Todos os terços e novenas

Compartilhar:


  Apresentação

Está disponível aqui a grande obra de São Luís Maria Grignion de Montfort, o “Tratado da Verdadeira Devoção a Nossa Senhora”, agora apresentada em uma linguagem mais simples e acessível, sem perder nada do conteúdo original. O texto tradicional pode ser difícil para muitos leitores por causa do português antigo e das expressões em latim. Por isso, nosso objetivo foi torná-lo mais claro e permitir que mais pessoas conheçam, pratiquem e vivam essa devoção.

Como usar

O livro está dividido em capítulos, cada um com seus artigos correspondentes. Basta tocar no botão “Índice”, localizado na barra superior do app, para navegar facilmente até a parte desejada.

Note que indicamos os parágrafos entre parêntesis para ajudar a localizar algum texto em especial.

Quem deseja fazer a consagração precisa ler o “Tratado da Verdadeira Devoção a Nossa Senhora” e realizar a preparação de 30 dias, conforme os ensinamentos de São Luís.

Para essa preparação, você pode utilizar o Guia de Consagração disponível na área “Consagração” dentro do Pocket Terço.

Boa leitura,
Equipe Pocket Terço
1ª parte

  Introdução (1-13)

1. Jesus Cristo veio ao mundo através da Virgem Maria, e Ele também quer reinar no mundo por meio dela.

2. Maria viveu toda a sua vida de maneira escondida. Por isso, o Espírito Santo e a Igreja a chamam de Alma Mater – Mãe escondida e secreta[1]. Sua humildade era tão grande que ela queria se esconder de si mesma e de todos, para ser conhecida somente de Deus.

3. Para atender aos pedidos de Maria para ser escondida, empobrecida e humilhada, Deus fez com que ela ficasse oculta em seu nascimento, em sua vida, em seus mistérios, em sua ressurreição e assunção, passando quase despercebida para a maioria das pessoas. Até seus parentes não a conheciam bem. E os anjos muitas vezes perguntavam uns aos outros: 'Quem é esta?' (Ct 3,6; 8,5), porque Deus a mantinha escondida. E mesmo quando revelava algo sobre ela, muito mais ainda ficava oculto.

4. Deus Pai permitiu que Maria nunca realizasse nenhum milagre visível e impressionante durante sua vida, apesar de ter dado a ela o poder de fazê-los. Deus Filho permitiu que ela não falasse em público, mesmo tendo dado a ela a sabedoria divina. Deus Espírito Santo permitiu que os apóstolos e evangelistas quase não falassem dela, mencionando-a apenas quando fosse necessário para revelar Jesus Cristo. E, mesmo assim, ela era a Esposa do Espírito Santo.

5. Maria é a obra-prima por excelência do Altíssimo, que Ele reservou para si em conhecimento[2] e poder. Ela é a Mãe admirável de Jesus, que quis humilhá-la e escondê-la durante sua vida para aumentar sua humildade, tratando-a de mulher (Jo 2,4; 19,26), como se fosse uma estrangeira, apesar de amá-la e valorizá-la mais que todos os anjos e homens em seu Coração. Maria é a fonte selada (Ct 4,12) e a esposa fiel do Espírito Santo, onde só Ele pode entrar. Ela é o santuário e o repouso da Santíssima Trindade, onde Deus habita de forma mais grandiosa e divina do que em qualquer outro lugar do universo, incluindo seu trono sobre os querubins e serafins. Nenhuma criatura, por mais pura que seja, pode entrar ali sem um grande privilégio.

6. Digo com os santos: a Santíssima Virgem Maria é o paraíso terrestre[3] do novo Adão, onde Ele se encarnou por obra do Espírito Santo para realizar maravilhas incompreensíveis. Ela é o grande e divino mundo de Deus[4], onde existem belezas e tesouros indescritíveis. Maria é a grandeza de Deus[5], em cujo seio Ele escondeu seu Filho único, junto com tudo o que há de mais excelente e precioso. Oh! Que grandes e misteriosas coisas o Deus todo-poderoso fez nessa criatura admirável. Ela mesma disse, mesmo com sua profunda humildade: "O Poderoso fez em mim grandes coisas" (Lc 1,49). O mundo não conhece essas coisas porque não é capaz e não é digno.

7. Os santos disseram coisas maravilhosas sobre essa cidade santa de Deus, e nunca foram tão inspirados nem tão felizes como quando falaram ou escreveram sobre ela. Eles mesmos reconhecem que é impossível entender a grandeza de seus méritos, que chegaram até o trono de Deus; que a extensão de sua caridade, maior que a terra, não pode ser medida; que a força do poder que ela tem sobre o próprio Deus está além de qualquer compreensão; e, por fim, que a profundidade de sua humildade, de suas virtudes e graças é um abismo impossível de sondar. Ó grandeza incompreensível! Ó largura imensa! Ó poder imensurável! Ó abismo insondável!

8. Todos os dias, de um canto ao outro da terra, no mais alto dos céus, no mais profundo dos abismos, tudo proclama, tudo exalta a incomparável Maria. Os nove coros de anjos, os homens de todas as idades, condições e religiões, tanto os bons quanto os maus, e até os demônios, de bom ou mau grado, pela força da verdade, são obrigados a reconhecê-la como bem-aventurada. No céu, como diz São Boaventura, ressoa constantemente o louvor dos anjos: Santa, Santa, Santa Maria, Mãe de Deus e Virgem. Milhões e milhões de vezes, todos os dias, eles lhe dirigem a saudação angélica: Ave, Maria..., inclinando-se diante dela e pedindo a graça de serem honrados com suas ordens. E à frente de todos está São Miguel, o príncipe da corte celeste, que é o mais dedicado a render-lhe homenagens e sempre atento para, ao seu comando, poder servir a algum de seus devotos.

9. Toda a terra está cheia de sua glória, particularmente entre os cristãos, que a consideram padroeira e protetora em muitos países, províncias, dioceses e cidades. Inúmeras catedrais são dedicadas em seu nome. Em todas as igrejas há um altar em sua honra, e não há região ou país que não tenha alguma de suas imagens milagrosas, onde todos os males são curados e todas as bênçãos são recebidas. Quantas confrarias e congregações foram criadas em sua honra! Quantos institutos e ordens religiosas estão sob seu nome e proteção! Quantos irmãos e irmãs dessas confrarias, e quantos religiosos e religiosas cantam seus louvores e anunciam suas maravilhas! Não há criança que, ao aprender a Ave-Maria, não esteja louvando-a; até os pecadores mais endurecidos guardam uma pequena de confiança em Maria. E até os demônios no inferno a respeitam, mesmo com medo.

10. Depois de tudo isso, é preciso dizer, com os santos: Ainda não se louvou, exaltou, honrou, amou e serviu a Maria o suficiente, porque ela merece muito mais louvor, respeito, amor e serviço.

11. Também é preciso dizer, com o Espírito Santo: Toda a glória da Filha do Rei está no interior (Sl 44,14). Isso quer dizer que toda a glória externa, dada a ela pelo céu e pela terra, não é nada comparada àquela que ela recebe internamente, diretamente do Criador. As criaturas, por serem limitadas, não conseguem entender o segredo dos segredos do Rei.

12. Devemos então dizer com o apóstolo: "os olhos não viram, os ouvidos não ouviram, nem o coração do homem compreendeu" (1Cor 2,9) as belezas, grandezas e excelências de Maria, o milagre dos milagres da graça[6], da natureza e da glória. Se quiseres compreender a Mãe – diz um santo – compreendei o Filho. Ela é uma Mãe digna de Deus: Que toda língua se cale diante disso.

13. Escrevi tudo isso com muita alegria no coração, para demonstrar que a Santíssima Virgem Maria ainda tem sido, até aqui, desconhecida[7], e que essa é uma das razões pelas quais Jesus Cristo não é conhecido como deveria. Quando o conhecimento e o reino de Jesus tomarem o mundo, isso será uma consequência natural do conhecimento e do reino da Santíssima Virgem. Ela trouxe Jesus ao mundo na primeira vez, e, na segunda, também fará com que Ele brilhe.
____________________

1. Antífona à Santíssima Virgem para o tempo do Natal; hino “Ave Maris Stella”.
2. “[...] ut soli Deo cognoscenda reservetur” (SÃO BERNARDINO DE SENA. Sermão 51, art. 1, cap. 1).
3. “Rationalis secundi Adam paradisus” (SÃO LEÃO GRANDE. Sermão de Annuntiatione).
4. “Mundus specialissimus altissimi Dei” (SÃO BERNARDO).
5. “Magnificentia Dei” (RICARDO DE SÃO LOURENÇO. De laud. Virg., lib. IV).
6. “Miraculum miraculorum” (SÃO JOÃO DAMASCENO. Oratio I de Nativitate B.V.).
7. No sentido de: conhecida insuficientemente, como se depreende de todo este parágrafo e da expressão: “Jesus Cristo não é conhecido como deve ser”.
2ª parte

  Capítulo I (14-15)

Necessidade da devoção à Santíssima Virgem

14. Confesso com toda a Igreja que Maria é uma pura criatura, feita pelas mãos do Altíssimo. Comparada à Majestade infinita de Deus, ela é menos que um átomo, ou até um nada, pois somente Ele é "Aquele que é" (Ex 3,14). Por isso, esse grande Senhor, que é sempre independente e completo em si mesmo, não tem e nem teve jamais necessidade da Santíssima Virgem para realizar Suas vontades e manifestar Sua glória. Basta que Ele queira, e tudo acontece.

15. Digo, no entanto, que, sendo as coisas como são, já que Deus quis começar e acabar suas maiores obras por meio da Santíssima Virgem, depois que a formou, é de se acreditar que Ele não mudará Sua forma de agir pelos séculos dos séculos, pois Deus é imutável em Suas ações e sentimentos.

  Artigo I

PRINCÍPIOS

PRIMEIRO PRINCÍPIO. – Deus quis servir-se de Maria na Encarnação

SEGUNDO PRINCÍPIO. – Deus quer servir-se de Maria na santificação das almas

  Primeiro princípio (16-21)

Deus quis servir-se de Maria na Encarnação

16. Deus Pai só deu Seu Filho Unigênito ao mundo por meio de Maria. Patriarcas suspiraram e profetas e santos da lei antiga pediram por isso durante quatro mil anos, mas foi somente Maria quem mereceu e alcançou graça diante de Deus[1], pela força de suas orações e pela grandeza de suas virtudes. Como o mundo era indigno de receber o Filho de Deus diretamente das mãos do Pai, diz Santo Agostinho, Ele o entregou a Maria para que o mundo o recebesse através dela.
Foi em Maria e por meio dela que o Filho de Deus se fez homem para nossa salvação.
O Espírito Santo formou Jesus Cristo em Maria, mas somente depois de ter pedido o seu consentimento por meio de um dos primeiros ministros da corte celestial.

17. Deus Pai transmitiu a Maria sua fecundidade, na medida em que uma simples criatura poderia recebê-la, para que ela pudesse produzir seu Filho e todos os membros de seu corpo místico.

18. Deus Filho desceu ao seio virginal de Maria, como um novo Adão no paraíso terrestre, para aí encontrar suas alegrias e realizar, em segredo, maravilhas de graça. Deus, feito homem, encontrou sua liberdade ao se ver aprisionado no ventre da Virgem Mãe; mostrou sua força ao se permitir ser guiado por essa santa Virgem; e encontrou sua glória e a de seu Pai, escondendo seus esplendores de todas as criaturas do mundo, revelando-os apenas a Maria. Ele exaltou sua independência e majestade ao depender dessa amável Virgem, desde a sua concepção, nascimento, apresentação no templo, durante seus trinta anos de vida oculta, até sua morte, da qual ela deveria participar, para que ambos fizessem o mesmo sacrifício. Assim, Ele foi oferecido ao Pai eterno com o consentimento de sua Mãe, da mesma forma que Isaac foi oferecido com o consentimento de Abraão à vontade de Deus. Foi Maria quem o amamentou, nutriu, sustentou, criou e sacrificou por nós.
Ó admirável e incompreensível dependência de Deus, cujo valor e glória infinitos foram revelados a nós, pois o Espírito Santo não deixou de mencioná-la no Evangelho, enquanto quase todas as maravilhas que a Sabedoria encarnada realizou durante sua vida oculta permaneceram desconhecidas. Jesus Cristo deu mais glória a Deus ao submeter-se a Maria por trinta anos do que se tivesse convertido toda a terra realizando os maiores milagres. Oh! Como glorificamos a Deus quando, para agradá-lo, nos submetemos a Maria, seguindo o exemplo de Jesus Cristo, nosso único modelo.

19. Se olharmos com atenção o restante da vida de Jesus, veremos que foi por Maria que Ele quis começar seus milagres. Pela palavra de Maria, Ele santificou São João ainda no ventre de Santa Isabel; assim que as palavras saíram dos lábios de Maria, João foi santificado, sendo este o seu primeiro e maior milagre de graça. Foi ao humilde pedido de Maria que Ele, nas bodas de Caná, transformou a água em vinho, sendo esse o seu primeiro milagre sobre a natureza. Jesus começou e continuou seus milagres por Maria, e por Maria os continuará até o fim dos séculos.

20. O Espírito Santo, que não gerava outra pessoa divina em Deus, tornou-se fecundo em Maria. É com ela, nela e dela que Ele realizou sua obra-prima: um Deus feito homem. E, até o fim do mundo, o Espírito Santo continua, através de Maria, a gerar os predestinados e os membros do corpo desse Chefe adorável. Por isso, quanto mais Ele encontra Maria presente em uma alma, sua querida e inseparável esposa[2], mais poderosamente o Espírito Santo age para formar Jesus Cristo nessa alma, e para unir essa alma a Jesus Cristo.

21. Isso não significa que a Santíssima Virgem tenha dado fecundidade ao Espírito Santo, como se Ele não a tivesse. Sendo Deus, Ele possui a capacidade de gerar, assim como o Pai e o Filho. No entanto, o Espírito Santo não gera outra pessoa divina. O que se quer dizer é que, por meio da Virgem, de quem Ele quis se servir, embora não fosse absolutamente necessário, o Espírito Santo colocou em ação sua fecundidade, gerando nela e por ela Jesus Cristo e seus membros. Este é um mistério da graça, inacessível até mesmo para os cristãos mais sábios e espirituais.
____________________
1. Cf. Lc 1,30; Invenisti enim gratiam apud Deum.
2. “Sponsa Spiritus Sancti” (SANTO ILDEFONSO. Liber de Corona Virginis, cap. III). • “Sponsus eius Spiritus veritatis” (BELARMINO. Concio 2 super “Missus est”).

  Segundo princípio (22-36)

Deus quer servir-se de Maria na santificação das almas

22. A maneira como as três pessoas da Santíssima Trindade agiram na encarnação e primeira vinda de Jesus Cristo continua sendo a mesma, de forma visível, na Igreja todos os dias. Esse modo de agir permanecerá até o fim dos tempos, na última vinda de Cristo.

23. Deus Pai reuniu todas as águas e as chamou de mar; juntou todas as suas graças e as chamou de Maria[1]. Este grande Deus tem um tesouro, um depósito riquíssimo, onde guardou tudo que é belo, brilhante, raro e precioso, incluindo o seu próprio Filho. Esse tesouro imenso é Maria, que os anjos chamam de 'o tesouro do Senhor'[2], e é da plenitude desse tesouro que os homens se enriquecem.

24. Deus Filho transmitiu à sua Mãe tudo o que conquistou por sua vida e morte: seus méritos infinitos e suas virtudes admiráveis. Ele a fez tesoureira de tudo o que o Pai lhe deu como herança. É por meio dela que Ele aplica seus méritos aos membros de seu corpo místico, comunica suas virtudes e distribui suas graças. Maria é o canal misterioso, o aqueduto, por onde passam, de forma abundante e suave, as misericórdias de Jesus.

25. O Espírito Santo concedeu a Maria, sua fiel esposa, seus dons inefáveis, escolhendo-a como dispensadora de tudo o que Ele possui. Assim, ela distribui seus dons e graças a quem quer, quanto quer, como quer e quando quer, e nenhum dom é concedido aos homens sem passar por suas mãos virginais. Esta é a vontade de Deus: que tudo nos seja dado por Maria, para que ela seja enriquecida, elevada e honrada pelo Altíssimo, aquela que, em toda a sua vida, quis ser pobre, humilde e escondida até o nada. Esta é a opinião da Igreja e dos Santos Padres[3].

26. Se eu estivesse falando aos estudiosos deste tempo, poderia provar tudo isso que digo de forma simples, usando a Sagrada Escritura, os Santos Padres, citando longos trechos em latim e apresentando os argumentos mais fortes, como faz o padre Poiré em sua obra 'Tríplice Coroa da Santíssima Virgem'. No entanto, falo para os pobres e simples, que, por serem de boa vontade e terem mais fé que a maioria dos sábios, acreditam com mais simplicidade e mérito. Por isso, contento-me em dizer a verdade de maneira direta, sem me preocupar em citar muitos textos latinos, embora mencione alguns, mas sem exagero. Continuemos.

