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O homem hidrópico e o cristão ambicioso

Ecce homo quidam hydropicus erat ante illum – “Eis que diante dele estava um hidrópico” (Lc 7, 12)

Sumário. O hidrópico, de quem fala o Evangelho, é figura de um cristão que se deixa dominar por uma paixão qualquer e particularmente pelo desejo das honras. Com efeito, o soberbo nunca acha a paz, porque nunca se vê tratado conforme o vão conceito que faz de si mesmo. Se por desgraça nos achamos infectados desta hidropisia espiritual, representemo-nos Nosso Senhor, e contemplemo-Lo reduzido como foi por nosso amor a ser o último dos homens; e envergonhados da nossa ambição, digamos-lhe: Ó Jesus manso e humilde de Coração, fazei o meu coração semelhante ao vosso.

I. Refere São Lucas que “entrando Jesus num Sábado em casa de um dos principais fariseus, a tomar a sua refeição, eles O estavam ali observando. E eis que diante d’Ele estava um homem hidrópico. E Jesus dirigindo-se aos doutores da lei e aos fariseus, disse-lhes: É permitido fazer cura aos Sábados? Mas eles ficaram calados. Então Jesus, tomando a si o homem, o curou e o mandou embora – Sanavit eum, ac dimisit.”

Sob a figura daquele pobre hidrópico, os santos intérpretes veem a imagem do homem que se deixa dominar por uma paixão qualquer e particularmente pelo orgulho e pelo desejo imoderado das honras e das grandezas. E com razão; pois, assim como o doente de hidropisia é devorado por tamanha sede, que, quanto mais bebe, tanto mais fica assedentado; assim o soberbo nunca tem paz, porque nunca chega a ver-se tratado conforme o vão conceito que forma de si próprio. Até entre as mesmas honras não está contente, porque sempre tem os olhos fitos nos que são mais honrados. – Sempre faltará ao orgulhoso ao menos alguma honra ambicionada, e esta falta atormentá-lo-á mais do que o consolam todas as outras dignidades obtidas. Quanto não era honrado Aman no palácio de Assuero, assentando-se até à mesa do rei! Mas porque Mardocheo não o quis saudar, disse que se julgava infeliz (1).

Meu irmão, examina a tua consciência, e, se achares que, no passado, também tu andaste atrás do vapor das honras vãs, para remédio desta tua enfermidade espiritual, imita o hidrópico do Evangelho e põe-te logo na presença do Senhor. Contempla como Jesus, posto que fosse o filho de Deus, por teu amor se aniquilou, tomando a forma de servo (2), quis por teu amor fazer-se o último dos homens, o mais desprezado e ultrajado (3). E envergonhado da tua ambição, dize-Lhe com amor: † Ó Jesus, manso e humilde de Coração, fazei o meu coração semelhante ao vosso.

II. Escreve São Jerônimo que a glória verdadeira é semelhante à sombra, que segue a quem dela foge, e foge de quem a quer prender: Appetitores suos deserens, appetit contemptores. É isto exatamente o que Jesus Cristo quis ensinar no Evangelho de hoje, quando, depois de curar o hidrópico, e observando que os fariseus escolhiam os primeiros lugares à mesa, lhes disse esta parábola: “Quando fores convidado a algumas bodas, não te assentes no primeiro lugar;… mais vai tomar o último lugar; para que, quando vier o que te convidou, te diga: Amigo, sobe para cima. Então te servirá isto de glória na presença de todos os convidados: porque todo o que se exalta será humilhado, e todo o que se humilha será exaltado – Omnis qui se exaltat humiliabitur, et qui se humiliat exaltabitur.”

Humílimo Jesus, como é que em mim há tanto orgulho depois de tantos pecados? Vejo que as minhas faltas, sobre me fazerem tão ingrato para convosco, fizeram-me ainda orgulhoso. Ne proicias me a facie tua (4) – “Não me rejeiteis de diante de vossa presença, conforme merecia”. Tende piedade de mim e fazei-me conhecer o que sou e o que mereço. Em vez de obter honras e dignidades, mereceria estar no inferno, onde já estão ardendo tantos outros por menos pecados do que foram os meus. Vós, porém, ó meu Jesus, me ofereceis o perdão, se eu o desejo. Sim, desejo-o. Meu Redentor, perdoai-me, já que de todo o coração detesto as minhas ambições e orgulho, que não somente me fizeram desprezar o próximo, mas também a Vós, meu soberano Bem.

Dir-vos-ei com Santa Catarina de Gênova: Meu Deus, nada mais de pecado, nada mais de pecado! Já basta de ofensas, não quero mais abusar de vossa paciência. De hoje em diante quero amar-Vos de todo coração e, para Vos agradar, quero abraçar com humildade todos os desprezos que me sejam feitos. Já prevejo que o inferno aumentará tanto mais tentações, quanto mais me vir desejoso de ser todo vosso. Vós, porém, meu Senhor, ajudai-me a ser-Vos fiel. “Fazei com que a vossa graça me previna sempre, me acompanhe e me afervore na continua prática das boas obras.”

