à sua saudação, chamando-a agora de “a mãe do meu Senhor” (Lc 1, 43), já prenunciava a nova situação de cada filho de Deus perante aquela a quem Ele tomara por mãe.
Um bom jeito de fomentarmos a consciência desse parentesco espiritual para com Nossa Mãe Santíssima e seu Filho Jesus (e, por consequência, para com cada homem e mulher), é rezarmos assiduamente o Santo Rosário. A repetição das Ave-Marias é tudo menos estéril e monótona: pois um filho pode dizer “eu te amo” muitas vezes à sua mãe – e ainda assim cada repetição será, por força das novas circunstâncias ambientes, uma singular reafirmação de seu amor.

Maria, Exemplo de Companheirismo Espiritual

Ó prestantíssima Virgem Maria, que em vossa singular eleição divina Vos dignastes humilhar-Vos no serviço incansável aos demais, e fostes assim exaltada pelo Senhor, e que recebestes, daquele que gerastes na carne, o ofício de gerá-lo em cada cristão pela fé, eu Vos suplico a graça de enxergar-me corresponsável pelo bem-estar terreno e pela salvação eterna de todos quantos Deus chama a ser seus filhos.
Obtende esta mesma visão sobrenatural a todos os que já possuem a fé no Cristo, para que sirvam com alegria aos que ainda a não têm. Amém.

Rogai por nós, Nossa Senhora do Brasil, para que sejamos dignos das promessas de Cristo.

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6. Vaticano II, Lumen Gentium, n. 9.
7. Thomas Merton, The Seven Storey Mountain, 1, 1, 2.

 Quarto Dia

CONFIANÇA NA VITÓRIA
A minha alma engrandece o Senhor, e meu espírito exulta em Deus, meu Salvador, porque olhou para a condição humilde de sua serva. Todas as gerações, desde agora, me chamarão bem-aventurada, porque o Poderoso fez por mim grandes coisas. Santo é o seu nome, e sua misericórdia se estende, de geração em geração, sobre aqueles que o temem. Ele manifestou poder com o seu braço: dispersou os soberbos nos pensamentos de seu coração. Depôs os poderosos de seus tronos e exaltou os de condição humilde. Encheu de bens os famintos e despediu os ricos sem nada. Amparou Israel, seu servo, lembrando-se da misericórdia, como prometera a nossos pais, a Abraão e à sua descendência, para sempre. (Lc 1, 46-55)
Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste? (Mc 15, 34)