***
27. Como a graça aperfeiçoa a natureza e a glória aperfeiçoa a graça, é certo que Nosso Senhor continua sendo, no céu, tão Filho de Maria quanto foi na terra. Por isso, Ele mantém a submissão e obediência do mais perfeito dos filhos à melhor das mães. No entanto, devemos entender que essa dependência não diminui ou imperfecciona Jesus Cristo de forma alguma. Maria está infinitamente abaixo de seu Filho, que é Deus, e, portanto, não lhe dá ordens como uma mãe terrestre faz com seu filho. Maria, totalmente transformada em Deus pela graça e pela glória, que em Deus transforma todos os santos, não pede, não quer, nem faz nada que seja contrário à eterna e imutável vontade de Deus. Quando lemos nos escritos de São Bernardo, São Bernardino, São Boaventura e outros que no céu e na terra tudo, inclusive Deus, está submisso à Santíssima Virgem[4], devemos entender que a autoridade que Deus espontaneamente lhe concedeu é tão grande que ela parece ter o mesmo poder que Ele. Suas preces e súplicas são tão eficazes que se podem considerar como ordens perante Sua Majestade, e Deus nunca resiste aos pedidos de sua Mãe, porque ela é sempre humilde e conforme à Sua vontade divina.
Se Moisés, pela força de sua oração, conseguiu impedir a ira de Deus contra os israelitas, ao ponto de Deus lhe dizer que o deixasse enfurecer-se e punir aquele povo rebelde, o que devemos pensar, com muito mais razão, das preces da humilde Maria, a digna Mãe de Deus, que tem mais poder junto à Majestade divina do que as preces e intercessões de todos os anjos e santos do céu e da terra?[5]

28. No céu, Maria dá ordens aos anjos e aos bem-aventurados. Para recompensar sua profunda humildade, Deus lhe deu o poder e a missão de encher de santos os tronos vazios que os anjos apóstatas perderam por orgulho[6]. É a vontade do Altíssimo, que exalta os humildes (Lc 1,52), que o céu, a terra e o inferno se curvem, de bom ou mau grado, às ordens da humilde Maria[7], pois Ele a fez soberana do céu e da terra, general de seus exércitos, tesoureira de suas riquezas, dispensadora de suas graças, realizadora de suas grandes maravilhas, reparadora do gênero humano, mediadora para os homens, exterminadora dos inimigos de Deus e fiel companheira de suas grandezas e triunfos.

***
29. Por meio de Maria, Deus Pai quer que aumente sempre o número de seus filhos até o fim dos tempos, e Ele lhe diz: 'Habita em Jacó' (Eclo 24,13), ou seja, faz tua morada e vive entre meus filhos e predestinados, representados por Jacó, e não entre os filhos do demônio e os réprobos, que são representados por Esaú.

30. Assim como na geração natural e corporal há um pai e uma mãe, na geração sobrenatural também há um pai, que é Deus, e uma mãe, que é a Santíssima Virgem Maria. Todos os verdadeiros filhos de Deus e os predestinados têm Deus por Pai e Maria por Mãe; quem não tem Maria como Mãe, não tem Deus como Pai. Por isso, os réprobos, hereges, cismáticos e outros que odeiam, que olham com desprezo ou são indiferentes à Santíssima Virgem não têm Deus por Pai, mesmo que se orgulhem disso, pois não têm Maria como Mãe. Se a tivessem como Mãe, haveriam de amá-la e honrá-la, como um bom filho ama e honra naturalmente sua mãe, que lhe deu a vida.
O sinal mais claro e certo para distinguir um herege, um cismático ou um réprobo de um predestinado é que o herege e o réprobo mostram desprezo e indiferença pela Santíssima Virgem[8], e, com suas palavras e ações, abertamente ou de forma disfarçada, muitas vezes com bons pretextos, tentam diminuir e desvalorizar o culto e o amor a Maria. Ah! Não foi nestes que Deus Pai disse a Maria que fizesse sua morada, pois eles são filhos de Esaú.

***
31. O desejo de Deus Filho é formar-se e, por assim dizer, encarnar-se todos os dias, por meio de sua Mãe, em seus membros. Ele lhe diz: “Possui tua herança em Israel” (Eclo 24,13), como se dissesse: Deus, meu Pai, deu-me como herança todas as nações da terra, todos os homens bons e maus, os predestinados e os réprobos. Eu os conduzirei, uns com a vara de ouro, outros com a vara de ferro; serei pai e defensor de uns, justo vingador para outros, o juiz de todos. Mas vós, minha querida Mãe, tereis por herança e possessão apenas os predestinados, representados por Israel. Como boa Mãe, vós lhes dareis a vida, os nutrireis e educareis; e, como sua soberana, vós os conduzireis, governareis e defendereis.

32. “Um grande número de homens nasceu nela”, diz o Espírito Santo. Conforme a explicação de alguns Santos Padres, o primeiro homem nascido de Maria é o homem-Deus, Jesus Cristo; o segundo é um homem puro, filho de Deus e de Maria por adoção. Se Jesus Cristo, o cabeça da humanidade, nasceu nela, então os predestinados, que são os membros desse corpo, também devem nascer nela por consequência natural. Nenhuma mãe dá à luz a cabeça sem os membros ou os membros sem a cabeça, pois isso seria uma monstruosidade da natureza. Do mesmo modo, na ordem da graça, a cabeça e os membros nascem da mesma mãe. Se algum membro do corpo místico de Jesus Cristo, ou seja, um predestinado, nascesse de outra mãe que não fosse Maria, que deu à luz a cabeça, ele não seria um predestinado nem membro de Jesus Cristo, mas sim um monstro na ordem da graça.

33. Além disso, como Jesus é agora, mais do que nunca, o fruto de Maria, como o céu e a terra repetem milhares de vezes todos os dias: “[...] e bendito é o fruto do vosso ventre”, é certo que Jesus Cristo, para cada pessoa que o possui, é tão verdadeiramente o fruto e a obra de Maria como é para todo o mundo em geral. Assim, se algum fiel tem Jesus Cristo formado em seu coração, pode dizer com certeza: “Mil graças a Maria! Este Jesus que eu possuo é, de fato, fruto dela, e sem ela eu nunca o teria”. Pode-se aplicar a Maria, de maneira ainda mais adequada do que São Paulo aplicou a si mesmo, as palavras: “Dou à luz todos os dias os filhos de Deus, até que Jesus Cristo seja formado neles em toda a plenitude de sua idade” (Gl 4,19). Santo Agostinho, indo além de tudo o que foi dito, confirma que todos os predestinados, para se conformarem à imagem do Filho de Deus, estão, neste mundo, ocultos no seio da Santíssima Virgem, e ali são guardados, alimentados, sustentados e engrandecidos por essa boa Mãe, até que ela os leve à glória após a morte, que é propriamente o dia de seu nascimento, como a Igreja qualifica a morte dos justos. Ó mistério de graça que os réprobos desconhecem e os predestinados conhecem muito pouco.

***
34. É vontade do Espírito Santo que os eleitos sejam formados em Maria e por meio dela. Ele diz a ela (Eclo 24,12): Minha bem-amada e esposa, lança nos meus eleitos as raízes de todas as virtudes, para que eles cresçam de virtude em virtude e de graça em graça. Eu tive tanta alegria em ti, quando vivias na terra, praticando as mais sublimes virtudes, que ainda desejo encontrar-te sobre a terra, sem que deixes de estar no céu. Reproduze-te, portanto, nos meus eleitos. Que eu veja neles com prazer as raízes da tua fé invencível, da tua humildade profunda, da tua mortificação universal, da tua oração sublime, da tua caridade ardente, da tua esperança firme e de todas as tuas virtudes. Tu és sempre minha esposa, tão fiel, tão pura e tão fecunda como sempre: que a tua fé me dê fiéis, que a tua pureza me dê virgens, e que a tua fecundidade me dê eleitos e templos.

35. Quando Maria lança suas raízes em uma alma, maravilhas de graça acontecem, que somente ela pode realizar, pois é a única Virgem fecunda, sem igual em pureza e fecundidade. Com o Espírito Santo, Maria produziu a maior maravilha que já existiu e existirá: um Deus feito homem. Por isso, ela também produzirá as coisas mais admiráveis que acontecerão nos últimos tempos. A formação e educação dos grandes santos, que aparecerão no fim do mundo, estão reservadas a ela, pois só essa Virgem singular e milagrosa, em união com o Espírito Santo, pode realizar obras tão singulares e extraordinárias.

36. Quando o Espírito Santo, seu esposo, encontra Maria em uma alma, Ele se apodera dessa alma e a penetra com toda a sua plenitude, comunicando-se abundantemente, na medida em que concede sua graça por meio de Maria. Uma das razões pelas quais, hoje em dia, o Espírito Santo não realiza grandes maravilhas nas almas é porque Ele não encontra nelas uma união forte o suficiente com sua fiel e inseparável esposa, Maria. Digo inseparável porque, desde que este Amor substancial do Pai e do Filho desposou Maria para gerar Jesus Cristo, o chefe dos eleitos, e Jesus Cristo nos eleitos, Ele nunca a abandonou, pois ela tem sido sempre fiel e fecunda.
____________________
1. “Appellavit eam Mariam, quasi mare gratiarum” (S. AN-TONINO. Summa p. IV, tit. 15, cap. 4, § 2).
2. Ipsa est, thesaurus Domini (Idiota, In contemplatione B.M.V.).
3. Cf., entre outros, São Bernardo e São Bernardino de Sena, que São Luís Maria cita
mais adiante (141-142).
4. Cf. adiante a citação (n. 76).
5. SANTO AGOSTINHO. Sermo 208 in Assumpt., n. 12.
6. “Per Mariam ab hominibus Angelorum chori reintegrantur” (SÃO BOAVENTURA. Speculum B.V., lect. XI, § 6).
7. “In nomine tuo omne genu flectatur caelestium, terrestrium et infernorum” (SÃO BOAVENTURA. Psalter, maius B.V., Cantic. instar “Cantici trium puerorum”).
8. “Quicumque vult salvus esse, ante omnia opus est ut teneat de Maria firmam fidem” (SÃO BOAVENTURA. Psalter, maius B.V., Symbol., instar Symboli Athanasii).

  Artigo II

CONSEQUÊNCIAS

PRIMEIRA CONSEQUÊNCIA. – Maria é a Rainha dos corações

SEGUNDA CONSEQUÊNCIA. – Maria é necessária aos homens para chegarem ao seu último fim

  Primeira consequência (37-38)

Maria é a Rainha dos corações

37. Do que foi dito, podemos concluir claramente que:
Primeiro, Maria recebeu de Deus um grande domínio sobre as almas dos eleitos. Ela não pode fazer sua morada nessas almas, como Deus Pai lhe ordenou; não pode formá-los, nutri-los, fazê-los nascer para a vida eterna como sua Mãe, possuí-los como sua herança e partilha, formá-los em Jesus Cristo e Jesus Cristo neles; não pode plantar em seus corações as raízes de suas virtudes e ser a inseparável companheira do Espírito Santo em todas as suas obras de graça; não pode fazer tudo isso, repito, se não tiver um direito e domínio sobre essas almas, por uma graça especial do Altíssimo. E essa graça, que lhe deu autoridade sobre o Filho único e natural de Deus, foi também concedida sobre seus filhos adotivos, não apenas sobre o corpo, o que seria pouco, mas também sobre a alma.

38. Maria é a Rainha do céu e da terra pela graça, assim como Jesus é o Rei por natureza e conquista. O reino de Jesus Cristo está principalmente no coração ou no interior do homem, conforme as palavras: “O reino de Deus está no meio de vós” (Lc 17,21). Da mesma forma, o reino da Santíssima Virgem está principalmente no interior do homem, ou seja, em sua alma. É nas almas que Maria é mais glorificada junto com seu Filho, mais do que em todas as criaturas visíveis. Por isso, podemos chamá-la, como fazem os santos, a Rainha dos corações.

  Segunda consequência (39)

Maria é necessária aos homens para chegarem ao seu último fim

39. Em segundo lugar, deve-se concluir que a Santíssima Virgem, sendo necessária a Deus, de uma necessidade chamada hipotética, por causa de Sua vontade, é ainda mais necessária para os homens alcançarem seu último fim. Portanto, não se deve confundir a devoção à Santíssima Virgem com a devoção aos outros santos, como se ela não fosse mais necessária do que a dos demais, sendo considerada apenas como algo extra.

§ I. A devoção à santa Virgem é necessária a todos os homens para conseguirem a salvação.

§ II. A devoção à Santíssima Virgem é mais necessária ainda àqueles chamados a uma perfeição particular.

§ III. A devoção à Santíssima Virgem será especialmente necessária nesses últimos tempos.

  § I (40-42)

§ I. A devoção à santa Virgem é necessária a todos os homens para conseguirem a salvação.

40. O douto e piedoso Suárez, da Companhia de Jesus, o sábio e devoto Justo Lípsio, doutor da Universidade de Lovaina, e muitos outros, provaram incontestavelmente, com base na opinião dos Santos Padres — entre eles Santo Agostinho, Santo Efrém, diácono de Edessa, São Cirilo de Jerusalém, São Germano de Constantinopla, São João de Damasco, Santo Anselmo, São Bernardo, São Bernardino, Santo Tomás e São Boaventura — que a devoção à Santíssima Virgem é necessária para a salvação. Além disso, é um sinal infalível de condenação não ter estima e amor pela Santíssima Virgem — como afirmavam Ecolampádio e outros hereges. Ao contrário, ser inteiramente e verdadeiramente devotado a ela é um sinal certo de predestinação[1].

41. As figuras e palavras do Antigo e do Novo Testamento provam essa verdade; a opinião e os exemplos dos santos a confirmam; a razão e a experiência a ensinam e demonstram; e até o próprio demônio e seus seguidores, forçados pela verdade, muitas vezes foram obrigados a confessá-la contra sua vontade. De todas as passagens dos Santos Padres e doutores que compilei para provar essa verdade, cito apenas uma, para ser breve: “Ser vosso devoto, ó Virgem Santíssima, é uma arma de salvação que Deus dá àqueles que deseja salvar” (São João Damasceno).

42. Eu poderia relatar várias histórias que comprovam o que afirmo. Entre elas, a primeira é a que está narrada nas crônicas de São Francisco. Conta-se que o santo, em êxtase, viu uma escada enorme que chegava ao céu, e no topo estava a Santíssima Virgem. São Francisco compreendeu que deveria subir por essa escada para alcançar o céu. A segunda história está nas crônicas de São Domingos. Quando o santo pregava o rosário perto de Carcassona, quinze mil demônios, que possuíam a alma de um herege, foram forçados, pela ordem da Santíssima Virgem, a confessar grandes e consoladoras verdades sobre a devoção a Maria. Eles, para sua própria humilhação, fizeram isso com tanto fervor e clareza que é impossível ler essa narração autêntica e o elogio que o demônio, mesmo contra a vontade, fez à devoção mariana sem derramar lágrimas de alegria, mesmo que se tenha pouca devoção à Santíssima Virgem.
____________________

1. A verdadeira devoção à Santíssima Virgem consiste em se lhe devotar e entregar. O culto de dulia é a dependência, a servidão (S. TH. Sum. Theol. 2-2, q. 103, a. 3, in fine corp.); o culto de hiperdulia consiste numa dependência mais perfeita à Santíssima Virgem, ou, em outras palavras, na escravidão preconizada por São Luís Maria Montfort.

  § II (43-48)

§ II. A devoção à Santíssima Virgem é mais necessária ainda àqueles chamados a uma perfeição particular.

43. Se a devoção à Santíssima Virgem é necessária para todos os homens alcançarem a salvação, ela é ainda mais indispensável para aqueles que são chamados a uma perfeição especial. Não acredito que alguém possa adquirir uma união íntima com Nosso Senhor e uma perfeita fidelidade ao Espírito Santo sem uma grande união com a Santíssima Virgem e uma forte dependência de sua ajuda.

44. Só Maria encontrou graça diante de Deus (Lc 1,30) sem a ajuda de qualquer outra criatura. E todos os que, depois dela, encontraram graça diante de Deus, conseguiram isso por meio dela, e assim será para todos os que ainda virão[1]. Maria já era cheia de graça quando o arcanjo Gabriel a saudou (Lc 1,28), e essa graça superabundou quando o Espírito Santo a cobriu com sua sombra inefável (Lc 1,35). Essa plenitude de graça aumentou continuamente, de dia a dia, de momento a momento, até alcançar um grau imenso e inconcebível. Por isso, o Altíssimo a fez tesoureira de todos os seus bens, dispensadora de suas graças, para elevar, enobrecer e enriquecer quem ela desejar, para guiar quem ela quiser pelo caminho estreito do céu, para permitir a entrada na vida eterna daqueles que ela quiser, e para conceder o trono, o cetro e a coroa a quem ela desejar. Jesus é sempre, em toda parte, o fruto e o Filho de Maria; e Maria é sempre, em toda parte, a verdadeira árvore que dá o fruto da vida e a verdadeira mãe que o gera[2].

45. A Maria, e somente a ela, Deus confiou as chaves dos tesouros do amor divino, bem como o poder de acessar os caminhos mais sublimes e secretos da perfeição, e de conduzir outros por esses mesmos caminhos. Só Maria concede aos miseráveis filhos de Eva, que foi infiel, a entrada no paraíso terrestre, para que possam desfrutar da companhia de Deus, se esconder com segurança de seus inimigos, alimentar-se sem medo da morte do fruto das árvores da vida e da ciência do bem e do mal, e beber abundantemente das águas celestes dessa bela fonte. Ou melhor, como ela mesma é esse paraíso terrestre, essa terra virgem e abençoada da qual Adão e Eva, pecadores, foram expulsos, Maria é a única que permite a entrada daqueles que ela deseja, para torná-los santos.

46. Todos os ricos do povo, como diz o Espírito Santo (Sl 44,13), implorarão, conforme explica São Bernardo, a vossa face por todos os séculos, especialmente no fim do mundo. Ou seja, as almas mais santas, as mais ricas em graça e virtudes, serão as mais dedicadas em pedir à Santíssima Virgem que esteja sempre com elas, como seu perfeito modelo a ser imitado, e que as ajude com seu poderoso auxílio.