† Doce Coração de Maria, sede minha salvação.

Referências:

(1) Est 5, 13
(2) Fl 2, 7
(3) Is 53, 3
(4) Sl 50, 13

Meditação para a Tarde do mesmo dia

O homem e o vício da impureza

Sumário. O hidrópico de que fala o Evangelho é figura do libidinoso, por duas razões. Primeiro, assim como o hidrópico, quanto mais bebe, mais sede tem, assim o desonesto nunca se sacia de pecar. Segundo, porque a impureza, por causa da cegueira de espírito e do endurecimento da vontade que acarreta, é tão incurável como a hidropisia. Infeliz do que se deixa dominar por este vício! Todavia não desespere, visto que para Deus nada é impossível.

I. Todos os enfermos cuja cura milagrosa por Jesus Cristo os evangelistas referem, representam algum mistério. Assim bem se pode dizer que o hidrópico de que fala São Lucas no Evangelho de hoje é uma figura do homem libidinoso. Sim, diz Santo Tomás de Vilanova, porque assim como o hidrópico, quanto mais bebe, mais a sede se lhe aumenta, assim o escravo do maldito vício da desonestidade jamais se sacia de pecar. – Se, pois, de todos os pecados já se pode dizer que, uma vez entrados na alma, nunca ficam muito tempo a sós, isto é muito mais aplicável ao pecado da impureza.

Um blasfemo não blasfema sempre, mas somente quando se encoleriza. Um ladrão não rouba todos os dias, mas somente quando se lhe oferece a ocasião. Mas o desonesto é uma torrente contínua de pecados, de pensamentos, de palavras, de vistas, de deleitações, de maneira que, quando se vai confessar, não pode explicar o número de pecados que cometeu. – Numa palavra, São Cipriano escreve que por este vício o demônio triunfa de todo o homem: do corpo, da alma e de todas as faculdades – Totum hominem agit in triumphum libidinis. A razão disto é porque nesta espécie de pecado é tão fácil tomar um mau hábito, que leva a pecar a natureza já corrompida.

Demais, o pecado desonesto arrasta as mais das vezes a outros crimes; tais como a difamação, o furto, a mentira, o ódio, a ostentação do mesmo vício e especialmente o escândalo, excitando e arrastando os outros a cometê-lo ou ao menos a cometê-lo com menos horror. Ó céus! Que mar imenso de pecados! Se um só pecado mortal é suficiente para condenar o homem ao inferno, qual será o inferno do desonesto que comete e faz cometer tão grande número de pecados?

II. Ainda sob outro ponto de vista a hidropisia é figura da impureza. Porque acarretando esta mais do que qualquer outro vício a cegueira do espírito e a obstinação da vontade, segue-se que é tão difícil a conversão de um desonesto, como é difícil a cura de um hidrópico. – fornicatio, et vinum, et ebrietas auferunt cor – “A desonestidade, o vinho e a embriaguez tiram os bons sentimentos”, diz o Senhor pela boca do profeta Oséas (1). Quer dizer que este vício, à semelhança do vinho, faz perder a razão.

Por isso o mesmo profeta afirma com razão que aos obscenos nem sequer se lhes ocorre a ideia de se converterem para Deus (2), ou, se porventura lhes ocorre, com malícia diabólica se obstinam a volver-se, quais animais imundos, no lodo da impureza. – São Jerônimo chega a dizer que, quando o vício desonesto chegou a ser habitual em alguma pessoa, de ordinário somente termina quando o desgraçado é lançado no inferno para arder no fogo: O ignis infernalis luxuria… cuius finis gehenna!

Meu irmão, lança um olhar em tua consciência, e se, como espero, a achas pura, rende graças a Deus, e fica humilde; porque o Senhor muitas vezes castiga os orgulhosos, permitindo que caiam em algum pecado impuro. – se, porventura, te achasses réu de pecados, não desesperes, pois que para Deus nada é difícil. É, porém, necessário que, resolvido a curar-te dos teus males, imites o hidrópico do Evangelho, pondo-te diante de Jesus Cristo, na pessoa do padre, seu ministro.

Faze, portanto, uma boa confissão geral de todos os teus pecados e emprega os meios que o confessor te prescrever. Sobretudo deves rogar ao Senhor que “a sua graça te previna sempre, te acompanhe, e te afervore na contínua prática das boas obras” (3). Invoca também a Virgem Santíssima, que é a Mãe da pureza e dize-lhe com confiança: † “Ó Virgem Mãe, que nunca fostes manchada por pecado algum, nem atual, nem original, recomendo-vos e confio-vos a pureza do meu coração.” (4)
Referências:

(1) Os 4, 11
(2) Os 5, 4
(3) Or. Dom. curr.
(4) Indulgência de 100 dias.