A Quarta Palavra de Jesus, aquele “Eloí, eloí, lemá sabactâni?”, não foi o clamor de um desesperado: Nosso Senhor aludia ao Salmo 21, escrito mil anos antes pelo rei Davi. O cântico, de fato, começa como um lamento, repleto de profecias cumpridas na Paixão: “Riem de mim todos aqueles que me vêem”, “Transpassaram minhas mãos e os meus pés”, “Eles repartem entre si as minhas vestes, e sorteiam entre si a minha túnica”... Logo adiante, no entanto, o Salmo se converte numa confiante profissão de fé na soberania e no amor de Deus: “Vós que temeis ao Senhor Deus, dai-lhe louvores (...), porque Deus não desprezou nem rejeitou a miséria do que sofre sem amparo”; “ao Senhor é que pertence a realeza; Ele domina sobre todas as nações”.
Nossa Senhora, que como judia devota conhecia bem as Escrituras, certamente captou a alusão – e deve-se ter lembrado de sua própria Quarta Palavra, o cântico de louvor que brotara de seu coração 33 anos antes, em visita a sua prima Isabel (Lc 1, 46-55).
De fato, existem paralelos notáveis entre as duas cenas. Por um lado, nenhum dos casos era, sob a ótica humana, particularmente alvissareiro: um “esquecido por Deus”, ultrajado e humilhado na Cruz parecia tudo menos um vitorioso; e uma desconhecida menina de um insignificante vilarejo da Judeia tinha tudo para ser engolfada pelo esquecimento, com o tempo. Os dois momentos, por outro lado, foram marcados pela confiança em meio à escuridão: Jesus proclamava sua vitória antes de a batalha terminar, em meio às trevas que recobriram a terra; Maria afirmava o senhorio de um Senhor ainda não nascido, e guardado no breu de seu ventre.
Nas duas cenas, em suma, transparece com particular vigor a virtude bem propriamente cristã da esperança – aquela “pela qual desejamos o Reino dos céus e a vida eterna como nossa felicidade, pondo toda a nossa confiança nas promessas de Cristo e apoiando-nos, não nas nossas forças, mas no socorro da graça do Espírito Santo”[8]
A verdadeira esperança é muito diferente do mero otimismo. Uma pessoa pode ser otimista por uma disposição natural de seu temperamento – e esta inclinação, em si mesma involuntária, será boa ou ruim conforme sua ordenação para o bem. De que adianta, afinal, um otimismo que nos cega à realidade em nosso entorno?
Há também outros tipos de otimismo, originados de ideologias segundo as quais o futuro da humanidade fatalmente caminharia para uma sociedade perfeitamente sadia e livre de conflitos. Tampouco este otimismo ideológico se confunde nossa esperança cristã – pois nele a crença no futuro não se apoia na amorosa Providência de Deus, mas numa suposta marcha inexorável da história por meio das revoluções sociais ou do progresso técnico-científico do homem. No fundo, “o otimismo ideológico não passa da fachada de um mundo sem esperança, um mundo que por meio dessa fachada ilusória deseja esconder seu próprio desespero. Só assim se explica a angústia desmedida e irracional, esse temor traumático e violento, que surge quando algum acidente no desenvolvimento técnico ou econômico desperta dúvidas quanto ao dogma do progresso”[9]