47. Disse que isso acontecerá especialmente no fim do mundo e em breve, porque o Altíssimo e sua Santa Mãe irão suscitar grandes santos, com uma santidade tão extraordinária que superarão a maioria dos santos, assim como os cedros do Líbano se elevam acima das pequenas árvores ao redor, conforme revelado a uma santa alma.

48. Essas grandes almas, cheias de graça e zelo, serão escolhidas em contraposição aos inimigos de Deus que surgirão por toda parte. Elas serão especialmente devotas da Santíssima Virgem, iluminadas por sua luz, alimentadas com seu leite, conduzidas por seu espírito, sustentadas por seu braço e protegidas sob seu manto. Combaterão com uma mão e edificarão com a outra (cf. Ne 4,17). Com a direita, lutarão contra os hereges e suas heresias, os cismáticos e seus cismas, os idólatras e suas idolatrias, e os ímpios e suas impiedades. Com a esquerda, edificarão o templo do verdadeiro Salomão e a cidade mística de Deus, isto é, a Santíssima Virgem, que os Santos Padres chamam de "o templo de Salomão"[3] e "a cidade de Deus"[4].
Por meio de suas palavras e exemplos, levarão o mundo inteiro à verdadeira devoção, o que lhes trará incontáveis inimigos, mas também inúmeras vitórias e glória para o único Deus. Isso foi revelado a São Vicente Ferrer, grande apóstolo de seu tempo, e está registrado em uma de suas obras.
Parece que o Salmo 58 (14,15) previu o mesmo: “E saberão que Deus reinará sobre Jacó e até os confins da terra; voltarão à tarde, e padecerão fome como cães, e rodearão a cidade, em busca do que comer.” Esta cidade, que os homens encontrarão no fim dos tempos para se converterem e saciarem sua fome de justiça, é a Santíssima Virgem, a quem o Espírito Santo chama de "cidade de Deus" (Sl 86,3).
____________________

1. “Necesse est ut qui vult a Deo gratiam impetrare, ad hanc mediatricem accedat devotissimo corde” (SÃO BOAVENTURA. Sermo in B.V.M.). Cf. tb. SÃO BERNARDO. De aquaeductu, n. 7.
2. Cf. acima, n. 33.
3. “Templum Salomonis”. Idiota, De B.V., p. XVI, contemplação 7.
4. “Civitas Dei” (SANTO AGOSTINHO. Enarrat in Ps. 142, n. 3).

  § III (49-59)

§ III. A devoção à Santíssima Virgem será especialmente necessária nesses últimos tempos.

1. Papel especial de Maria nos últimos tempos

49. Por meio de Maria começou a salvação do mundo, e é por meio de Maria que ela deve ser consumada. Na primeira vinda de Jesus Cristo, Maria quase não apareceu, para que os homens, ainda pouco instruídos e esclarecidos sobre a pessoa de seu Filho, não se apegassem demasiadamente a ela de maneira imprópria, afastando-se da verdade. Isso poderia ter aparentemente acontecido, devido aos encantos admiráveis com que o próprio Deus ornou sua aparência exterior. São Dionísio, o Areopagita, confirma isso em um de seus escritos[1], dizendo que, quando a viu, quase a tomou por uma divindade, tal era o encanto que emanava de sua beleza incomparável, se não fosse pela fé que o ensinava o contrário.
Contudo, na segunda vinda de Jesus Cristo, Maria deverá ser conhecida e revelada pelo Espírito Santo, para que, por meio dela, Jesus Cristo seja mais conhecido, amado e servido, pois já não existem as razões que levaram o Espírito Santo a ocultar sua esposa durante a vida e a revelá-la somente um pouco após a pregação do Evangelho.

***
50. Deus quer, portanto, nestes últimos tempos, revelar e manifestar Maria, a obra-prima de Suas mãos:

1º) Porque ela se ocultou neste mundo e, por sua profunda humildade, colocou-se abaixo do pó, obtendo de Deus, dos apóstolos e evangelistas, que quase não fosse mencionada.

2º) Porque, sendo a obra-prima das mãos de Deus, tanto na terra, pela graça, quanto no céu, pela glória, Ele quer que, por meio dela, os viventes O louvem e glorifiquem sobre a terra.

3º) Porque, sendo a aurora que precede e anuncia o Sol da Justiça, Jesus Cristo, Maria deve ser conhecida e notada para que Jesus Cristo também o seja.

4º) Porque, sendo o meio pelo qual Jesus Cristo veio a nós pela primeira vez, ela também será o meio em Sua segunda vinda, embora de maneira diferente.

5º) Porque Maria é o caminho seguro, reto e imaculado para se ir a Jesus Cristo e encontrá-Lo plenamente. É por meio dela que as almas, chamadas a brilhar em santidade, devem encontrá-Lo. Quem encontra Maria, encontra a vida (cf. Pr 8,35), isto é, Jesus Cristo, que é o caminho, a verdade e a vida (Jo 14,6). Mas ninguém pode encontrar Maria sem procurá-la, e ninguém a busca sem antes conhecê-la. Portanto, Maria deve ser mais conhecida do que nunca, para maior glória da Santíssima Trindade.

6º) Nestes últimos tempos, Maria deve brilhar como nunca brilhou antes, em misericórdia, força e graça. Em misericórdia, para acolher e receber amorosamente os pobres pecadores e desviados que se converterão e voltarão ao seio da Igreja Católica; em força, para se opor aos inimigos de Deus, como os idólatras, cismáticos, maometanos, judeus e ímpios empedernidos, que se revoltarão furiosamente para tentar seduzir e fazer cair, com promessas e ameaças, todos os que se opuserem a eles. Finalmente, em graça, para animar e sustentar os valentes soldados e fiéis de Jesus Cristo, que lutarão por Sua causa.

7º) Maria será terrível para o demônio e seus seguidores, como um exército em ordem de batalha, especialmente nesses últimos tempos, pois o demônio, sabendo que pouco tempo lhe resta para perder as almas, redobra seus esforços e ataques diariamente. Ele, em breve, levantará perseguições cruéis e emboscadas terríveis contra os servidores fiéis e os verdadeiros filhos de Maria, que são os que mais lhe causam dificuldades para vencer.

***
51. Essas últimas e cruéis perseguições do demônio, que se intensificarão cada dia até o reino do Anticristo, são mencionadas na primeira e famosa profecia e maldição que Deus lançou contra a serpente no paraíso terrestre. É oportuno explicá-la aqui, para a glória da Santíssima Virgem, salvação de seus filhos e confusão do demônio (Gn 3,15): Porei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a descendência dela. Ela te esmagará a cabeça, e tu tentarás ferir o seu calcanhar.

52. Deus promoveu e estabeleceu uma única inimizade irreconciliável, que não apenas perdura, mas cresce até o fim dos tempos: a inimizade entre Maria, Sua digna Mãe, e o demônio; entre os filhos e servos da Santíssima Virgem e os filhos e seguidores de Lúcifer. Maria é a inimiga mais terrível que Deus armou contra o demônio. Desde o paraíso, Ele deu a Maria um ódio profundo por esse inimigo amaldiçoado, uma clarividência para perceber sua malícia e uma força para vencer, esmagar e aniquilar esse ser impiedoso e orgulhoso. O temor que Maria inspira ao demônio é maior do que o causado por todos os anjos e homens, e, em certo sentido, maior até do que o temor ao próprio Deus.
Isso não significa que a ira, o ódio e o poder de Deus não sejam infinitamente maiores que os da Santíssima Virgem, já que as perfeições de Maria são limitadas. Porém, em primeiro lugar, Satanás, por ser extremamente orgulhoso, sofre incomparavelmente mais ao ser derrotado e punido pela pequena e humilde serva de Deus, cuja humildade o humilha mais do que o próprio poder divino. Em segundo lugar, Deus concedeu a Maria um poder tão grande sobre os demônios, que, como muitas vezes foram forçados a confessar por meio de possessos, um único suspiro de Maria por uma alma causa-lhes mais temor do que as orações de todos os santos, e uma só de suas ameaças é mais terrível para eles que todos os outros tormentos.

53. O que Lúcifer perdeu por orgulho, Maria ganhou por humildade. O que Eva condenou e perdeu pela desobediência, Maria salvou pela obediência. Eva, ao obedecer à serpente, perdeu todos os seus filhos e os entregou ao poder do inferno; Maria, por sua perfeita fidelidade a Deus, salvou todos os seus filhos e servos e os consagrou a Deus.

54. Deus não estabeleceu apenas uma inimizade, mas várias inimizades, e não apenas entre Maria e o demônio, mas também entre a descendência da Santíssima Virgem e a descendência do demônio. Isso significa que Deus criou inimizades, antipatias e ódios secretos entre os verdadeiros filhos e servos da Santíssima Virgem e os filhos e escravos do demônio. Não há entre eles a menor sombra de amor ou qualquer intimidade. Os filhos de Belial, os escravos de Satanás, e os amigos do mundo (que são a mesma coisa) sempre perseguiram e continuarão a perseguir os que pertencem à Santíssima Virgem, assim como Caim perseguiu seu irmão Abel, e Esaú perseguiu seu irmão Jacó, representando os réprobos e os predestinados.
Mas a humilde Maria será sempre vitoriosa nessa luta contra o orgulhoso demônio, e sua vitória final será tão grande que ela esmagará a cabeça dele, o centro de todo o seu orgulho. Maria sempre revelará a malícia da serpente, desmascarará suas tramas infernais, frustrará seus conselhos diabólicos, e até o fim dos tempos protegerá seus fiéis servos das garras desse inimigo cruel.
O poder de Maria sobre os demônios se manifestará de forma ainda mais intensa nos últimos tempos, quando Satanás começar a armar ciladas contra o calcanhar de Maria, isto é, contra seus humildes servos, os seus filhos pobres, que ela suscitará para combater o príncipe das trevas. Esses servos serão pequenos e insignificantes aos olhos do mundo, sendo desprezados e oprimidos, como o calcanhar é em relação aos outros membros do corpo. Contudo, eles serão ricos em graças de Deus, graças que Maria lhes concederá abundantemente. Serão grandes e notáveis em santidade diante de Deus, e, com o zelo fervoroso e o amparo do poder divino, juntamente com a humildade do calcanhar e em união com Maria, esmagarão a cabeça do demônio e promoverão o triunfo de Jesus Cristo.

2. Os apóstolos dos últimos tempos

55. Deus quer, finalmente, que Sua Santíssima Mãe seja agora mais conhecida, mais amada e mais honrada do que jamais foi. E isso certamente acontecerá se os predestinados colocarem em prática, com a ajuda do Espírito Santo, a devoção interior e perfeita que apresento a seguir. Se a observarem fielmente, eles verão claramente, com os olhos da fé, essa bela estrela do mar e chegarão a bom porto, superando as tempestades e os piratas. Conhecerão as grandezas dessa soberana e se consagrarão inteiramente a seu serviço, como súditos e escravos de amor. Experimentarão sua doçura e bondade maternais, e a amarão ternamente, como filhos dedicados. Reconhecerão as misericórdias com que ela é cheia e perceberão a necessidade de seu auxílio, recorrendo a ela em todas as circunstâncias como sua querida advogada e medianeira junto a Jesus Cristo. Entenderão que ela é o caminho mais seguro, fácil, rápido e perfeito para chegar a Jesus Cristo, e se entregarão completamente a ela, de corpo e alma, sem restrições, para assim também pertencerem inteiramente a Jesus Cristo.

56. Mas quem serão esses servidores, esses escravos e filhos de Maria?
Serão ministros do Senhor, ardentes como chamas abrasadoras, que espalharão o fogo do amor divino por toda parte. Serão “como flechas que um guerreiro tem na mão” (Sl 126,4) — flechas afiadas nas mãos de Maria, todo-poderosa, prontas para atravessar os inimigos. Serão filhos de Levi, purificados no fogo das grandes tribulações, profundamente unidos a Deus[2]. Levarão o ouro do amor em seus corações, o incenso da oração em seus espíritos, e a mirra da mortificação em seus corpos. Serão, para os pobres e pequenos, o bom odor de Jesus Cristo, e, para os grandes, ricos e orgulhosos do mundo, um odor repulsivo de morte.

57. Serão como nuvens trovejantes, movendo-se ao menor sopro do Espírito Santo, sem se apegar a nada, sem se admirar de coisa alguma ou se preocupar. Derramarão a chuva da palavra de Deus e da vida eterna. Trovejarão contra o pecado, levantarão suas vozes contra o mundo, castigarão o demônio e seus seguidores, e, para a vida ou para a morte, atravessarão, com a espada de dois gumes da palavra de Deus (cf. Ef 6,17), todos aqueles a quem forem enviados pelo Altíssimo.

58. Serão verdadeiros apóstolos dos últimos tempos, e o Senhor das virtudes lhes dará a palavra e a força para realizar maravilhas e conquistar vitórias gloriosas sobre seus inimigos. Dormirão sem ouro nem prata, e, o que é melhor, sem preocupações, no meio dos outros padres, eclesiásticos e clérigos (Sl 67,14). No entanto, possuirão as asas prateadas da pomba, para voar, com a pura intenção da glória de Deus e da salvação das almas, para onde o Espírito Santo os chamar. E, nos lugares onde pregarem, deixarão o ouro da caridade, que é o cumprimento da lei (Rm 13,10).

59. Sabemos, enfim, que esses serão verdadeiros discípulos de Jesus Cristo, seguindo Seus passos de pobreza e humildade, de desprezo pelo mundo e de caridade. Ensinarão o caminho estreito de Deus, na pura verdade do santo Evangelho, e não segundo as máximas do mundo. Não se preocuparão com a opinião de ninguém, não farão distinção de pessoas, nem temerão qualquer mortal, por mais poderoso que seja. Terão em suas bocas a espada de dois gumes da palavra de Deus; em seus ombros, carregarão o estandarte ensanguentado da cruz; na mão direita, o crucifixo; na esquerda, o rosário; no coração, os nomes sagrados de Jesus e Maria; e, em toda a sua conduta, a modéstia e a mortificação de Jesus Cristo.
Esses são os grandes homens que virão, suscitados por Maria, em obediência às ordens do Altíssimo, para que Seu império se estenda sobre o império dos ímpios, dos idólatras e dos maometanos. Quando e como isso acontecerá? Só Deus o sabe! Quanto a nós, cabe-nos silenciar, orar, suspirar e esperar: “Esperando, esperei no Senhor” (Sl 39,2).
____________________
1. Testor qui aderat in Virgine Deum, si tua doctrina non me docuisset, hanc verum Deum esse credidissem (Ep. ad s. Paulum).
2. Tradução enérgica da palavra de São Paulo (1Cor 6,17): “Qui adhaeret Domino”.
3ª parte

  Capítulo II (60)

Verdades fundamentais da devoção à Santíssima Virgem

60. Até aqui falamos sobre a necessidade que temos da devoção à Santíssima Virgem. Com o auxílio de Deus, direi agora em que consiste essa devoção. Antes, porém, apresentarei algumas verdades fundamentais que irão esclarecer essa grande e sólida devoção que desejo manifestar.

  Artigo I (61-67)

Jesus Cristo é o fim último da devoção à Santíssima Virgem

61. Primeira verdade, – Jesus Cristo, nosso Salvador, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, deve ser o fim último de todas as nossas devoções; caso contrário, essas devoções serão falsas e enganosas. Jesus Cristo é o alfa e o ômega[1], o princípio e o fim de todas as coisas. Como diz o apóstolo, nosso trabalho é tornar todo homem perfeito em Jesus Cristo, pois é em Cristo que habita toda a plenitude da Divindade, e todas as outras plenitudes de graças, virtudes e perfeições. Somente nele fomos abençoados com toda bênção espiritual.
Ele é nosso único mestre que deve ensinar-nos, nosso único Senhor, de quem quem devemos depender; nosso único chefe, ao qual devemos estar unidos; nosso único modelo, com o qual devemos nos conformar; nosso único médico, que nos cura; nosso único pastor, que nos alimenta; nosso único caminho, que devemos trilhar; nossa única verdade, que devemos crer; nossa única vida, que nos vivifica; e nosso tudo, em todas as coisas, que deve nos bastar.
Abaixo do céu, nenhum outro nome foi dado aos homens pelo qual possamos ser salvos. Deus não nos deu outro fundamento para nossa salvação, nossa perfeição e nossa glória além de Jesus Cristo. Qualquer edifício que não estiver fundamentado nesta rocha firme está construído sobre areia movediça e cairá inevitavelmente. Todo fiel que não estiver unido a Ele, como um galho ao tronco da videira, cairá e secará, e será lançado ao fogo. Fora de Jesus Cristo, tudo é ilusão, mentira, iniquidade, inutilidade, morte e danação.
Se estamos em Jesus Cristo e Ele em nós, não temos o que temer. Nem os anjos do céu, nem os homens da terra, nem criatura alguma pode nos separar da caridade de Deus que está em Jesus Cristo. Por Jesus Cristo, com Jesus Cristo e em Jesus Cristo, podemos tudo: dar toda honra e glória ao Pai, na unidade do Espírito Santo, e nos tornarmos perfeitos, sendo para o próximo um bom odor de vida eterna.

62. Se estabelecermos, portanto, a sólida devoção à Santíssima Virgem, teremos contribuído para estabelecer com mais perfeição a devoção a Jesus Cristo teremos proporcionado um meio fácil e seguro de encontrá-lo. Se a devoção à Santíssima Virgem nos afastasse de Jesus Cristo, deveríamos rejeitá-la como uma ilusão do demônio. Mas, ao contrário, como já mostrei e continuarei a demonstrar, nas páginas seguintes, essa devoção é necessária justamente para encontrar Jesus Cristo, amá-lo profundamente e servi-lo com fidelidade.

***
63. Volto-me agora para Vós, ó Jesus, para queixar-me amorosamente à Vossa divina majestade de que a maior parte dos cristãos, mesmo os mais instruídos, desconhecem a ligação essencial que existe entre Vós e Vossa Mãe Santíssima. Vós, Senhor, estais sempre com Maria, e Maria está sempre convosco; ela não pode estar sem Vós, pois, se assim fosse, deixaria de ser quem é. Maria está tão profundamente transformada em Vós pela graça que já não vive, já não existe, mas sois Vós, meu Jesus, que viveis e reinais nela, de maneira mais perfeita que em todos os anjos e bem-aventurados. Ah! Se conhecêssemos a glória e o amor que recebeis nesta criatura admirável, nossos sentimentos em relação a Vós e a ela seriam bem diferentes. Maria está tão intimamente unida a Vós que seria mais fácil separar a luz do sol ou o calor do fogo. Digo mais: seria mais fácil separar os anjos e santos de Vós do que a Vossa divina Mãe, pois ela Vos ama com mais ardor e Vos glorifica com mais perfeição que todas as outras criaturas juntas.

64. Depois de tudo isso, meu amável Mestre, não é triste e lamentável ver a ignorância e as trevas em que muitos homens vivem na terra a respeito de Vossa Santíssima Mãe? Não falo dos idólatras e pagãos, que, por não Vos conhecerem, também não buscam conhecê-la. Nem me refiro aos hereges e cismáticos, que, estando separados de Vós e de Vossa Santa Igreja, não se interessam pela devoção à Vossa Mãe Santíssima. Falo dos cristãos católicos, e até de alguns doutores entre os católicos[2], que têm a profissão de ensinar a verdade aos outros, mas não Vos conhecem nem a Vossa Mãe Santíssima, a não ser de maneira especulativa, seca, estéril e indiferente.
Esses senhores raramente falam de Maria e da devoção que lhe é devida, porque, segundo dizem, temem que essa devoção seja abusada ou que, ao honrar demais a Vossa Mãe, acabem por Vos ofender. Se veem ou ouvem algum devoto da Santíssima Virgem falar com ternura, força e convicção sobre a devoção a Maria como um meio seguro e sem ilusão, como um caminho curto e sem perigo, de uma via imaculada e sem imperfeição, e de um segredo maravilhoso para chegar a Vós e Vos amar perfeitamente, clamam contra ele e apresentam mil razões falsas, para provar que não é necessário falar tanto de Maria e que há muitos abusos nessa devoção. Eles se esforçam em desacreditar essa devoção e dizem que é melhor falar diretamente de Vós, afirmando que o povo já ama Maria o suficiente.
Às vezes falam da devoção à Vossa Mãe, mas não para promovê-la e propagá-la, e sim para corrigir os supostos abusos. Esses senhores, no entanto, são desprovidos de verdadeira piedade e não têm sincera devoção a Vós, porque não a têm a Maria. Consideram o rosário, o escapulário e o terço como devoções para mulheres e ignorantes, e acreditam que se pode alcançar a salvação sem essas práticas. Se encontram um devoto da Virgem Santíssima, que recita o seu terço ou pratica qualquer outra devoção mariana, rapidamente mudam o espírito e o coração dele: recomendam recitar os sete salmos em vez do terço, e incentivam uma devoção direta a Jesus Cristo, em vez da devoção à Santíssima Virgem.
Ó meu amável Jesus, será que essa gente têm o Vosso espírito? Será possível que Vos agradem agindo assim? Alguém pode agradar-Vos sem se esforçar para agradar a Maria, por medo de Vos desagradar? A devoção à Vossa Mãe impede a devoção a Vós? Maria retira para si as honras que lhe damos? Ela formaria um partido separado do Vosso? Será que ela é uma estranha, sem nenhuma ligação convosco? Agradar a Maria é desagradar-Vos? Nos afastamos de Vosso amor ao nos dedicarmos a ela e amá-la?

65. Entretanto, meu amável Mestre, a maior parte dos sábios, em castigo de seu orgulho, não se afastaria mais da devoção à Santíssima Virgem, nem a olharia com mais indiferença, mesmo que tudo o que acabo de dizer fosse verdadeiro. Guardai-me, Senhor, guardai-me de tais sentimentos e práticas. Dai-me uma parte dos sentimentos de reconhecimento, estima, respeito e amor que tendes para com vossa Mãe Santíssima, para que eu Vos ame e glorifique, na medida em que a imitar e Vos seguir mais de perto.

66. Concedei-me a graça de louvar dignamente vossa Mãe Santíssima, pois tudo o que eu disse até agora em sua honra parece tão pouco. Fac me digne tuam Matrem collaudare — fazei-me louvá-la dignamente, apesar de todos os seus inimigos, que também são os vossos. E que eu possa repetir com os santos: Non praesumat aliquis Deum se habere propitium qui benedictam Matrem offensam habuerit — “Ninguém pode esperar a graça de Deus se ofende sua Mãe Santíssima”.

67. E, para alcançar pela vossa misericórdia uma verdadeira devoção à vossa Mãe Santíssima, e inspirá-la a toda a terra, fazei com que eu vos ame com todo o meu coração. E, para isso, recebei esta súplica fervorosa que vos dirijo, junto com Santo Agostinho[3] e com todos os vossos verdadeiros amigos:
“Vós sois, ó Jesus, o Cristo, meu Pai santo, meu Deus misericordioso, meu Rei infinitamente grande; sois meu bom pastor, meu único mestre, meu auxílio cheio de bondade, meu bem-amado de uma beleza maravilhosa, meu pão vivo, meu sacerdote eterno, meu guia para a pátria, minha verdadeira luz, minha santa doçura, meu reto caminho, sapiência minha preclara, minha pura simplicidade, minha paz e concórdia; sois, enfim, toda a minha salvaguarda, minha herança preciosa, minha eterna salvação...
Ó Jesus Cristo, amável Senhor, por que, em toda a minha vida, amei, por que desejei outra coisa senão Vós? Onde estava eu quando não pensava em Vós? Ah! que, pelo menos, a partir deste momento meu coração só deseje a Vós e por Vós se abrase, Senhor Jesus! Desejos de minha alma, correi, que já bastante tardastes; apressai-vos para o fim a que aspirais; procurai em verdade aquele que procurais. Ó Jesus anátema seja quem não vos ama. Aquele que não vos ama seja repleto de amarguras. Ó doce Jesus, sede o amor, as delícias, a admiração de todo coração dignamente consagrado à vossa glória. Deus de meu coração e minha partilha, Jesus Cristo, que em Vós meu coração desfaleça, e sede Vós mesmo a minha vida. Acenda-se em minha alma a brasa ardente de vosso amor e se converta num incêndio todo divino, a arder para sempre no altar de meu coração; que inflame o íntimo do meu ser, e abrase o âmago de minha alma; para que no dia de minha morte eu apareça diante de vós, inteiramente consumido em vosso amor... Amém”.
Quis deixar essa oração admirável de Santo Agostinho no original, para que possam recitá-la assim. Que todos nós a rezemos todos os dias, pedindo o amor de Jesus, que queremos alcançar por meio da Santíssima Virgem.
____________________
1. As páginas eloquentes que seguem são tiradas quase exclusivamente da Sagrada Escritura. Cf., por exemplo, Ap 1,8; Cl 2,9; Mt 23,8.10; Jo 13,13; 1Cor 8,6; Cl 1,18; Jo 13,15; 10,16; 14.6; At 9,12; 1Cor 3,11; Mt 7,26-27; Jo 15,6; Rm 8,38-39; etc.
2. São Luís Maria escrevia numa época em que o jansenismo, adversário da devoção à Santíssima Virgem (cf. n. 93), contava adeptos entre homens de nomeada.
3. Meditationum lib. I, cap. XVIII, n. 2 (inter opera S. Augustini).

  Artigo II (68-77)

Pertencemos a Jesus Cristo e a Maria na qualidade de escravos

68. Segunda verdade. – Sabendo quem é Jesus para nós, entendemos que não pertencemos a nós mesmos, como diz o apóstolo (cf. 1Cor 6,19), mas sim a Ele, totalmente, como seus membros e seus escravos. Fomos comprados por um preço infinitamente caro: o seu preciosíssimo sangue. Antes de sermos batizados, pertencíamos ao demônio como escravos, mas o batismo nos tornou escravos de Jesus Cristo. Por isso, nossa vida, nosso trabalho e até nossa morte devem ser para dar frutos para o Deus feito homem (cf. Rm 7,4), glorificá-lo com nosso corpo e fazer com que Ele reine em nossa alma. Somos d’Ele, sua conquista, seu povo escolhido, sua herança. Por isso, o Espírito Santo nos compara[1]:

1º) a árvores plantadas junto às águas da graça, nos campos da Igreja, que devem dar seus frutos no tempo certo;

2º) aos galhos de uma videira da qual Jesus Cristo é o tronco, e que devem produzir boas uvas;

3º) a um rebanho, cujo pastor é Jesus, e esse rebanho deve se multiplicar e dar leite;

4º) a uma terra boa, que Deus cultiva, e na qual a semente deve render trinta, sessenta ou até cem vezes mais.

Jesus amaldiçoou a figueira que não deu frutos (cf. Mt 21,19) e declarou condenado o servo inútil que não fez render o talento que recebeu (cf. Mt 25,24-30). Tudo isso mostra que Jesus Cristo quer receber frutos mesmo de nossas pobres e limitadas vidas. Ele quer as nossas boas obras, porque essas obras pertencem a Ele e somente a Ele: “Fomos criados em Jesus Cristo para fazer o bem” (cf. Ef 2,10).
Essas palavras do Espírito Santo deixam claro que Jesus Cristo é o único objetivo de todas as nossas boas ações. E devemos servi-lo, não só como empregados que trabalham por um salário, mas como escravos de amor. E é isso que vou explicar agora.

***

69. Existem duas formas, aqui na terra, de uma pessoa pertencer a outra e estar sob sua autoridade. Essas formas são chamadas de servidão simples e escravidão. Por isso, há uma diferença entre ser servo e ser escravo.
Na servidão, que é algo comum entre os cristãos, a pessoa se coloca a serviço de alguém por um tempo determinado, em troca de um pagamento ou algum tipo de recompensa.
Já na escravidão, a pessoa pertence totalmente ao seu senhor por toda a vida, e deve servi-lo sem esperar nada em troca, nem salário, nem prêmio. O escravo está completamente nas mãos do seu dono, como se fosse um animal sobre o qual o senhor tem o direito até de vida e de morte.

70. Existem três tipos de escravidão[2]: por natureza, por obrigação e por livre vontade.
A escravidão por natureza significa que todas as criaturas pertencem a Deus, pois, como diz a Escritura: “Do Senhor é a terra e tudo o que nela existe” (cf. Sl 23,1).
A escravidão por obrigação é aquela dos demônios e dos condenados, que, mesmo não querendo, estão sujeitos ao poder de Deus.
Já os justos e os santos são escravos de Deus por livre vontade. A escravidão voluntária é a forma mais perfeita e gloriosa aos olhos de Deus, pois Ele olha para o coração (1Sm 16,7), deseja o nosso coração (Pr 23,26) e é chamado de “Deus do coração” (Sl 72,26), ou seja, o Deus que ama a nossa vontade amorosa. Quem escolhe servir a Deus por amor, mesmo sem ser obrigado, está fazendo a escolha mais valiosa que pode existir.

71. A diferença entre ser servo e ser escravo é muito grande:

1º) O servo não entrega tudo o que tem ao seu patrão. Ele pode guardar coisas para si e também pode ganhar algo por meio de seu próprio esforço. Já o escravo entrega tudo o que é e tudo o que tem ao seu senhor, sem deixar nada de fora.

2º) O servo espera receber um pagamento por seu trabalho. Já o escravo não tem direito de pedir recompensa nenhuma, mesmo que trabalhe com dedicação, inteligência e força.

3º) O servo pode decidir ir embora e deixar o patrão, seja quando quiser ou pelo menos quando terminar o tempo de serviço. O escravo, por outro lado, não pode fazer isso.

4º) O patrão não pode tirar a vida de um servo, porque isso seria assassinato. Mas, nas leis antigas, o senhor tinha poder de vida ou morte[3] sobre o escravo, podendo até vendê-lo ou tirá-lo de sua casa, como faria com um cavalo ou outro animal de carga (embora essa comparação seja apenas para explicar o grau de domínio, não o valor da pessoa).

5º) Por fim, o servo trabalha para seu patrão por um tempo limitado. O escravo pertence ao seu senhor para sempre.

***

72. Só a escravidão, entre os homens, faz com que uma pessoa pertença totalmente e dependa completamente de outra. Da mesma forma, não existe nada que nos una mais completamente a Jesus Cristo e à sua Mãe Santíssima do que a escravidão voluntária. Essa entrega total é o que Jesus mesmo fez por amor a nós, quando assumiu a condição de escravo: “Assumiu a forma de servo” (cf. Fl 2,7). Maria Santíssima também nos dá esse exemplo, pois disse: “Eis aqui a escrava do Senhor” (cf. Lc 1,38).
São Paulo, nas suas cartas, se orgulha de se chamar várias vezes de servo de Cristo[4]. A própria Bíblia, muitas vezes, chama os cristãos de servos de Cristo. E vale lembrar que, na época antiga, essa palavra servo queria dizer, de forma mais clara, escravo, já que não existiam os servos do jeito que conhecemos hoje[5]. Os ricos, naquela época, eram servidos por escravos ou por libertos.
Para que não reste nenhuma dúvida de que pertencemos a Jesus como seus escravos, o Concílio de Trento nos chama de forma clara de “mancipia Christi”, que quer dizer: escravos de Jesus Cristo[6]. Tendo isso em mente, podemos seguir em frente.

73. Eu digo que devemos pertencer a Jesus Cristo e servi-lo, não apenas como servos que esperam uma recompensa, mas como escravos por amor, que, por causa de um grande amor, se entregam totalmente a Ele, tendo como única honra o fato de pertencer a Jesus. Antes do batismo, éramos escravos do demônio. O batismo nos libertou dele e nos fez escravos de Jesus Cristo. Por isso, é importante entender: ou o cristão é escravo do demônio, ou é escravo de Jesus Cristo. Não existe um caminho do meio.

74. Tudo o que eu digo sobre Jesus Cristo, digo também sobre a Virgem Maria. Isso porque Jesus escolheu Maria para ser sua companheira inseparável: durante sua vida, na morte, na glória, e também em seu poder no céu e na terra. Ele deu a ela, por graça, os mesmos direitos e privilégios que Ele tem por natureza. Os santos dizem: “Tudo o que é próprio de Deus por natureza, pertence a Maria por graça”. Então, segundo esse ensinamento, como Jesus e Maria têm a mesma vontade e o mesmo poder, eles também têm os mesmos súditos, os mesmos servos e os mesmos escravos[7].

75. Por isso, podemos dizer, com base na opinião de muitos santos e estudiosos, que é bom nos tornarmos escravos da Santíssima Virgem, para assim sermos ainda mais perfeitamente escravos de Jesus Cristo[8]. Maria foi o meio que Nosso Senhor escolheu para vir até nós, e também deve ser o meio que usamos para ir até Ele[9].
Ela é muito diferente das outras criaturas. Quando nos apegamos a outras pessoas ou coisas, podemos acabar nos afastando de Deus. Mas com Maria é o contrário: a maior vontade dela é nos levar até Jesus, seu Filho. E a maior vontade de Jesus é que cheguemos até Ele por meio de sua Mãe.
Isso dá a Ele tanta honra e prazer quanto um rei sentiria ao ver alguém se tornar servo da rainha, para melhor servi-lo. É por isso que muitos Santos Padres, como São Boaventura, dizem que Maria é o caminho para chegar até Jesus: “O caminho para chegar a Cristo é aproximar-se de Maria.”[10]

76. Além disso, se a Santíssima Virgem é, como já foi dito (no n. 38), a rainha e soberana do céu e da terra — como afirmam Santo Anselmo, São Bernardo e São Boaventura: “Pelo poder de Deus tudo lhe está sujeito, e pelo poder da Virgem tudo está sujeito a ela, inclusive Deus”[11] — então não é justo dizer que ela tem como servos e escravos todas as criaturas?
Não seria natural que, entre tantos escravos por obrigação, existam também alguns que escolhem livremente, por amor, pertencer a ela? Afinal, os homens e até os demônios têm seus seguidores e escravos voluntários — e Maria não deveria tê-los também?
Seria uma desonra para um rei se a rainha, sua esposa, não tivesse também seus próprios súditos e servos, com autoridade sobre eles até a vida e a morte[13]. Isso porque a glória e o poder da rainha fazem parte da glória e do poder do rei. E será que Nosso Senhor, o melhor de todos os filhos, que deu à sua Mãe uma parte de todo o seu poder, ficaria descontente por ela ter escravos?[14] Ele teria menos amor e respeito por Maria do que Assuero teve por Ester, ou que Salomão teve por sua mãe Betsabé?
Quem teria coragem de afirmar ou até pensar uma coisa dessas?