De fato, é precisamente diante das adversidades (“dito em cristão”, da Cruz![10]) que se nota toda a força sobrenatural da esperança cristã. H. G. Wells era um ateu e otimista ideológico: em 1902, ao final de um século de enormes progressos no conhecimento humano, ele profetizava um futuro brilhante em que os descendentes do homem ainda haveriam de rir-se, manuseando as estrelas[11]; já em 1939, após os horrores da 1a Guerra e na iminência da 2a, o mesmo Wells se lamuriava da indiferença da natureza perante o homem, “rapidamente arrastado rumo à degradação, ao sofrimento e à morte”[12].
A reação de um cristão perante a Cruz é completamente oposta: “insultados, abençoamos; perseguidos, suportamos; caluniados, consolamos! Chegamos a ser como que o lixo do mundo, a escória de todos até agora...” (1 Cor 4, 12-13). Venha o que vier, o cristão sabe que a vitória final está garantida: “Quem nos separará do amor de Cristo? A tribulação? A angústia? A perseguição? A fome? A nudez? O perigo? A espada? (...) Estou persuadido de que nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem o presente, nem o futuro, nem as potestades, nem as alturas, nem os abismos, nem outra qualquer criatura nos poderá apartar do amor que Deus nos testemunha em Cristo Jesus, nosso Senhor” (Rm 8, 35.38-39).
“Tu vês a diferença! Agora, escolhe! Escorregarás até um desespero abissal, ou antes, como Cristo na escuridão que encobriu a terra ao meio dia, e como Maria antes que sua Árvore da Vida tivesse deitado raízes na terra, confiarás em Deus, em sua misericórdia e em sua vitória?”[13]
Terminemos esta meditação com um conselho prático: quando recebermos em nossos ombros uma cruz que nos aflija, levemo-la à Santa Missa diária. No momento da consagração, entreguemo-la ao Senhor, repetindo-Lhe o que Ele mesmo nos diz: “Isto é meu corpo! Isto é meu sangue! Toma-os para ti: são teus. Não me importa que os acidentes ou aparências de minha vida permaneçam como estão, com meu trabalho diário e meus deveres rotineiros. Mas aquilo que eu sou substancialmente: toma-o, consagra-o, enobrece-o, espiritualiza-o; muda minha cruz num crucifixo, de modo que eu já não seja meu, mas teu, ó Divino Amor!”

Maria, exemplo de confiança na vitória

Ó fidelíssima Virgem Maria, que guardáveis em vosso coração todos os prodígios de Deus, meditando-os quando vossa alma estava angustiada e buscando sempre em Deus vosso refúgio, rogo-vos me obtenhais a graça de imitar vosso exemplo, estendendo a Ele minhas mãos quando o alento em mim se extinguir, e nEle colocando minha esperança.
Alcançai esta mesma graça a todos os que me são caros nesta vida, para que no Céu se transforme em alegria a tristeza dos que nesta terra choram e se lamentam. Amém.

Rogai por nós, Nossa Senhora do Brasil, para que sejamos dignos das promessas de Cristo.

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8. Catecismo da Igreja Católica, n. 1817.
9. Joseph Ratzinger, Olhar para Cristo.
10. São Josemaria Escrivá, Sulco, n. 52
11. The Discovery of the Future.
12. The Fate of Homo Sapiens.
13. Fulton Sheen, Seven Words of Jesus and Mary.