77. Mas para onde estou indo com tudo isso? Por que estou perdendo tempo tentando provar algo que é tão claro? Se alguém não quiser se declarar escravo de Maria, que importa? Que essa pessoa, então, se faça e se diga escravo de Jesus Cristo. No fundo, é a mesma coisa que ser escravo da Santíssima Virgem, porque Jesus é o fruto bendito e a maior glória de Maria. E essa entrega a Jesus se realiza de forma perfeita por meio da devoção que vou explicar a seguir[15].
____________________
1. Cf. Sl 1,3; Jo 15,1; 10,11; Mt 13,3.8.
2. Cf. SANTO AGOSTINHO. “Expositio cantici Magnificat” (circa medium). • SANTO TOMÁS. Summa Theol. 3, q. 48, a. 4, corp. et resp. ad 1.
3. A lei natural, a lei mosaica e as leis modernas não reconhecem tal direito, a não ser por um mandato especial do soberano Senhor da vida e da morte. O bem-aventurado se coloca aqui simplesmente do ponto de vista do fato, conforme as leis civis dos países em que vigorava a escravidão (Cf. Secret de Marie, p. 34). Abstraindo da moralidade do ato, seu fito é mostrar, por um exemplo, a total dependência de que fala.
4. Cf. Rm 1,1; Gl 1,10; Fl 1,1; Tt 1,1.
5. BOUDON, Henri-Marie, arcediago d’Evreux, em seu livro: La sainte esclavage de l’admirable Mère de Dieu, cap. II.
6. Catec. Rom., parte I, cap. 3: De secundo Symboli articulo (in fine).
7. “Oportebat... Dei Matrem ea quae Filii essent possidere” (SÃO JOÃO DAMASCENO. Sermo 2 in Dormitione B.M.).
8. “Ita serviam Matri tuae, ut ex hoc ipse me probes servisse tibi” (SANTO ILDEFONSO. De virginitate perpetua B.M., cap. XII).
9. “Per ipsam Deus descendit ad terras, ut per ipsam homines ascendere mereantur ad caelos (SANTO AGOSTINHO. Sermo 113 in Nativit. Domini). • Cf. tb. SÃO BOAVENTURA. Expositio in Lc, cap. I, n. 38. Pio X, Encíclica “Ad diem ilium”.
10. Psalterium maius B.M., Sl 117.
11. “Ao poder de Deus tudo é submisso, até a Virgem; ao poder da Virgem tudo é submisso, até Deus”.
12. “Res quippe omnes conditas Filius Matri mancipavit”. (SÃO JOÃO DAMASCENO. Sermo 2 in Dormitione B.M. • “Ancilla Dominae Mariae est quaelibet anima fidelis, imo etiam Ecclesia universalis” (SÃO BOAVENTURA. Speculum B.M.V., lect. III § 5).
13. Cf. nota ao n. 71.
14. Christianorum memento, qui servi tui sunt. SÃO GERMANO DE CONSTANTINOPLA. Orat. hist. in Dormitione Deiparae.
15. Para explicação da doutrina exposta neste artigo II, cf. LHOUMEAU, A. “A vida espiritual do B.L.M. Grignion de Montfort”, la parte, cap. IV.

  Artigo III (78-82)

Devemos despojar-nos do que há de mau em nós

78. Terceira verdade. – As nossas melhores ações, muitas vezes, acabam sendo manchadas ou estragadas por causa do fundo de maldade que ainda existe dentro de nós. Imagine, por exemplo, jogar água limpa dentro de um copo sujo, que tem mau cheiro. Ou então colocar um vinho novo numa barrica que já estava azeda por causa de um vinho velho. A água ou o vinho bons acabam pegando o cheiro e o gosto ruim do recipiente. É isso que acontece conosco: quando Deus coloca em nossa alma, que ainda está manchada pelo pecado original e pelos pecados que cometemos, as suas graças e o seu amor, essas coisas tão santas acabam sendo prejudicadas por causa das marcas que o pecado deixou em nós.
Por isso, se queremos crescer na santidade — e só conseguimos isso nos unindo a Jesus Cristo — precisamos nos livrar de tudo o que há de mal dentro de nós. Se não fizermos isso, Nosso Senhor, que é absolutamente puro e não suporta nem mesmo a menor mancha na alma, vai se afastar de nós e não vai se unir a nós de verdade.

***

79. Para conseguirmos nos esvaziar de nós mesmos, primeiro precisamos nos conhecer de verdade. E esse conhecimento só é possível com a luz do Espírito Santo. É Ele quem nos mostra o quanto somos fracos, o quanto temos dificuldade para fazer o bem, o quanto somos inconstantes, o quanto não merecemos as graças de Deus e o quanto o pecado ainda habita em nós.
O pecado original — aquele dos nossos primeiros pais — nos estragou completamente. Ele nos deixou cheios de orgulho, inchados de vaidade e corrompidos por dentro, como o fermento que azeda a massa em que é colocado. E os pecados que cometemos ao longo da vida, sejam mortais ou veniais, mesmo os que já foram perdoados, aumentam em nós o desejo de pecar, nos tornam ainda mais fracos, instáveis e confusos. Eles deixam marcas ruins na nossa alma.
O nosso corpo está tão corrompido que a própria Bíblia o chama de "corpo do pecado" (cf. Rm 6,6; Sl 50,7). É um corpo concebido no pecado, alimentado no pecado, e que, sem a graça de Deus, só serve para o pecado. É um corpo sujeito a mil e mil males, que se estraga com o tempo, que adoece, que morre, e vira pó.
A nossa alma, por estar unida a esse corpo fraco, também foi prejudicada e ficou "carnal", como a própria Escritura diz: “Toda carne havia corrompido o seu caminho” (Gn 6,12). Ou seja, tudo em nós — corpo e alma — foi atingido. Nossa herança natural é: orgulho e confusão na mente, dureza no coração, fraqueza na alma, paixões descontroladas e doenças no corpo.
Se formos bem sinceros, vamos perceber que, sem a graça de Deus, somos naturalmente mais orgulhosos que os pavões, mais apegados às coisas materiais do que os sapos à lama, mais feios espiritualmente que os bodes, mais invejosos que as serpentes, mais comilões que os porcos, mais coléricos que os tigres e mais preguiçosos que as tartarugas. Somos mais frágeis que um galho seco e mais inconstantes que um catavento. No fundo, tudo o que há dentro de nós é vazio e pecado. E por isso, por nós mesmos, só mereceríamos a ira de Deus e o castigo eterno[1].

80. Depois de tudo isso, por que ficar surpreso ao ouvir Nosso Senhor dizer que, se quisermos segui-lo, precisamos renunciar a nós mesmos e até odiar a nossa própria alma? E que, quem ama a sua alma, vai perdê-la, mas quem a odeia vai salvá-la? (cf. Jo 12,25).
A Sabedoria infinita nunca manda nada sem um motivo justo. Só nos manda que nos odiemos porque, por causa do pecado, nos tornamos verdadeiramente indignos. Deus é o único que merece todo amor. Em comparação com Ele, não existe nada mais digno de ser rejeitado do que a nossa própria natureza corrompida.

81. Em segundo lugar, para nos esvaziarmos de nós mesmos, é necessário que morramos para nós todo dia. Isso significa renunciar às operações das faculdades da alma e dos sentidos do corpo; é como se víssemos sem ver, ouvíssemos sem ouvir e usássemos as coisas deste mundo como se não estivéssemos apegados a elas (cf. 1Cor 7,29‑31). São Paulo chama isso de “morrer todos os dias”: “Quotidie morior” (1Cor 15,31). Jesus também nos ensina isso quando diz que se um grão de trigo não morrer ao cair na terra, ele permanece só e não dá fruto: “Nisi granum frumenti cadens in terram mortuum fuerit, ipsum solum manet” (Jo 12,24–25).
Se não morrermos para nós mesmos — e se até as nossas devoções mais santas não nos levam a essa morte necessária e que traz vida — não daremos frutos que valem de verdade. Nossas devoções serão inúteis, e todas as obras boas que fizermos serão manchadas pelo nosso amor-próprio e nossa própria vontade. Deus rejeitará, mesmo, os melhores sacrifícios e ações que pudéssemos oferecer.
Na hora da nossa morte, teremos as mãos vazias de virtudes e méritos. Falhará em nós a menor chama do verdadeiro amor, aquele amor puro que só chega às almas que morrem para si mesmas—almas cuja vida está escondida com Jesus Cristo em Deus (cf. Cl 3,3).

82. Em terceiro lugar, é preciso escolher, entre todas as devoções à Santíssima Virgem, aquela que mais nos ajuda a nos esvaziar de nós mesmos, a este aniquilamento do próprio eu.
Essa será a devoção mais eficaz e que mais nos santifica. É importante entender que nem tudo o que brilha é ouro, nem tudo o que é doce é mel, e nem tudo o que é fácil de praticar é o mais santificante. Assim como a natureza tem seus segredos para realizar certas coisas rapidamente, com pouco esforço e de forma eficaz, também, na vida da graça, há segredos para alcançar resultados maravilhosos — como nos esvaziar de nós mesmos, nos encher de Deus e alcançar a perfeição — de maneira rápida, suave e simples.
A prática que vou apresentar é um desses segredos da graça. A maioria dos cristãos não a conhece, poucos devotos a conhecem, e ainda menos pessoas a praticam e a valorizam como deveriam. Antes de explicar essa prática, apresentarei uma quarta verdade, que se baseia diretamente nessa terceira.
____________________
1. São Luís Maria fala de nosso nada e de nossa impotência na ordem sobrenatural, sem o socorro da graça (Cf. com efeito, mais adiante o n. 83: Nosso íntimo..., tão corrompido, se nos apoiamos em nossos próprios trabalhos para chegar a Deus...).

  Artigo IV (83-86)

Temos necessidade de um medianeiro junto do próprio medianeiro que é Jesus Cristo

83. Quarta verdade. — É muito mais perfeito, e claro por ser mais humilde, escolher um intermediário para nos aproximarmos de Deus.
Se nos apoiarmos sobre nossos próprios esforços usando nosso talento, nossas habilidades ou preparações, para chegar a Deus e agradar-lhe, é certo que nossas ações justas, por mais bem intencionadas que tenham, ficarão manchadas e terão peso insignificante junto de Deus para movê-lo a unir-se a nós e nos atender por conta do nosso interior imperfeito. Deus, que vê bem o que há dentro de nós, nos criou e nos conhece profundamente. Ele sabe das nossas fragilidades e limitações, mas também nos ama tanto que providenciou intercessores poderosos — pessoas que podem nos acompanhar até Sua majestade.
Ignorar esses intermediários e tentar alcançar Deus sem esse auxílio seria faltar com o respeito a um Deus tão alto e santo. É como desprezar a recomendação de um amigo leal ao visitar um rei. Ninguém, em nosso mundo, se apresentaria a um grande príncipe sem ser apresentado por alguém que ele conheça. Isso não faria sentido. Portanto, usar esses intermediários não é dar um passo a mais do que Deus quis — é exatamente o que Ele mesmo preparou para o nosso bem.

84. Nosso Senhor é o nosso advogado e o mediador que nos salvou diante de Deus Pai. É por meio d’Ele que devemos rezar, com toda a Igreja — tanto os santos que estão no Céu (Igreja triunfante), quanto os fiéis que estão na Terra (Igreja militante).
Só conseguimos nos aproximar de Deus Pai por causa de Jesus, e nunca devemos nos apresentar diante da majestade de Deus confiando apenas em nós mesmos. Precisamos sempre estar “revestidos” dos méritos e da santidade de Jesus. É como na história de Jacó, que se cobriu com a pele de um cabrito para receber a bênção de seu pai Isaac — nós também precisamos “nos cobrir” com Jesus para sermos acolhidos por Deus Pai.

***

85. Mas será que nós precisamos mesmo de alguém que nos ajude a chegar até Jesus, se Ele já é nosso mediador junto do Pai? Será que temos pureza suficiente para ir direto até Ele, por conta própria? Jesus não é também Deus, igual ao Pai em tudo? Ele não é o Santo dos santos, merecedor do mesmo respeito e reverência?
Mesmo que Ele tenha se feito nosso mediador, por amor infinito, para pagar a nossa dívida com o Pai, isso não quer dizer que devamos tratá-lo com menos respeito ou temor por causa da sua grandeza e santidade.
Então, como disse São Bernardo[1], podemos afirmar sem medo: sim, precisamos de um mediador junto do Mediador por excelência. E quem pode exercer essa função admiráve? A Santíssima Virgem Maria. Foi por ela que Jesus veio a nós, e é por ela que devemos ir até Ele.
Se sentimos medo de ir diretamente a Jesus — seja porque Ele é tão grandioso, seja porque nós somos tão pequenos e pecadores —, então podemos recorrer com confiança à ajuda de Maria, nossa Mãe. Ela é boa, cheia de ternura, não tem nada de severa ou dura. Tudo nela é belo, puro, elevado. Contemplando-a, vemos uma imagem perfeita da nossa pura natureza.
Ela não é como o sol, que brilha forte e pode nos cegar com seu brilho. Ela é como a lua (Ct 6,9), que reflete a luz do sol suavemente, de um jeito que conseguimos olhar. Ela é tão cheia de amor que nunca rejeita ninguém que pede sua intercessão, ainda que seja um pecador — os santos dizem que nunca se ouviu falar, desde que o mundo é mundo, que alguém que recorreu a ela com confiança tenha sido abandonado[2].
E mais: Maria é tão poderosa, que tudo o que ela pede a Jesus, ela recebe. Basta se apresentar diante d’Ele, pedir, e Ele atende logo, com amor. Jesus nunca resiste aos pedidos de sua Mãe.

86. Tudo isso foi ensinado por São Bernardo e São Boaventura. Segundo esses santos, para chegarmos até Deus, precisamos subir três degraus.
O primeiro degrau, que está mais perto de nós e é o mais fácil de alcançar, é Maria. O segundo é Jesus Cristo. E o terceiro é Deus Pai[3].
Para irmos até Jesus, precisamos primeiro ir a Maria, porque ela é a mediadora que intercede por nós. E, para chegarmos ao Pai eterno, precisamos passar por Jesus, que é o nosso mediador da redenção.
A devoção que vou explicar mais à frente segue exatamente essa ordem: primeiro Maria, depois Jesus, e então o Pai. Essa é a forma certa de nos aproximarmos de Deus.
____________________
1. Sermo in Domin. inf. oct. Assumptionis, n. 2: “Opus est enim mediatore ad Mediatorem istum, nec alter nobis utilior quam Maria”. Todo este parágrafo é tirado deste sermão de São Bernardo.
2. Termina aqui a citação de São Bernardo. A frase seguinte é tirada de SÃO BOAVENTURA. Sermo 2 in B.V.M.
3. “Per Mariam ad Christum accedimus, et per Christum gratiam Spiritus Sancti invenimus” (SÃO BOAVENTURA. Speculum B.V., lect. VI, § 2). • Cf. tb. LEÃO XIII. Encíclica “Octobri mense”, 22-9-1891.

  Artigo V (87-89)

É muito difícil para nós conservar as graças e tesouros recebidos de Deus

87. Quinta verdade. – É extremamente difícil, por causa da nossa fraqueza e fragilidade, conservarmos dentro de nós as graças e os tesouros que Deus nos dá:
1º) Porque esse tesouro, mais valioso que o céu e a terra, está guardado em “vasos frágeis” — como diz São Paulo (2Cor 4,7) —, ou seja, no nosso corpo frágil e corruptível, e numa alma fraca e inconstante, que pode ser facilmente perturbada e abatida por qualquer coisa.

88. 2º) Os demônios são como ladrões muito espertos. Eles ficam o tempo todo à espreita, esperando uma oportunidade para nos atacar de surpresa, roubar e tirar de nós tudo o que conquistamos. Eles nos cercam dia e noite, prontos para nos devorar (cf. 1Pd 5,8). Basta um pecado para que, em um instante, nos tirem todas as graças e méritos que levamos anos para alcançar.
Devemos ter ainda mais cuidado porque os demônios são muito mais espertos, experientes, astutos e numerosos do que podemos imaginar. Já houve pessoas muito mais cheias da graça de Deus do que nós, mais virtuosas, mais sábias, mais santas... e mesmo assim foram enganadas, surpreendidas e perderam tudo. Quantos grandes santos — comparados aos cedros do Líbano e às estrelas do céu — já caíram miseravelmente, perdendo sua beleza e grandeza em pouco tempo!
Mas por que isso acontece? Não é porque Deus deixou de dar sua graça — Ele nunca deixa de dar. A culpa é da falta de humildade. Essas pessoas se achavam fortes e capazes de proteger sozinhas o que tinham. Confiavam demais em si mesmas. Pensavam que suas almas estavam seguras, que seus “cofres” eram fortes o suficiente para guardar os tesouros da graça. E, por causa dessa falsa confiança (que muitas vezes nem percebiam), Deus, que é justíssimo, abandonou-as às próprias forças, permitindo que fossem roubadas.
Ah! Se elas tivessem conhecido a devoção maravilhosa que vou explicar logo adiante, teriam confiado seus tesouros à Virgem Maria — poderosa e fiel — que os teria guardado com o maior cuidado, como se fossem dela mesma. E, por justiça, ela teria se comprometido a protegê-los.

89. 3º) É muito difícil continuar fazendo o bem por causa da corrupção do mundo. Hoje em dia, o mundo está tão corrompido que quase todos os corações bons acabam sendo manchados — se não pela sujeira mais profunda, ao menos pela poeira dessa corrupção. É um verdadeiro milagre ver alguém se manter firme em meio a essa correnteza forte, sem ser levado; resistir num mar tempestuoso sem ser afundado ou atacado por piratas; e permanecer puro nesse ar poluído, sem ser contaminado.
Esse milagre só é possível por causa da Virgem Maria — porque ela é a única fiel, aquela com quem a serpente nunca teve parte. É ela quem realiza esse milagre para aqueles que a servem com amor e fidelidade, protegendo-os no meio da corrupção do mundo.
4ª parte

  Capítulo III (90-91)

Escolha da verdadeira devoção à Santíssima Virgem

90. Depois de entender bem essas cinco verdades, é mais importante do que nunca escolher com atenção a verdadeira devoção à Virgem Maria. Isso porque, hoje em dia, existem muitas falsas devoções que se disfarçam de verdadeiras. O demônio, que é como um falsificador experiente e muito astuto, já enganou e perdeu muitas almas fazendo-as acreditar em uma devoção falsa à Nossa Senhora. Ele continua usando sua malícia para levar outras almas à perdição eterna, divertindo-as e mantendo-as no pecado com a desculpa de que fazem algumas orações mal rezadas ou seguem práticas exteriores sem o espírito certo.
Assim como um falsificador de moedas só perde tempo tentando imitar moedas de ouro e prata — e não moedas de metais baratos —, também o demônio foca em imitar e distorcer as devoções mais preciosas: à Jesus, à Eucaristia e à Virgem Maria. Ele sabe que essas devoções são como ouro e prata espiritualmente, por isso tenta corrompê-las com mais frequência.

91. Por isso, é muito importante, antes de tudo, conhecer bem quais são as falsas devoções à Santíssima Virgem, para que possamos evitá-las. E, ao mesmo tempo, conhecer qual é a verdadeira devoção, para que possamos segui-la com todo o coração. Além disso, entre as várias formas de praticar essa verdadeira devoção à Nossa Senhora, precisamos saber identificar qual é a mais perfeita, a que mais agrada a Maria, a que mais glorifica a Deus e a que mais nos ajuda a crescer na santidade — e é justamente essa que devemos escolher e seguir com firmeza.

  Artigo I

ARTIGO I - Os sinais da falsa e da verdadeira devoção à Santíssima Virgem

§ I. Os falsos devotos e as falsas devoções à Santíssima Virgem.

§ II. A verdadeira devoção à Santíssima Virgem.

  § I (92-104)

§ I. Os falsos devotos e as falsas devoções à Santíssima Virgem.

92. Eu conheço sete tipos de falsos devotos e falsas formas de devoção à Santíssima Virgem:
1º) os devotos críticos,
2º) os devotos escrupulosos,
3º) os devotos que se preocupam só com o exterior,
4º) os devotos presunçosos,
5º) os devotos inconstantes,
6º) os devotos hipócritas,
7º) os devotos interesseiros.

1°) Os devotos críticos

93. Os devotos críticos são, na maioria das vezes, pessoas orgulhosas, que se acham muito inteligentes e que confiam demais na própria razão. No fundo, até têm uma certa devoção à Santíssima Virgem, mas vivem criticando as práticas de devoção que os simples fazem com sinceridade e boa intenção para agradar a essa boa Mãe. Eles rejeitam essas práticas só porque não combinam com o jeito “intelectual” deles de ver as coisas.
Duvidam dos milagres e histórias contadas por autores sérios ou relatadas nas crônicas das ordens religiosas, mesmo quando falam das misericórdias e do poder de Nossa Senhora. Não gostam de ver pessoas humildes rezando de joelhos diante de um altar ou imagem de Maria, mesmo que seja num cantinho de rua. Chegam a acusá-las de idolatria, como se estivessem adorando a pedra ou a madeira da imagem.
Dizem que eles próprios não gostam dessas demonstrações exteriores de fé e que são racionais demais para acreditar nessas “histórias” atribuídas a Santíssima Virgem. Quando alguém cita os belos louvores que os Santos Padres fizeram à Santíssima Virgem, dizem que isso é só exagero, pura retórica, ou então deturpam o que foi dito, dando um sentido errado às palavras[1].
Esse tipo de falso devoto, orgulhoso e com mentalidade mundana, é muito perigoso. Eles fazem um grande mal à verdadeira devoção à Santíssima Virgem, afastando muitas pessoas dela sob a desculpa de combater exageros ou abusos.

2º) Os devotos escrupulosos

94. Os devotos escrupulosos são aqueles que, por medo de desonrar o Filho, resistem até a elogiar excessivamente sua Mãe. Eles ficam incomodados com os louvores justíssimos que os Santos Padres dedicaram a Maria; não suportam ver filas maiores de pessoas rezando aos pés dela do que diante do altar do Santíssimo Sacramento. Parecem pensar que rezar a Maria atrapalha a oração a Jesus — como se isso fosse um contraponto e não um caminho para Ele. Não querem que se fale tão frequentemente da Santíssima Virgem, nem que se recorra tantas vezes a ela.
Eles criticam: “Por que tantos terços, tantas confrarias, tantas devoções externas a Santíssima Virgem? Isso é ignorância! É transformar a religião numa palhaçada. Fale-me de devoção a Jesus Cristo — essa é a verdadeira devoção! Devemos recorrer a Ele, o único intermediário. Temos que pregar Jesus Cristo, isso sim é sólido!”
Em parte, têm razão; Jesus é o único mediador. Mas aplicar isso de uma forma tão radical pode ser uma armadilha perigosa, bem sutil do demônio, que se esconde atrás de algo que parece justo. Só se pode honrar mais a Jesus do que Maria quando a honra prestada a ela tem como objetivo exaltar ainda mais Cristo. Ela é o caminho que nos leva mais perfeitamente a Ele — e é assim que devemos vê-la e honrá-la.

95. A santa Igreja, assim como o Espírito Santo, começa louvando primeiro a Santíssima Virgem e depois a Jesus Cristo, quando diz: “Bendita sois vós entre as mulheres, e bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus.” Isso não quer dizer que Maria é maior ou igual a Jesus — isso seria uma heresia gravíssima. Mas sim que, para louvar Jesus de forma mais perfeita, é justo louvar primeiro a sua Mãe.
Por isso, junto com todos os verdadeiros devotos de Maria — e contra os falsos devotos escrupulosos — digamos com o coração:
Ó Maria, bendita sois vós entre todas as mulheres, e bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus!

3º) Os devotos exteriores

96. Os devotos exteriores são aqueles que acham que ser devoto da Santíssima Virgem se resume apenas a fazer coisas visíveis, do lado de fora, sem envolver o coração. Eles se interessam apenas pelas aparências da devoção porque não têm uma vida interior verdadeira. São pessoas que rezam o terço correndo, como se fosse uma obrigação; que assistem a muitas missas, mas sem prestar atenção no que está acontecendo; que participam de procissões, mas sem nenhuma devoção no coração; que entram em todas as confrarias, mas não mudam de vida, não lutam contra suas paixões e nem procuram imitar as virtudes de Nossa Senhora.
Esses devotos gostam só do que podem ver e sentir, e não se importam com o que é profundo e verdadeiro. Se uma prática de fé não os emociona, acham que ela não tem valor, ou então perdem o rumo e fazem tudo de forma confusa.
Infelizmente, o mundo está cheio desse tipo de devoto exterior. E, pior ainda, são justamente essas pessoas que mais criticam os verdadeiros devotos, aqueles que rezam com o coração, que buscam uma vida interior séria, sem deixar de lado o respeito e a modéstia no que é externo — como deve ser em toda devoção verdadeira.

4º) Os devotos presunçosos

97. Os devotos presunçosos são pessoas que vivem no pecado, entregues aos seus próprios desejos e paixões, ou que amam demais as coisas do mundo. Mesmo assim, gostam de se chamar cristãos e devotos da Santíssima Virgem. Com esse título bonito, escondem o orgulho, a avareza, a impureza, a bebedeira, a raiva, as blasfêmias, as fofocas, as injustiças e outros pecados. Continuam nesses pecados como se nada estivesse errado, sem lutar de verdade para mudar de vida. Acham que, por serem devotos de Maria, está tudo bem. Dizem a si mesmos que Deus vai perdoá-los, que não vão morrer sem se confessar, que não serão condenados, só porque rezam o terço, jejuam aos sábados, participam da confraria do Santo Rosário, usam o escapulário ou a cadeiazinha de Nossa Senhora.
Se alguém os alerta, dizendo que essa devoção é falsa e perigosa, que pode levá-los à perdição, eles não acreditam. Dizem que Deus é bom e misericordioso, que Ele não quer condenar ninguém, que todo mundo peca; que não vão morrer sem confissão; e que basta fazer um bom ato de arrependimento antes de morrer. Além disso, se apoiam na devoção a Maria, dizendo que usam o escapulário, que rezam todos os dias sete Pai-Nossos e sete Ave-Marias com humildade e fidelidade, que às vezes rezam o terço ou o ofício da Santíssima Virgem, que jejuam, e assim por diante.
Para se convencerem ainda mais de que estão certos, lembram histórias — verdadeiras ou não — que ouviram ou leram, dizendo que pessoas morreram em pecado mortal, sem se confessar, mas por terem feito algumas orações ou práticas de devoção a Maria durante a vida, ressuscitaram para se confessar ou ficaram vivas milagrosamente até se confessarem, ou ainda que, por misericórdia de Nossa Senhora, conseguiram se arrepender e foram salvas. Por isso, esperam que com eles aconteça a mesma coisa.

98. No cristianismo, não existe nada tão grave quanto essa falsa segurança inspirada pelo demônio. Como alguém pode dizer sinceramente que ama e honra a Santíssima Virgem, se continua pecando, ferindo, transpassando, crucificando e ofendendo cruelmente a Jesus Cristo, seu Filho? Se Maria decidisse salvar pessoas assim, seria como se ela aprovasse o pecado, ajudando a crucificar e ofender o próprio Filho. Quem teria coragem de pensar uma coisa dessas?

99. Afirmo que usar mal a devoção à Santíssima Virgem — que é a mais santa e segura depois da devoção a Nosso Senhor e ao Santíssimo Sacramento — é cometer um sacrilégio terrível. É um dos piores, quase imperdoável, ficando só atrás do sacrilégio de uma comunhão indigna.
Reconheço que, para ser de fato devoto da Santíssima Virgem, não é preciso ser santo a ponto de nunca mais pecar — embora esse seja o ideal. Mas é necessário, e prestem bem atenção no que vou dizer:
Primeiro, ter a decisão sincera de evitar pelo menos todo pecado mortal, pois ele ofende muito tanto a Mãe quanto o Filho.
Segundo, lutar contra si mesmo para não cair no pecado.
Terceiro, participar de confrarias, rezar o terço, o santo rosário ou outras orações, jejuar aos sábados e fazer outras práticas de devoção.

100. Isso é de grande ajuda para a conversão de um pecador, mesmo daqueles que parecem estar com o coração endurecido. E se quem estiver lendo isso se encontrar nessa situação, como se já tivesse um pé no abismo, eu recomendo que siga este conselho. Mas com uma condição: que pratique essas boas obras com a intenção de, por meio da intercessão da Santíssima Virgem, pedir a Deus a graça de se arrepender de verdade, de receber o perdão dos pecados e de vencer os maus hábitos. E não para continuar tranquilo no pecado, mesmo sentindo os remorsos da consciência, vendo o exemplo de Jesus Cristo e dos santos, e conhecendo os ensinamentos do santo Evangelho.

5º) Os devotos inconstantes

101. Os devotos inconstantes são aqueles que se dedicam à Santíssima Virgem de forma irregular, por períodos e por vontade própria. Um dia estão cheios de fervor, no outro já estão frios, tíbios. Num momento, parecem prontos para fazer qualquer coisa por Maria; logo depois, já mudaram completamente. Começam com entusiasmo todas as devoções a Maria, entram em todas as confrarias, mas, em pouco tempo, já não seguem mais as regras com fidelidade. Mudam como a lua[2], e Maria os coloca debaixo de seus pés como faz com a lua crescente, porque são instáveis e não são dignos de estar entre os servos dessa Virgem fiel, que tem como herança a fidelidade e a constância. É melhor não assumir muitas orações e práticas de devoção, e fazer poucas, mas com amor e fidelidade, enfrentando o mundo, o demônio e a carne.

6º) Os devotos hipócritas

102. Existem também os falsos devotos da Santíssima Virgem, que são os devotos hipócritas. Eles tentam esconder seus pecados e seus maus hábitos usando o manto dessa Virgem fiel, só para parecerem, diante dos outros, pessoas que na verdade não são.

7º) Os devotos interesseiros

103. Também existem os devotos interesseiros, que só procuram a Santíssima Virgem quando querem ganhar uma causa na justiça, escapar de algum perigo, se curar de uma doença ou resolver algum problema parecido. Se não fosse por isso, nem se lembrariam dela. Esses, como os anteriores, são falsos devotos, que não agradam a Deus nem à sua Mãe Santíssima.

***

104. Vamos, então, tomar cuidado para não fazer parte do grupo dos devotos críticos, que não acreditam em nada e vivem criticando tudo; dos devotos escrupulosos, que têm medo de serem muito devotos da Santíssima Virgem por acharem que isso desrespeita Jesus Cristo; dos devotos exteriores, que acham que toda a devoção se resume a práticas exteriores, visíveis; dos devotos presunçosos, que usam uma devoção falsa como desculpa para continuar no pecado; dos devotos inconstantes, que mudam ou abandonam suas práticas de devoção com facilidade, por qualquer tentação; dos devotos hipócritas, que entram em confrarias e usam símbolos da Santíssima Virgem só para parecerem bons; e, por fim, dos devotos interesseiros, que só procuram a Santíssima Virgem para resolver problemas do corpo ou conseguir bens materiais.
____________________
1. Não se pense que São Luís Maria exagere neste ponto. A época em que escrevia era a desses devotos críticos, que procuravam propagar entre os fiéis escritos venenosos, como o panfleto de Windenfelt, intitulado: “Avisos salutares da B.V. Maria a seus devotos indiscretos” (Cf. LHOUMEAU. “Vida espiritual”).
2. A lua, por suas variações, é tomada frequentemente pelos antigos autores místicos como o símbolo das mudanças da alma inconstante. • Cf. Eclo 27,12. SÃO BERNARDO. “Sermo super Signum Magnum”, n. 3.

  § II (105-114)

§ II. A verdadeira devoção à Santíssima Virgem.

105. Depois de conhecer e rejeitar as falsas devoções à Santíssima Virgem, é importante explicar, em poucas palavras, como é a verdadeira devoção. Ela deve ser: 1º) interior, 2º) terna, 3º) santa, 4º) constante, 5º) desinteressada.

1º) A verdadeira devoção é interior

106. Em primeiro lugar, a verdadeira devoção à Santíssima Virgem é interior. Isso quer dizer que nasce do coração e do espírito. Ela vem do valor que damos a Santíssima Virgem, da ideia elevada que temos de sua grandeza e do amor que consagramos a ela.

2º) A verdadeira devoção é terna

107. Em segundo lugar, a verdadeira devoção é terna. Isso quer dizer que é cheia de confiança na Santíssima Virgem, como a confiança que um filho tem em sua mãe. Essa devoção faz a alma procurar Maria em todas as necessidades, do corpo e da alma, com muita simplicidade, confiança e carinho. A pessoa pede ajuda à sua boa Mãe em todos os momentos, em todos os lugares e em tudo o que faz: quando tem dúvidas, pede luz; quando erra, pede correção; nas tentações, pede força; quando está fraca, pede coragem; quando cai, pede que a levante; quando se sente desanimada, pede ânimo; quando tem escrúpulos, pede para ficar livre deles; quando enfrenta cruzes, dificuldades e sofrimentos, pede consolo. Em todos os males, do corpo ou da alma, Maria é seu refúgio. E não há por que ter medo de incomodar essa boa Mãe ou de desagradar a Jesus Cristo por isso.

3º) A verdadeira devoção é santa

108. Terceiro, a verdadeira devoção à Santíssima Virgem é santa. Ela faz a alma evitar o pecado e procurar imitar as virtudes de Maria. As principais são: sua profunda humildade, sua oração constante, sua obediência total, sua fé viva, sua mortificação em tudo, sua pureza divina, sua caridade cheia de amor, sua paciência heroica, sua doçura angélica e sua sabedoria divina. Essas são as dez principais virtudes da Santíssima Virgem.

4º) A verdadeira devoção é constante

109. Em quarto lugar, a verdadeira devoção à Santíssima Virgem é constante. Ela ajuda a alma a se firmar no bem e a continuar com fidelidade nas suas práticas de devoção. Dá coragem para resistir ao mundo, com suas modas e ideias; à carne, com seus desejos e vontades desordenadas; e ao demônio, com suas tentações. Por isso, quem é realmente devoto de Maria não é instável, nem vive preso à tristeza, ao excesso de escrúpulos ou ao medo. Isso não quer dizer que nunca caia ou que sua devoção não mude um pouco com o tempo. Mas, se cair, levanta-se logo, pede ajuda à sua boa Mãe, e, se perder o gosto ou o sentimento da devoção, não se desespera. Porque o justo e verdadeiro devoto de Maria vive da fé em Jesus e Maria, e não se guia por sentimentos passageiros.

5º) A verdadeira devoção é desinteressada

110. A verdadeira devoção à Santíssima Virgem, por fim, é desinteressada. Ela faz a alma buscar, não a si mesma, mas unicamente a Deus, por meio de sua Mãe Santíssima. O verdadeiro devoto de Maria não a serve por interesse, nem por vantagens materiais ou espirituais, nesta vida ou na eterna. Ele a serve porque ela merece ser servida, e porque Deus está presente nela. Esse devoto não ama Maria só porque ela o ajuda ou porque espera algo dela, mas porque ela é digna de amor. É por isso que ele a ama e a serve, tanto nos momentos difíceis e secos, quanto nos tempos de consolo e fervor, sempre com a mesma fidelidade. Ele a ama nas dores do Calvário e também nas alegrias de Caná. Oh! Como esse devoto é agradável e precioso aos olhos de Deus e da Santíssima Virgem, porque não procura a si mesmo quando a serve. Mas, ao mesmo tempo, como é raro encontrar alguém assim nos dias de hoje. É justamente para que aumente o número desses devotos fiéis que eu resolvi escrever este tratado, ensinando o que venho anunciando há muitos anos, com bons frutos, nas minhas missões, tanto em público como em particular.