 Quinto Dia

A BUSCA DE DEUS E DA CRIATURA
Filho, por que agiste assim conosco? Olha, teu pai e eu andávamos, angustiados, à tua procura! (Lc 2, 48)
Tenho sede! (Jo 19, 28)

Neste quinto dia de novena, a Palavra de Jesus e Maria nos propõem o tema da busca recíproca e do desejo ardente entre o Deus Criador e o homem, sua criatura.
Aquele “Tenho sede!” que Nosso Senhor exclamou depois de várias horas de suplício não era uma mera constatação fisiológica de desidratação – pois Ele o fez, como relata S. João, “para que se cumprisse a Escritura” (Jo 19, 28; cf. Sl 69 (68), 22).
Lembremos do episódio da mulher de Sicar (Jo 4): chegando por volta do meio dia a uma fonte situada nos arredores da cidade, Jesus sentou-se, e logo depois chegou uma mulher, à qual pediu: “Dá-me de beber!” (v. 7). Seu verdadeiro propósito, porém, não era obter da mulher um copo d’água – essa foi apenas a deixa para encetar a conversa. Seu objetivo, na verdade, era dar a ela a água viva (v. 10) – água da qual quem beber nunca mais terá sede, porque ela se tornará nele uma fonte que jorra para a vida eterna (v. 14). A mulher, então, acreditou que ele era o Messias, e saiu correndo à cidade para anunciar a grande novidade: e o mesmo Jesus que antes estava com fome e fatigado da viagem (v. 6) agora recusava comida, explicando aos discípulos ter se alimentado de um alimento que eles não conheciam (v. 32). Embora Deus, em sua infinita bondade e grandeza, não precisasse minimamente de sua criatura, Ele como que quis precisar dela: Ele quis ter sede de cada um de nós, e saciar-se quando Lhe damos nosso sim.
Chegam a comover-nos as palavras com que Ele nos fala de sua preocupação conosco: “Assim fala o Senhor, aquele que te criou, Jacó, aquele que te formou, Israel: ‘Não tenhas medo, pois eu te resgatei, chamei-te pelo teu nome, tu és meu! (...) Pois eu sou o Senhor, o teu Deus, o Santo de Israel, o teu Salvador! (...) Porque és precioso aos meus olhos, e foste glorificado, eu te amo!’” (Is 43, 1-4).
Aquele que criou e sustenta no ser todas as galáxias do universo nos ama como um pai carinhoso a uma criancinha manhosa: “Quando Israel era menino, eu já o amava, e desde o Egito chamei meu filho. Quanto mais eu os chamava, tanto mais eles se afastavam de mim; imolavam aos Baals e sacrificavam aos ídolos. Ensinei Efraim a dar os primeiros passos, tomei-o em meus braços, mas eles não reconheceram que eu cuidava deles. Eu os atraía com laços de humanidade, com laços de amor; era para eles como quem leva uma criança ao colo. (...) O meu povo inclina-se a pecar contra mim; é chamado para o alto, mas não faz por elevar-se. (...) Meu coração comove-se no íntimo e arde de compaixão” (Os 11, 1-8). “Vivemos como se o Senhor estivesse lá longe, onde brilham as estrelas, e não consideramos que também está sempre ao nosso lado. E está como um Pai amoroso –quer mais a cada um de nós do que todas as mães do mundo podem querer a seus filhos –, ajudando-nos, inspirando-nos, abençoando... e perdoando”[14].
Se a Palavra de Jesus nos fala do Deus que deseja estar com os homens, a Palavra de Maria reflete a mais perfeita das criaturas buscando seu Criador: “Filho, (...) teu pai e eu andávamos, angustiados, à tua procura!”
A expressão de Maria – Filho! – surpreende por sua espontaneidade – sobretudo se lembrarmos que a reação típica dos patriarcas diante da presença de Deus era o medo: Abraão sentiu terror e caiu de rosto por terra (Gn 15, 12; 17, 3); Jacó ficou cheio de pavor (Gn 28, 17); e Moisés escondeu o rosto, pois temia olhar para Deus (Ex 3, 6). Maria, no entanto, era verdadeira Mãe do Redentor, e por isso podia falar-lhe com simplicidade – e também nós o podemos, nós a quem o Senhor chama amigos (cf. Jo 15, 15): “Perde o medo de chamar o Senhor pelo seu nome – Jesus – e de Lhe dizer que O amas”[15].
Se é este o caso: se Deus, por um lado, deseja ardentemente celebrar conosco a Páscoa eterna, e se por outro lado “o homem tem em si uma sede de infinito, uma saudade de eternidade, uma busca de beleza, um desejo de amor, uma necessidade de luz e de verdade, que o impelem rumo ao Absoluto; o homem tem em si o desejo de Deus” , então o que impede este encontro? Por que nem sempre estamos próximos de Deus?[16]
A verdade é que nosso pecado nos afasta dEle, nos leva a escondermo-nos, como Adão e Eva, por entre as árvores do jardim (Gn 3, 8) – mas mesmo quando pecamos, Deus não fica longe de nós. Basta um olhar de nossa parte, um gesto que busque o perdão, e ele nos estende os braços, pronto a nos acolher. Que graça seria aproveitarmos da novena para fazer uma boa Confissão, para mais uma vez nos reconciliarmos radicalmente com Deus!