***

111. Já falei muitas coisas sobre a Santíssima Virgem. Mas ainda tenho mais a dizer, e deixarei de dizer infinitamente mais, seja por ignorância, por não ter capacidade ou por falta de tempo. Meu objetivo é formar um verdadeiro devoto de Maria e um verdadeiro discípulo de Jesus Cristo.

112. Oh! Como meu esforço teria valido a pena se este escrito, caindo nas mãos de uma alma bem-nascida — nascida de Deus e de Maria, e não do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem (cf. Jo 1,13) — pudesse, com a graça do Espírito Santo, revelar e inspirar a beleza e o valor da verdadeira e firme devoção à Santíssima Virgem, como vou explicar. Se eu soubesse que meu próprio sangue, mesmo sendo de um pecador, ajudaria a fazer essas verdades entrarem no coração de alguém, verdades que escrevo em honra da minha amada Mãe e Rainha, da qual sou o menor dos filhos e servos, eu o usaria no lugar da tinta para escrever estas palavras. Tenho esperança de que encontrarei almas boas que, sendo fiéis à prática que ensino, compensarão minha querida Mãe e Senhora por tudo o que minha ingratidão e infidelidade já lhe tiraram.

113. Sinto-me, agora mais do que nunca, cheio de confiança e esperança naquilo que está gravado bem fundo no meu coração, e que há muitos anos venho pedindo a Deus: que, mais cedo ou mais tarde, a Santíssima Virgem terá mais filhos, servidores e escravos[1] do que nunca se viu antes. E que, por meio dela, Jesus Cristo, meu amado Mestre, reinará completamente em todos os corações.

114. Vejo, no futuro, pessoas como feras enfurecidas, que se lançarão com raiva para destruir com seus dentes diabólicos este pequeno escrito e aquele por quem o Espírito Santo se serviu para escrevê-lo. Ou, pelo menos, tentarão escondê-lo nas trevas e no silêncio de um baú, para que ninguém o encontre. Também vão atacar e perseguir aqueles e aquelas que lerem este escrito e colocarem em prática o que ele ensina[2]. Mas não importa! Melhor ainda! Essa visão me anima e me dá esperança de um grande resultado: o surgimento de um grupo de corajosos e valentes soldados de Jesus e de Maria, homens e mulheres, para lutar contra o mundo, o demônio e a natureza corrompida, nos tempos difíceis que virão — como nunca se viu antes.
“Quem lê, entenda. Quem puder compreender, compreenda” (Mt 24,15; 19,12).
____________________
1. Note-se a associação destes dois termos: filho e escravo. A mesma aproximação foi feita pelo Catecismo do Concílio de Trento (p. I, cap. 3, “De secundo symboli articulo”, in fine).
2. Esta predição realizou-se ao pé da letra. Em todo o decorrer do século XVIII, os filhos de Montfort foram o alvo dos ataques dos jansenistas, em vista de seu zelo por esta devoção. E o precioso manuscrito, escondido durante as perturbações da Revolução Francesa, só foi encontrado em 1842 por um padre da Companhia de Maria, em um caixote de livros antigos.

  Artigo II (115-119)

As práticas da verdadeira devoção à Santíssima Virgem

§ I. As práticas comuns.

115. Existem muitas formas interiores de viver a verdadeira devoção à Santíssima Virgem. Aqui estão, de maneira resumida, as principais:

1. Honrá-la como a digna Mãe de Deus, com o culto especial chamado hiperdulia. Isso significa estimá-la e honrá-la mais do que a todos os outros santos, reconhecendo que ela é a obra-prima da graça e a mais importante depois de Jesus Cristo, que é verdadeiro Deus e verdadeiro homem.
2. Meditar sobre as virtudes, os privilégios e os atos da Santíssima Virgem.
3. Contemplar suas grandezas.
4. Fazer atos de amor, atos de louvor e de gratidão a ela.
5. Invocá-la com gentileza.
6. Oferecer-se e unir-se a ela.
7. Em tudo o que fizermos, ter a intenção de agradar a Maria.
8. Começar, continuar e terminar todas as nossas ações por meio dela, com ela, nela e para ela — para que tudo seja feito por Jesus Cristo, com Jesus Cristo, em Jesus Cristo e para Jesus Cristo, que é nosso fim último.

Mais à frente, essa última prática será explicada com mais detalhes (Cf. cap. VIII, art. II).

***

116. A verdadeira devoção à Santíssima Virgem também inclui muitas práticas exteriores. Aqui estão as mais importantes:

1º) Entrar em suas confrarias e aderir a suas congregações.
2º) Fazer parte de alguma ordem religiosa instituída em sua honra.
3º) Tornar públicos os seus louvores.
4º) Oferecer esmolas, jejuar e mortificar o espírito e o corpo em sua honra.
5º) Levar consigo sinais de devoção, como o rosário, o terço, o escapulário ou a cadeiazinha.
6º) Recitar com devoção, atenção e modéstia:
- O rosário de quinze dezenas de Ave-Marias, em honra aos quinze mistérios principais de Jesus Cristo;
- Ou o terço de cinco dezenas, contemplando:
 • os mistérios gozosos — a anunciação, a visitação, o nascimento de Jesus, a purificação e o encontro de Jesus no templo;
 • os mistérios dolorosos — a agonia de Jesus no Jardim das Oliveiras, sua flagelação, a coroação de espinhos, Jesus carregando a cruz e sua crucificação;
 • os mistérios gloriosos — a ressurreição de Jesus, sua ascensão, a descida do Espírito Santo, a assunção de Maria em corpo e alma ao céu e sua coroação pelas três pessoas da Santíssima Trindade.
- Também podem recitar:
 • Uma coroa de seis ou sete dezenas, em honra aos anos que se crê que Maria viveu na terra;
 • A coroinha da Santíssima Virgem, que tem três Pai-nossos e doze Ave-Marias, em honra de sua coroa de doze estrelas ou privilégios;
 • O ofício da Santíssima Virgem, usado pela Igreja;
 • O pequeno saltério de Maria, composto por São Boaventura, tão terno que quem o reza sente o coração aquecido;
 • Quatorze Pai-nossos e Ave-Marias pelas quatorze alegrias de Maria;
 • Outras orações, hinos e cânticos da Igreja, como “Salve Rainha”, “Alma”, “Ave Regina caelorum”, “Regina caeli”, “Ave, Maris Stella”, “O gloriosa Domina”, ou o “Magnificat”, além de outras orações e hinos dos devocionários.
7º) Cantar ou fazer cantar canções espirituais em sua honra.
8º) Fazer genuflexões ou reverências: por exemplo, todas as manhãs dizer sessenta ou cem vezes “Ave, Maria, Virgo Fidelis” para pedir fidelidade às graças do dia; à noite, dizer “Ave, Maria, Mater misericordiae” para pedir perdão pelos pecados do dia.
9º) Cuidar das suas confrarias, ornamentar seus altares, coroar e enfeitar suas imagens.
10º) Levar sua imagem em procissões ou carregá-la consigo como arma eficaz contra o demônio.
11º) Mandar fazer imagens ou placas com seu nome e colocá-las em igrejas, casas, portais ou entradas de cidades, igrejas e casas.
12º) Fazer uma consagração especial e solene a ela.

117. Existem muitas outras práticas da verdadeira devoção à Santíssima Virgem que o Espírito Santo inspirou a almas especialmente escolhidas, e que são muito eficazes para a santificação. Você pode encontrar uma explicação mais completa delas no livro Paraíso Aberto a Filágia, do Padre Paulo Barry, da Companhia de Jesus. Nesse livro, o autor reuniu diversas devoções que os santos praticavam em honra à Virgem Maria. Essas práticas são maravilhosas e realmente ajudam a santificar quem as faz, desde que sejam realizadas do jeito certo, ou seja:

1º) Com a intenção reta e sincera de agradar somente a Deus, unir-se a Jesus Cristo como nosso fim último e dar bom exemplo aos outros;
2º) Com atenção, evitando distrações voluntárias;
3º) Com devoção, sem pressa nem descuido;
4º) Com modéstia e respeito, mantendo uma postura reverente e edificante.

§ II. A prática perfeita.

118. Depois de ler quase todos os livros que falam sobre a devoção à Santíssima Virgem, e de conversar com as pessoas mais santas e sábias dos tempos recentes, posso dizer com toda certeza: não encontrei e nem aprendi nenhuma outra forma de devoção a Nossa Senhora que seja igual à que estou prestes a apresentar. Esta devoção é a que mais pede sacrifícios sinceros a Deus, a que melhor ajuda a pessoa a deixar de lado o egoísmo, a que mais conserva a graça de Deus na alma e mantém a alma firme nessa graça. É também a que mais une a alma a Jesus Cristo de maneira perfeita e fácil. Por fim, é a que mais glorifica a Deus, mais santifica quem a pratica e mais beneficia o próximo.

119. O mais importante desta devoção está no seu lado interior, no que ela transforma dentro da pessoa. Por causa disso, nem todo mundo vai conseguir entendê-la do mesmo jeito. Muitos vão parar nas práticas externas e não vão passar disso — e esses serão a maioria. Outros, em menor número, vão entrar um pouco mais fundo, mas só darão um passo. Quem vai conseguir dar o segundo? E quem vai subir até o terceiro? E, por fim, quem vai se identificar totalmente com essa devoção? Somente aquele a quem o Espírito de Jesus Cristo revelar esse segredo. É Ele quem vai conduzir a alma fiel por esse caminho, fazendo-a crescer cada vez mais de virtude em virtude, de graça em graça e de luz em luz, até que ela se transforme em Jesus Cristo, atinja a maturidade espiritual aqui na terra e a plenitude da glória no céu.
5ª parte

  Capítulo IV (120)

Da perfeita devoção à Santíssima Virgem ou a perfeita consagração a Jesus Cristo

120. A devoção mais perfeita é aquela que nos faz nos parecer mais com Jesus Cristo, que nos une mais a Ele e que nos consagra inteiramente a Ele. Afinal, toda a nossa santidade está em sermos unidos, consagrados e parecidos com Jesus. Ora, como Maria é a criatura que mais se parece com Jesus, é lógico que, entre todas as devoções, a que mais nos une a Nosso Senhor é justamente a devoção à Santíssima Virgem, sua Mãe. Quanto mais uma alma se consagra a Maria, mais estará consagrada a Jesus Cristo.

Por isso, a consagração perfeita a Jesus Cristo é, na verdade, uma entrega total e verdadeira à Santíssima Virgem. É isso que essa devoção ensina. Ou, dito de outro modo, é uma renovação completa das promessas que fizemos no nosso batismo.

  Artigo I (121-125)

Uma perfeita e inteira consagração de si mesmo à Santíssima Virgem

121. Esta devoção consiste, então, em se entregar inteiramente à Santíssima Virgem, para que, por meio dela, possamos pertencer inteiramente a Jesus Cristo[1]. Isso quer dizer que devemos dar a Maria:
1º) Nosso corpo, com todos os seus membros e sentidos;
2º) Nossa alma, com todas as suas capacidades;
3º) Nossos bens exteriores, que chamamos de fortuna — tanto os que já temos quanto os que ainda poderemos ter;
4º) Nossos bens interiores e espirituais, ou seja, nossos méritos, virtudes e boas obras do passado, do presente e do futuro.
Em resumo: devemos entregar tudo o que temos — tanto no que diz respeito à natureza quanto à graça — e tudo o que um dia ainda poderemos ter, na ordem da natureza, da graça e da glória. E isso sem guardar nada para nós mesmos, nem mesmo uma pequena moeda, um fio de cabelo ou uma boa ação por menor que seja. Fazemos isso para sempre, sem esperar qualquer recompensa por essa entrega e por esse serviço, a não ser a alegria e a honra de pertencermos a Jesus Cristo por meio dela e com ela — mesmo que essa doce Senhora não fosse, como na verdade sempre é, a mais generosa e reconhecida de todas as criaturas.

122. Aqui é importante entender duas coisas que existem nas boas obras que fazemos: a satisfação e o mérito — ou, em outras palavras, o valor satisfatório (ou impetratório) e o valor meritório.
O valor satisfatório ou impetratório é o que uma boa ação tem de bom por servir como reparação pelos nossos pecados, ou por conseguir de Deus alguma nova graça. Já o valor meritório ou mérito é o que essa boa ação tem de bom por merecer, para nós, a graça e a glória eterna.
Pois bem, nessa consagração total de nós mesmos à Santíssima Virgem, nós entregamos a ela todo esse valor: tanto o satisfatório quanto o impetratório e o meritório. Ou seja, entregamos a ela tudo o que nossas boas obras têm de valor: nossos méritos, nossas graças e nossas virtudes.
Não entregamos isso para que ela reparta nossos méritos com outras pessoas (porque, na verdade, nossos méritos, graças e virtudes, propriamente falando, não podem ser passados de uma pessoa para outra). Só Jesus Cristo, por ser nosso fiador diante do Pai, pôde nos dar os méritos dele.
O que fazemos, ao entregar tudo à Virgem Maria, é confiar a ela nossos méritos e satisfações para que ela os guarde, aumente e valorize ainda mais — como vamos explicar depois (ver n. 146 em diante). Também entregamos a ela as nossas satisfações para que ela possa oferecê-las a quem ela quiser, sempre para maior glória de Deus.
***

123. Disso tudo podemos entender o seguinte:
1º) Que por meio dessa devoção, entregamos a Jesus Cristo da forma mais perfeita possível — porque o fazemos pelas mãos de Maria — tudo o que podemos oferecer a Ele. E isso é muito mais do que o que damos em outras devoções, nas quais oferecemos apenas parte do nosso tempo, algumas boas obras, ou certas penitências e mortificações.
Aqui, nesta consagração, nós entregamos e consagramos tudo: até o direito de decidir o que fazer com os nossos bens interiores, e os méritos e satisfações que conquistamos com nossas boas ações, dia após dia. E essa entrega total não acontece nem mesmo em uma ordem religiosa.
Nas ordens religiosas, a pessoa consagra a Deus:
- seus bens materiais, por meio do voto de pobreza;
- seus bens do corpo, pelo voto de castidade;
- sua vontade própria, pelo voto de obediência;
e, às vezes, até a liberdade do corpo, pelo voto de clausura.
Mas mesmo assim, ela não entrega a liberdade ou o direito de dispor das suas boas obras. Também não renuncia, o quanto pode, aquilo que o cristão tem de mais precioso e valioso: seus méritos e satisfações.

124. Em segundo lugar, uma pessoa que se consagrou e se entregou voluntariamente a Jesus Cristo por meio de Maria, ela já não pode mais decidir o que fazer com o valor de suas boas ações. Tudo o que ela sofre, tudo o que ela pensa, diz ou faz de bom, pertence agora a Maria. É ela quem vai cuidar de tudo, usando essas boas obras da forma que quiser, sempre para fazer a vontade de Deus e para maior glória de seu Filho.
Mas é importante entender que essa entrega não atrapalha em nada as obrigações que a pessoa tem no seu estado de vida — tanto o que ela vive agora, como o que pode viver no futuro. Por exemplo, um sacerdote que, por dever de seu ministério ou por outro motivo, precisa aplicar o valor da Santa Missa por alguma pessoa em particular, deve continuar fazendo isso normalmente. Essa oferta feita a Maria sempre respeita a ordem de Deus e os deveres próprios de cada vocação.

125. Em terceiro lugar, essa consagração é feita ao mesmo tempo à Santíssima Virgem e a Jesus Cristo. À Santíssima Virgem, porque ela é o meio perfeito que Jesus escolheu para se unir a nós, e para que nós possamos nos unir a Ele. E a Nosso Senhor, porque Ele é o nosso fim último, ou seja, tudo o que somos e temos deve estar voltado para Ele, que é o nosso Redentor e o nosso Deus.
____________________
1. Cf. “Mentem, animam, corpus, nos ipsosque totos tibi consecramus” (SÃO JOÃO DAMASCENO. Sermo I in Dormitione B.V.).

  Artigo II (126-130)

Uma perfeita renovação dos votos do batismo

126. Como eu disse antes (cf. n. 120), essa devoção pode ser chamada, com toda razão, de uma renovação perfeita das promessas do nosso batismo. Todo cristão, antes de ser batizado, pertencia ao demônio, ou seja, era como um escravo dele. No momento do batismo, o cristão — por suas próprias palavras ou pelas palavras do padrinho e da madrinha — renunciou a Satanás, às suas tentações e ao pecado. E, ao mesmo tempo, escolheu Jesus Cristo como seu Mestre e soberano Senhor, comprometendo-se a viver para Ele como um servo por amor. É exatamente isso que fazemos com essa devoção: renunciamos (como está bem claro na fórmula de consagração) ao demônio, ao mundo, ao pecado e a nós mesmos, para nos entregarmos completamente a Jesus Cristo, pelas mãos de Maria. E fazemos ainda mais: no batismo, normalmente quem fala por nós são nossos padrinhos; é uma entrega feita por meio deles, como por procuração. Aqui, nesta devoção, somos nós mesmos que, livremente e com plena consciência, nos entregamos a Jesus Cristo.
No batismo, também, não entregamos a Jesus tudo pelas mãos de Maria de forma explícita, nem oferecemos a Ele o valor das nossas boas ações. Depois do batismo, ficamos inteiramente livres para escolher o que fazer com esse valor. Mas com essa devoção, entregamos a Jesus, pelas mãos de Maria, não apenas a nossa vida, mas também o valor de tudo de bom que fazemos.