Maria, exemplo de busca de Deus

Ó amorosíssima Virgem Maria, que por toda a vida buscastes o Senhor através do cumprimento perfeito de Sua vontade, obtende-me a graça de amar a Deus acima de todas as Suas criaturas, e acima de minha própria vida, para que meu coração inquieto encontra nEle seu repouso. Alcançai também a todos os que têm fome e sede de santidade que, alcançando aquele que é Santo, sejam saciados. Amém.

Rogai por nós, Nossa Senhora do Brasil, para que sejamos dignos das promessas de Cristo.

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14. São Josemaria Escrivá, Caminho, n. 267.
15. São Josemaria Escrivá, Caminho, n. 303.
16. Bento XVI, Audiência Geral, 11/05/2011.

 Sexto Dia

A HORA
Eles não têm vinho! (Jo 2, 3)
Está consumado (Jo 19, 30)

Depois que tomou o vinagre, Jesus disse: “Está consumado”. Não se tratava de uma mera declaração de alívio, como se dissesse “até que enfim acabou” – antes, Cristo declarava consumado ou levado à perfeição o grande plano divino de salvação. As Escrituras nos falam de três grandes momentos de completude: no início da criação, quando “no sétimo dia, Deus concluiu toda a obra que fizera” (Gn 2, 2); e no fim dos tempos, quando Aquele que está sentado no trono dirá, com grande voz, “Está feito! Eu sou o Alfa e o Ômega, o Princípio e o Fim.” (Ap 21, 5-6). Entre a consumação da Criação e a consumação do Juízo Final, Cristo proclama, do alto do madeiro, a consumação da Redenção: sua vida e morte abriam-nos as portas do Céu, e davam o sentido de toda a história do universo.
Esta Palavra de encerramento da vida pública de Nosso Senhor deve ter trazido à memória de Nossa Mãe Santíssima o “início dos sinais que Jesus fez, em Caná da Galileia” (Jo 2, 11). Como na Cruz, também ali havia vinho – porém em quantidade insuficiente para os convidados do casamento, e foi Maria, em sua caridosa solicitude, a primeira a percebê-lo.
Ela pediu então socorro a seu Filho, com uma simples oração: “Eles não têm vinho!”. Maria sabia perfeitamente o que pedia: se Jesus fizesse ali o milagre diante de tantas testemunhas, sua vida de carpinteiro desconhecido chegaria ao fim, e entraria em marcha uma complexa cadeia de acontecimentos e circunstâncias que culminariam com a sua Paixão. E se Ele não mais seria o carpinteiro, Maria tampouco continuaria sendo a mãe do carpinteiro – ela teria de assumir um novo papel, como Mãe do Redentor e de todos os por Ele redimidos. É isso que significa a resposta que Ele lhe deu: “Ó mulher, o que há entre mim e ti?”.
Jesus não a chama “minha mãe”, mas “mulher” – a Mulher por excelência, aquela que é chamada a ser mãe de todos os homens, a nova Eva, destinada a pisar na cabeça da serpente (Gn 3, 15). No mesmo ato, deixa entrever que virão trevas em seu caminho: “A minha hora ainda não chegou”.
Sempre que Nosso Senhor falava em sua Hora, ele se referia à Paixão. Quando, na festa das Tendas, repreende os judeus por sua incredulidade, estes procuravam prendê-lo, mas ninguém lhe pôs as mãos, pois ainda não tinha chegado a sua hora (Jo 7, 30). Na última ceia, ao final de seu longo discurso de despedida aos apóstolos, Ele levantou os olhos ao céu e disse: “Pai, chegou a hora. Glorifica o teu filho, para que teu filho te glorifique” (Jo 17, 1). Quando, enfim, foi preso no Getsêmani, repreende os guardas: “Todos os dias eu estava convosco no templo, e nunca levantastes a mão contra mim, mas esta é a vossa hora e o poder das trevas” (Lc 22, 53).
A Hora teve início em Caná, com a Sexta Palavra de Nossa Senhora, e concluiu-se no Calvário, com a Sexta Palavra de Nosso Senhor: entre estes dois marcos, as fadigas, as perseguições – em suma, as cruzes, e a Cruz.
Para nós fica a lição de que qualquer boa obra que começarmos nos reserva a sua “Hora”, a Cruz que devemos abraçar antes da perfeição. A este respeito, Jesus foi bastante explícito: “Se alguém quer vir após mim, negue-se a si mesmo, tome cada dia a sua cruz e siga-me; pois quem quiser salvar sua vida, este a perderá; mas quem perder sua vida por causa de mim, este a salvará” (Lc 9, 23-24). E aos gregos que lhe propunham tornar-se professor em Atenas, Ele respondeu: “Em verdade, em verdade vos digo: se o grão de trigo que cai na terra não morre, fica só; mas, se morre, produz muito fruto” (Jo 12, 24).
A nossa dificuldade, no caminho de vida cristã, é que tantas vezes voltamos a encarar a Cruz como um obstáculo ao nosso bem – buscamos ser santos apesar da Cruz, ser felizes apesar da Cruz, ser bons apesar da Cruz. Mas é justamente o contrário: como dizia Santa Rosa de Lima, “Fora da Cruz não existe outra escada por onde subir ao céu!” Lembremos daquele tão belo hino inglês, que se diz ter sido tocado no naufrágio do Titanic: Nearer, my God, to Thee, E’en though it be a cross that raiseth me! – “Mais próximo a Ti, meu Deus, quero estar, posto que seja uma Cruz a me alçar!”
O que são os sofrimentos desta vida, no fundo, senão situações em que somos privados de bens intermediários: saúde, confortos, prazeres, boa fama... Pois bem, nenhum desses bens se compara com o único bem último, a amizade de Deus – e perder aqueles pode muito bem nos ajudar a mantermos o foco nesta. Sob esta lógica é que um cristão pode dizer, sem ser masoquista: “Bendita seja a dor. Amada seja a dor. Santificada seja a dor... Glorificada seja a dor!”[17]

Maria, exemplo de perseverança na cruz

Ó firmíssima Virgem Maria, que em toda a vossa vida soubestes haurir amor de vosso coração transpassado pela espada, permanecendo de pé até o final, junto à Cruz, alcançai-me a graça de lançar a cada dia, ainda que entre lágrimas, as sementes do Reino, para que possa ceifá-las com alegria no Céu.
Amparai todos os que são visitados pelo sofrimento: não para que sejam privados de toda dor, mas para saibam convertê-la em amor a Deus. Amém.

Rogai por nós, Nossa Senhora do Brasil, para que sejamos dignos das promessas de Cristo.

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17. São Josemaria Escrivá, Caminho, n. 208.

 Sétimo Dia

O SENTIDO DA VIDA
Fazei tudo o que ele vos disser! (Jo 2, 5)
Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito. (Lc 23, 46)

A questão do sentido da vida humana é, no fundo, a questão do significado de nossa liberdade. O que, afinal, faz de alguém uma pessoa livre? Que é a liberdade?
Os homens de hoje costumam conceber a liberdade como a “licença de fazer seja o que for, (...) contanto que agrade”[18]. Em o fazendo, julgam-se “críticos” e avant-garde – e no entanto nada mais fazem que ecoar o hedonismo ensaiado a cada época por seu bufão. No paganismo erudito da Antiguidade, Catulo metrificava em hendecassílabos “Vivamos, ó minha Lésbia, e amemos!”[19]; no paganismo pomposo do Renascimento, a Violetta de Verdi solfejava que “Tudo no mundo é loucura, a não ser o prazer!”[20]; no paganismo bestializante da Modernidade, rebola-se ao martelar de um “Não se reprima, não se reprima, não se reprima”.
Acontece, porém, que a real liberdade, ao contrário do que pensam tantos de nossos contemporâneos, não está no poder de escolher o mal: pelo contrário, nós cristãos anunciamos ao mundo que a “liberdade verdadeira” é aquela pela qual o homem, “libertando-se da escravidão das paixões”, torna-se capaz de alcançar o bem[21]. Se um virtuose de renome consegue tocar Bach ou Beethoven sem deixar transparecer esforço, isto só é assim por causa das dezenas de milhares de horas de árduo trabalho, pautado por rigorosa disciplina. Não fossem as leis da teoria musical e as regras do estudo técnico, não poderíamos desfrutar de seu concerto.
Poderíamos resumir dizendo que o sentido último da vida de todo ser humano é a felicidade, e que a felicidade é a experiência de conseguir alcançar o verdadeiro bem, através de um condicionamento interior (chamado liberdade) que torne a natureza racional do homem capaz de prevalecer sobre seus instintos e apetites animais.
O mais excelso bem que alguém jamais poderia alcançar, no entanto, é o próprio Senhor que é fonte da própria bondade, Pai incriado, do qual procedem todas as coisas boas[22] – e por isso a mais perfeita liberdade consiste em abandonar-se inteiramente nas mãos de Deus. Por detrás de todas as vicissitudes e percalços da história, e por sobre as ações livres de suas criaturas, é Deus em sua Providência quem “cuida de tudo, desde os mais insignificantes pormenores até aos grandes acontecimentos do mundo e da história”[23].
É esta entrega, este abandonar-se todo inteiro nas mãos de Deus que se reflete na Sétima Palavra de Nosso Senhor e de sua Mãe. Jesus, ao deitar seu espírito no Calvário, entregou-Se a Si próprio ao Pai, e Maria, ao sair de cena em Caná, nos pediu que nos entreguemos a nós mesmos ao Filho.
Nosso Senhor passou toda a sua vida terrestre ocupando-se da vontade de seu Pai “eu devo estar naquilo que é de meu Pai” (Lc 2, 49); “eu sempre faço o que é do seu agrado” (Jo 8, 29); “Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito” (Lc 23, 46). Também Nossa Senhora, nas últimas palavras suas registradas na Escritura, exortou-nos ao pleno abandono: “Fazei tudo o que ele vos disser!” (Jo 2, 5).
Se no Getsemâni a oração de Jesus tivesse sido apenas “Meu Pai, passe de mim este cálice”, ela teria sido uma autoafirmação da própria vontade, por cima e contra a vontade de Deus. Mas Nosso Senhor rezou: “não seja como eu quero, mas como tu queres”. Oxalá possamos nós também – ainda que em meio a dores, ainda que pesarosos, ainda que sem entender muito bem os motivos – dizer sempre um confiante Amén à vontade do Pai.

Maria, exemplo de entrega à vontade do Pai

Ó fidelíssima Virgem Maria, que repetistes o mesmo Fiat que destes na Anunciação também na rejeição de Belém, na fuga ao Egito, na simplicidade de Nazaré, na dor do Calvário e em cada pequena circunstância de vossa vida, obtende-me a graça de pedir com sinceridade ao Pai que seja feita a Sua vontade, não a minha.
Ajudai os que padecem sofrimentos a entender que todos os males cooperam para o bem dos que amam a Deus. Amém.

Rogai por nós, Nossa Senhora do Brasil, para que sejamos dignos das promessas de Cristo.

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18. Vaticano II, Gaudium et Spes, n. 17.
19. Vivamus, mea Lesbia, atque amemus (Ode n. 5).
20. Tutto è follia, follia nel mondo, ciò che non è piacer (dueto “Libiamo ne' lieti calici”)
21. Vaticano II, Gaudium et Spes, n. 17.
22. De um belo hino penitencial chamado Kyrie fons bonitatis.
23. Catecismo da Igreja Católica, n. 303.

 Oitavo Dia

MARIA, CORREDENTORA E MEDIANEIRA DE TODAS AS GRAÇAS
“Foi pela Santíssima Virgem Maria que Jesus Cristo veio ao mundo, e é também por Ela que deve reinar no mundo” – São Luís Maria Grignion de Montfort
“Não há fruto da graça na história da salvação que não tenha como instrumento necessário a mediação de Nossa Senhora” – Bento XVI

Para entendermos a invocação de Maria como corredentora, precisamos refletir sobre o que é a Redenção realizada por Nosso Senhor Jesus Cristo. O termo “redenção” vem do latim redemptio, que significa comprar de volta um objeto, ou, quando aplicado aos seres humanos, resgatar um escravo.
Recordemos, então, que pelo pecado de nossos primeiros pais (Gn 3) o homem ultrajara a honra divina, cuja gravidade é infinita dada a infinitude do ofendido, que é o próprio Deus. Dessa maneira, para que a ordem da justiça fosse reestabelecida, era necessária uma reparação proporcional à magnitude dessa culpa – coisa que somente seria alcançável por alguém de dignidade divina.
É precisamente isso que fez Nosso Senhor, pois nos libertou da escravidão do pecado, da ignorância e da concupiscência ao preço de seu divino Sangue, “do qual uma só gota já bastaria a salvar o mundo de todos os crimes”[24]. São Pedro recorda aos primeiros cristãos “que não é por bens perecíveis, como a prata e o ouro, que fostes resgatados (...), mas pelo precioso sangue de Cristo” (1Pe 1, 18).
De acordo com a fé da Igreja, portanto, somente há um Redentor e “mediador entre Deus e os homens, o homem Jesus Cristo” (1Tm 2, 5-6) – todavia, “assim como a bondade de Deus, sendo uma só, se difunde de modos diversos pelos seres criados, assim também a única mediação do Redentor não exclui, antes suscita nas criaturas cooperações diversas, que participam dessa única fonte”[25]. Maria, é verdade, não é Deus – mas desde toda a eternidade foi destinada a ser Mãe de Deus: e por isso a redenção do gênero humano ocorreu com sua direta colaboração, já que a humanidade de Cristo foi gerada por Ela, na Encarnação.
E Maria não “somente” gerou Cristo no seu ventre: é ela quem O gera para sempre nas almas, pois com aquele “Eis a tua mãe” (Jo 19, 27) Jesus confiou todos os cristãos à sua custódia materna. Assim, Deus escolheu, porque quis e não porque precisasse, que a Virgem Santíssima tivesse um influxo salvador sobre os homens[26].
Além desse privilégio divino, o episódio da perda e encontro do Menino Jesus no Templo (5° mistério gozoso do rosário) indica que Jesus quis humilhar-se a ponto de fazer-se súdito de Maria, como atesta o Evangelho de São Lucas: “Jesus desceu, então, com seus pais para Nazaré e era-lhes submisso” (Lc 2, 51).
A consequência disso é que as preces de Maria são poderosíssimas, pois sua maternidade divina continua no Céu. Santo Afonso Maria de Ligório afirma que “Jesus quer honrar esta sua querida mãe que tanto honrou em vida, concedendo-lhe imediatamente o que quer que peça e deseje”, e Santo Agostinho, em sentido semelhante, que “por haver merecido dar a carne ao Verbo Divino, e com ela preparar o preço da Redenção a fim de que fôssemos livrados da morte eterna, Maria é mais poderosa que todos os santos em ajudar-nos a conquistar a salvação eterna”. Esta mesma ideia ecoa naquela piedosa tradição popular segundo a qual mais vale junto a Deus um suspiro de Maria que as súplicas de todos os santos reunidos.
Que grande atalho no caminho da salvação e da santidade é a poderosa intercessão de Nossa Senhora! Podemos fomentar nossa devoção a ela, dentre outros meios, através dos belíssimos cantos marianas que recebemos de nossa herança católica: Salve Regina, Sub tuum praesidium, Memorare, Ave Regina Coelorum, Ave Maris Stella, Omni die dic Mariae...

Maria, advogada Nossa

Ó Mãe de misericórdia, nós vos oferecemos as nossas almas, outrora belas e lavadas com o sangue de Jesus Cristo, mas posteriormente poluídas pelo pecado. A vós oferecemo-las, cuidai de purificá-las. Obtende-nos uma verdadeira correção, obtende-nos o amor a Deus, a perseverança, o paraíso. Pedimos-vos coisas grandes, mas por acaso vós não podeis obter-nos tudo? Serão demais, por acaso, ao amor que Deus vos tem? Basta-vos abrir a boca e rogar ao vosso Filho; ele nada vos negará. Rogai, portanto, rogai, ó Maria, por nós; rogai, que certamente sereis atendida, e nós seguramente seremos salvos.

Rogai por nós, Nossa Senhora do Brasil, para que sejamos dignos das promessas de Cristo.

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24. Santo Tomás de Aquino, Adoro te devote.
25. Vaticano II, Lumen Gentium, n. 62
26. Vaticano II, Lumen Gentium, n. 60.

 Nono Dia

MARIA, MÃE DA IGREJA
“Jesus, ao ver sua mãe e, ao lado dela, o discípulo a quem amava, disse à mãe: ‘Mulher, eis o teu filho!’ Depois disse ao discípulo: “Eis a tua mãe!’ A partir daquela hora, o discípulo a acolheu em sua casa.” (Jo 19, 26-27)
“Como me acontece que a mãe do meu Senhor venha a mim? Logo que ressoou aos meus ouvidos a tua saudação, a criança pulou de alegria no meu ventre.” (Lc 1, 43-44)

Chegados já ao último dia de nossa novena, meditamos acerca da maternidade universal de Nossa Senhora – tema intimamente ligado ao da corredenção, e fundamental para entendermos por que as graças concedidas por Deus à Virgem Maria são infinitamente maiores que as concedidas a todos os outros santos reunidos.
“Mãe da Igreja” não é apenas um título para enobrecê-La: verdadeiramente existe uma maternidade ativa que nos faz sermos seus filhos na ordem da graça. Nós, católicos, cremos que a Igreja é a continuação na história do corpo místico de Cristo, do qual Jesus é a cabeça e os demais integrantes são os membros. Não faz sentido que Maria, tendo gerado a cabeça do corpo, não fosse mãe também das partes restantes, pois, como lembra São Luís Maria Grignion de Montfort, seria uma anormalidade, uma monstruosidade, que uma mulher desse à luz a cabeça de uma criança, mas não o resto do corpo.
Por isso, a Igreja ensina que “de modo inteiramente singular, pela obediência, fé, esperança e ardente caridade, ela cooperou na obra do Salvador para uma restauração da vida sobrenatural das almas. Por este motivo ela se tornou para nós mãe na ordem da graça”[27]. Esta maternidade na graça se evidencia de forma especial quando se medita os mistérios do Santíssimo Rosário.
Na Anunciação (primeiro mistério gozoso), o anjo Gabriel informa que Maria dará à luz o Filho do Altíssimo, com o que Deus, por meio Dela, ligou-se à nossa carne e nunca mais a deixou. Como nos recordou o Papa Francisco na Solenidade de Maria Santíssima Mãe de Deus de 2021, “Não estamos no mundo para morrer, mas para gerar a vida. E a santa Mãe de Deus ensina-nos que o primeiro passo para dar vida àquilo que nos rodeia é amá-lo dentro de nós”. Tão logo o anjo saiu de sua presença, Nossa Senhora, num ato de ardente caridade, saiu apressadamente para ajudar Santa Isabel (segundo mistério gozoso), demonstrando que para levar Cristo aos outros, é fundamental antes amá-lo profundamente dentro de nós.
Não obstante, é na meditação do quinto mistério doloroso, a morte de Nosso Senhor na Cruz, que se consuma a maternidade universal da Virgem Maria, no momento em que, pouco antes de entregar o espírito, Nosso Senhor diz “Mulher, eis o teu filho”. Como recordamos no terceiro dia de nossa novena, Maria passava a ser mãe na fé de todos os discípulos de seu Filho, pois caso fosse somente àquele discípulo específico, seria mais intuitivo ter dito “Mãe, eis aí João!”.
Dessa maneira, é na paixão que verdadeiramente ocorre a maternidade, já que ao mesmo tempo em que é entregue o Corpo de Cristo e derramado seu Sangue, forma-se a Igreja. Embora a união da Virgem com seu Filho se expresse desde a concepção virginal, é na Paixão em que é particularmente manifestada, com a entrega recíproca de sua mãe à humanidade e da humanidade para Maria.
Tal entrega mútua está intimamente relacionada ao dogma da Assunção, pois assunta em corpo e alma à glória celeste, não deixa jamais de interceder por seus filhos que permanecem na terra – antes, está no Céu ainda mais unida ao seu Filho, exercendo o múnus de Rainha Santíssima, comandando os exércitos celestes contra Satanás e as milícias que vagam pelo mundo para perder as almas.
Sejamos gratos por esse poderosíssimo atalho ao Céu que é a Virgem Maria e não nos esqueçamos, como diz Santo Afonso Maria de Ligório, que: “Maria, gerando Jesus, que é o nosso Salvador e nossa vida, gerou todos nós à salvação e à vida”. Portanto, amar Maria é demonstrar amor ao próprio Deus, constituindo, assim, a devoção mariana um caminho infalível à salvação, pois Nosso Senhor Jesus Cristo, como um bom Filho, não negará os pedidos de sua Mãe Misericordiosa.

Maria, Nossa mãe

Ó minha Mãe santíssima, como é possível que, tendo uma mãe tão santa, haja eu de ser tão iníquo? Ou tendo uma mãe que arde toda de amor por Deus, haja eu de amar as criaturas? Ou tendo uma mãe tão rica em virtudes, haja eu de ser tão pobre? Ah, minha mãe amabilíssima, é verdade, eu não mereço mais ser vosso filho porque me hei tornado demasiado indigno com minha vida má. Contento-me que me aceiteis por vosso servo; e para ser admitido entre os servos mais vis que tendes, estou disposto a renunciar a todos os reinos da terra. Sim, contento-me, mas mesmo assim não me proibais que vos chame minha mãe.
Vós, depois de Deus, haveis de ser sempre a minha esperança, o meu refúgio e meu amor neste vale de lágrimas. Assim espero morrer, confiando naquele último momento a minha alma às vossas santas mãos, e dizendo: Mãe minha, Maria, ajudai-me, tende piedade de mim. Amém.

Rogai por nós, Nossa Senhora do Brasil, para que sejamos dignos das promessas de Cristo.

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27. Vaticano II, Lumen Gentium, n. 61.