127. No santo batismo, diz São Tomás de Aquino, a pessoa faz uma promessa (um voto) de renunciar ao demônio e às suas tentações: "No batismo, os homens fazem o voto de renunciar ao diabo e às suas pompas"[1]. E Santo Agostinho afirma que esse é o maior e mais necessário de todos os votos: "É o nosso maior voto, aquele em que prometemos permanecer fiéis a Cristo"[2]. Os especialistas em leis da Igreja dizem a mesma coisa: "O voto mais importante é o que fazemos no batismo." Mas agora pense: quem realmente cumpre esse grande voto? Quem continua fiel às promessas feitas no batismo? A verdade é que a maioria dos cristãos acaba sendo infiel ao que prometeu a Jesus naquele momento. E de onde vem tanta infidelidade? Isso acontece porque muitos esquecem o que prometeram no batismo. Poucos se lembram, e menos ainda renovam, de forma livre e pessoal, esse compromisso que foi feito com Deus por meio dos padrinhos.

128. Isso é tão verdadeiro que o Concílio de Sens, que foi convocado por ordem do rei Luís, o Piedoso, para tentar resolver as grandes desordens entre os cristãos, declarou o seguinte: a principal causa da corrupção que existia naquele tempo era o esquecimento e a ignorância dos compromissos feitos no santo batismo. E qual foi o melhor remédio que encontraram para esse problema tão grave? Levar os cristãos a renovar, de forma consciente, as promessas feitas no santo batismo.

129. O Catecismo do Concílio de Trento, que explica fielmente os ensinamentos desse santo Concílio, orienta os padres a fazerem a mesma coisa. Eles devem lembrar aos fiéis que pertencem e são consagrados a Nosso Senhor Jesus Cristo, como escravos que pertencem ao seu Redentor e Senhor. Veja as palavras exatas: “O pároco deverá incentivar o povo fiel a entender que é muito justo... entregarmo-nos e consagrarmo-nos para sempre ao nosso Redentor e Senhor, como escravos”[3].

130. Ora, se os Concílios, os Santos Padres e até a própria experiência mostram que o melhor jeito de corrigir os erros e desordens na vida dos cristãos é fazê-los lembrar das promessas feitas no batismo e renovar esses compromissos, não parece natural que isso seja feito hoje de uma maneira mais perfeita, por meio desta devoção e consagração a Nosso Senhor, com a ajuda de sua Mãe Santíssima? Digo “de um modo perfeito” porque, nessa consagração a Jesus Cristo, usamos o mais perfeito de todos os caminhos: a Santíssima Virgem.
____________________
1. Summa Theol. 2-2, q. 88, art. 2, arg. 1.
2. Epístola 59 ad Paulin.
3. Catec. Conc. Trid., p. I, cap. 3, art. 2, § 15, “De secundo Symboli articulo” in fine.

  Respostas a algumas objeções (131-134)

131. Não se pode dizer que essa devoção seja algo novo ou sem importância. Ela não é nova, porque os Concílios, os Padres da Igreja e muitos autores antigos e modernos já falavam sobre essa consagração a Nosso Senhor — ou renovação das promessas do batismo — como uma prática antiga, recomendada a todos os cristãos. Também não é uma prática sem importância, pois a principal causa das desordens na vida cristã e da condenação de muitas almas está justamente no esquecimento e na falta de interesse por essa renovação.

132. Algumas pessoas podem pensar que, ao dar a Nosso Senhor, pelas mãos de Maria Santíssima, o valor de todas as nossas boas obras, orações, sacrifícios e caridades, ficamos sem poder ajudar as almas dos nossos parentes, amigos e benfeitores.
A essas pessoas eu respondo, em primeiro lugar, que é difícil acreditar que nossos amigos, parentes ou benfeitores serão prejudicados por termos nos entregado completamente ao serviço de Nosso Senhor e de sua Mãe Santíssima. Pensar assim seria duvidar do poder e da bondade de Jesus e de Maria, que saberão muito bem como cuidar das pessoas queridas para nós, usando os nossos méritos ou por outros caminhos.
Em segundo lugar, essa prática não nos impede de rezar por outras pessoas, vivas ou falecidas, mesmo que a aplicação das nossas boas obras dependa da vontade da Santíssima Virgem. Na verdade, isso nos leva a rezar com ainda mais confiança — como faria uma pessoa rica que, tendo dado todos os seus bens a um grande rei, pedisse a ele ajuda para um amigo. Esse rei teria prazer em ajudar, justamente por gratidão a quem se doou por completo a ele. O mesmo acontece com Nosso Senhor e da Santíssima Virgem: eles nunca deixam de ser generosos e agradecidos com quem se entrega totalmente a eles.

***

133. Talvez alguém diga: “Se eu der à Santíssima Virgem todo o valor das minhas boas ações para que ela use como quiser, talvez eu tenha que passar muito tempo no purgatório.”
Mas essa ideia vem do egoísmo e da falta de confiança na generosidade de Deus e de sua Mãe Santíssima. Ela se desfaz sozinha quando pensamos melhor. Uma alma cheia de amor e generosidade, que coloca os interesses de Deus acima dos seus próprios, que entrega tudo a Ele sem guardar nada para si, que deseja, acima de tudo, a glória e o reinado de Jesus por meio de Maria, e que se entrega completamente para alcançar esse objetivo — essa alma, digo novamente, tão generosa e desprendida, será punida no outro mundo por ter sido mais generosa do que os outros?
Muito pelo contrário! É a essa alma que Nosso Senhor e sua Mãe Santíssima mostram maior generosidade, tanto neste mundo quanto no outro, tanto nas coisas naturais quanto nas graças e na glória eterna.

***

134. Vamos agora, de forma bem direta e simples, conhecer os motivos que nos levam a viver essa devoção, os efeitos maravilhosos que ela provoca nas almas fiéis, e também as práticas que fazem parte dessa devoção.
6ª parte

  Capítulo V

Motivos que nos recomendam esta devoção

ARTIGO I - Esta devoção nos põe inteiramente ao serviço de Deus

ARTIGO II - Esta devoção nos leva a imitar o exemplo dado por Jesus Cristo, e a praticar a humildade

ARTIGO III - Esta devoção nos proporciona as boas graças da Santíssima Virgem

ARTIGO IV - Esta devoção é um meio excelente de promover a maior glória de Deus

ARTIGO V - Esta devoção conduz à união com Nosso Senhor

ARTIGO VI - Esta devoção dá uma grande liberdade interior

ARTIGO VII - Nosso próximo aufere grandes bens desta devoção

ARTIGO VIII - Esta devoção é um meio admirável de perseverança

  Artigo primeiro (135-138)

Esta devoção nos põe inteiramente ao serviço de Deus

135. Primeiro motivo, que mostra o quanto essa consagração a Jesus Cristo pelas mãos de Maria é grandiosa:
Não existe, aqui na terra, missão mais importante do que servir a Deus. Mesmo o menor servo de Deus é mais rico, mais forte e mais nobre do que todos os reis e imperadores do mundo que não O servem. Agora, imagine a grandeza, a força e a dignidade de alguém que serve a Deus com todo o coração, sem guardar nada para si! Assim é o verdadeiro e amoroso escravo de Jesus e Maria: ele se entrega por completo, pelas mãos de Maria, ao serviço do Rei dos reis. Nenhuma riqueza da terra ou beleza do céu seria suficiente para recompensar tamanha entrega.

136. As outras congregações, associações e confrarias dedicadas a Nosso Senhor e à Nossa Senhora, que fazem muito bem no meio dos cristãos, geralmente não pedem que se entregue tudo sem nenhuma reserva. Elas pedem apenas algumas práticas e compromissos específicos aos seus membros, deixando-os livres para viver o restante da vida como quiserem.
Mas nesta devoção que estou apresentando, nós damos tudo, sem guardar nada para nós mesmos: entregamos a Jesus e a Maria todos os nossos pensamentos, palavras, ações, sofrimentos e todos os momentos da nossa vida. Isso quer dizer que, tanto quando estamos acordados como dormindo, comendo, bebendo, fazendo coisas importantes ou tarefas simples do dia a dia, podemos sempre dizer, com verdade, que tudo isso pertence a Jesus e a Maria, por causa da entrega total que fizemos — a não ser, é claro, que a gente cancele essa entrega de propósito. Que consolo maravilhoso é saber disso!

137. Além disso, como já foi dito, não existe outra prática como esta, que nos ajude tão bem a nos livrar daquele sentimento de “propriedade” que costuma aparecer até nas melhores ações.
Nosso bom Jesus nos dá essa graça especial como recompensa por termos feito um ato tão generoso e sem interesse pessoal: entregar a Ele, pelas mãos de sua Mãe Santíssima, todo o valor das nossas boas ações.
Ora, se mesmo neste mundo Jesus já promete dar cem vezes mais àqueles que deixam para trás os bens materiais por amor a Ele (como lemos em Mateus 19,20), imagine então o quanto Ele não dará àqueles que Lhe oferecem até mesmo os próprios tesouros espirituais!

138. Jesus, nosso amigo divino, entregou-se totalmente a nós: deu-nos seu corpo, sua alma, suas virtudes, suas graças e seus méritos.
São Bernardo diz: “Ele me conquistou por inteiro, porque se deu a mim por inteiro.” Por isso, a justiça e a gratidão pedem que também entreguemos a Ele tudo o que pudermos.
Foi Jesus quem primeiro foi generoso conosco. Então, sejamos também generosos com Ele, e veremos como Ele será ainda mais generoso conosco — durante esta vida, na hora da nossa morte e por toda a eternidade.
“Com o generoso, Deus será generoso.”

  Artigo II (139-143)

Esta devoção nos leva a imitar o exemplo dado por Jesus Cristo, e a praticar a humildade

139. Segundo motivo, que mostra como é justo e vantajoso para os cristãos se consagrarem totalmente à Santíssima Virgem, para assim pertencerem mais perfeitamente a Jesus Cristo.
Nosso bom Mestre, Jesus, não achou indigno de si mesmo estar no ventre de Maria, como um escravo por amor, como um servo obediente. Ele se submeteu a ela e lhe obedeceu por trinta anos. Isso, por si só, já é algo que nos faz pensar profundamente.
É realmente surpreendente imaginar que a Sabedoria eterna e divina preferiu vir ao mundo por meio da SS. Virgem, mesmo podendo vir de outra forma. Ele não quis aparecer já adulto, independente, mas escolheu vir como uma criança, totalmente dependente da sua Mãe Santíssima. Ele se deixou sustentar por ela, ser cuidado por ela.
Essa Sabedoria infinita, que ardia de amor para glorificar ao Pai e salvar a humanidade, não encontrou maneira mais perfeita e simples de fazer isso do que viver trinta anos obedecendo a Santíssima Virgem. E é importante notar que Jesus deu mais glória a Deus seu Pai durante esses trinta anos de vida escondida com Maria do que nos três últimos anos em que pregou, fez milagres e converteu multidões.
Então, que grande glória damos a Deus quando também nos submetemos a Maria, assim como Jesus fez!
Diante de um exemplo tão claro e conhecido por todos, será que vamos ser tolos a ponto de pensar que há um jeito melhor de glorificar a Deus do que seguir o exemplo de Jesus, submetendo-nos à Santíssima Virgem?

140. Vamos nos lembrar agora, para entender melhor a dependência que devemos ter com Maria, do que já foi explicado antes (nos números 14 a 39), especialmente dos exemplos que nos dão o Pai, o Filho e o Espírito Santo sobre essa dependência.
Deus Pai nos deu seu Filho unicamente por meio de Maria. Ele só gera outros filhos espirituais também por meio dela. E é somente por meio dela que Ele nos concede suas graças.
Deus Filho, Jesus, foi formado por Maria para salvar o mundo. E é por meio dela que Ele continua sendo formado todos os dias nos corações dos fiéis, em união com o Espírito Santo. É também através dela que Ele nos transmite suas virtudes e seus méritos.
O Espírito Santo formou Jesus em Maria e é por meio dela que Ele forma os membros do Corpo Místico de Cristo, ou seja, todos nós que somos batizados. Também é por meio dela que Ele distribui seus dons e bênçãos.
Diante de exemplos tão claros e fortes, como poderíamos, sem uma cegueira espiritual muito grande, ignorar Maria, deixar de nos consagrar a ela e de depender dela para irmos até Deus e nos oferecermos a Ele?

141. Aqui estão algumas passagens dos Santos Padres que escolhi para confirmar o que acabei de explicar:
“Maria tem dois filhos: um é o Deus feito homem, e o outro é um simples homem. De Jesus, Maria é Mãe no corpo; do outro, ela é Mãe na alma” (São Boaventura e Orígenes)[1].
“Essa é a vontade de Deus: Ele quis que recebêssemos tudo por meio de Maria. Por isso, se temos alguma esperança, alguma graça ou algum dom que nos salva, devemos saber que tudo isso vem pelas mãos dela” (São Bernardo)[2].
“Todos os dons, virtudes e graças do Espírito Santo são distribuídos pelas mãos de Maria. Ela os entrega a quem quer, quando quer, como quer e na medida que quiser” (São Bernardino)[3].
“Você não era digno de receber diretamente as graças de Deus. Por isso, essas graças foram entregues a Maria, para que, por meio dela, você pudesse receber tudo o que precisava” (São Bernardo)[4].

142. Deus, ao perceber que somos indignos de receber diretamente as graças de suas mãos divinas, escolheu entregá-las a Maria. Assim, podemos recebê-las por meio dela. E isso também é uma forma de dar mais glória a Ele, pois quando recebemos algo de Deus por Maria, também é por Maria que devolvemos a Ele nosso reconhecimento, respeito e amor por tudo o que Ele nos dá.
Por isso, é muito justo que façamos como Deus faz. São Bernardo[5] diz que a graça deve voltar a quem a deu pelo mesmo caminho por onde veio.
E é isso que fazemos com essa devoção: nós oferecemos e consagramos à Santíssima Virgem tudo o que somos e tudo o que temos, para que Nosso Senhor receba, por meio dela, toda a glória e gratidão que Lhe devemos. Sabemos que somos indignos e incapazes de nos aproximar de sua majestade infinita, Jesus, por conta própria, então pedimos ajuda à intercessão de Santíssima Virgem.

143. Além disso, essa devoção é uma prática que nos ajuda a viver a humildade — uma virtude que Deus ama mais do que qualquer outra.
Quando uma pessoa se acha superior ou se envaidece, ela acaba diminuindo a grandeza de Deus em seu coração. Por isso, a Bíblia diz que Deus resiste aos orgulhosos, mas dá sua graça aos humildes (Tg 4,6). Se você se reconhece pequeno, se sente indigno de chegar até Deus por conta própria, então Deus se inclina até você, se aproxima e se alegra com a sua humildade — e Ele mesmo é quem te eleva.
Mas, quando alguém tenta se aproximar de Deus de forma orgulhosa, como se não precisasse de ajuda, Deus se afasta. E a pessoa não consegue verdadeiramente encontrá-lo. Deus ama os corações humildes!
É exatamente isso que essa devoção nos ensina. Ela nos mostra que não devemos nos aproximar de Nosso Senhor diretamente, mesmo Ele sendo cheio de misericórdia e bondade, mas que devemos sempre contar com a ajuda da Santíssima Virgem — para chegar até Deus, para falar com Ele, para oferecer algo a Ele, ou até mesmo para nos unirmos e nos consagrarmos a Ele.
____________________
1. Speculum B.M.V., lect. III, § 1, 2º.
2. SÃO BERNARDO. De Aquaeductu, n. 6.
3. SÃO BERNARDINO DE SENA. Sermo in Nativ. B.V. art. un., cap. 8.
4. SÃO BERNARDO. Sermo 3 in vigilia Nativitatis Domini, n. 10.
5. “De Aquaeductu”, n. 18.

  Artigo III (144-150)

Esta devoção nos proporciona as boas graças da Santíssima Virgem

§ I. Maria se entrega àqueles que se tornam seus escravos por amor.

144. Terceiro motivo. A Santíssima Virgem, Mãe cheia de doçura e misericórdia, que nunca deixa de amar e de dar, quando vê alguém que se entrega por completo a ela — para honrá-la, servi-la e doar o que tem de mais precioso para reverenciá-la —, também se entrega inteira e de um modo indescritível àquele que tudo lhe dá. Ela o conduz aos mais profundos abismos de suas graças, o reveste com seus méritos, lhe oferece o apoio de seu poder, o ilumina com sua luz, inflama-o com seu amor, comunica-lhe suas virtudes — humildade, fé, pureza, etc. — e torna-se seu penhor, seu complemento, seu “tudo” com relação a Jesus.
E como essa pessoa consagrada pertence totalmente a Maria, Maria também pertence totalmente dela. Assim, podemos dizer desse servo perfeito e filho de Maria o que São João Evangelista disse a si mesmo, que a tomou como um bem para sua vida: “O discípulo a recebeu em sua casa” (Jo 19,27).

145. Isso faz com que na alma fiel surjam três atitudes importantes: desconfiança de si mesma, desprezo por si mesma e ódio ao que ela era antes; junto a isso, uma confiança sem limites na Santíssima Virgem, sua boa Senhora. Ela já não se apoia nas suas próprias razões, intenções, méritos, virtudes ou boas obras, porque tudo isso foi entregue a Jesus por meio desta boa Mãe. Agora, o único tesouro que ela mantém — e que Jesus não tem para dispor — é Maria.
Isso faz com que ela se aproxime de Nosso Senhor sem medo servil ou escrupuloso, e que ela reze com confiança plena. Isso a leva a adquirir os sentimentos do devoto e sábio abade Ruperto, que, fazendo referência à vitória de Jacob, em uma luta com um anjo (cf. Gn 32,24), dirige à Santíssima Virgem estas belas palavras:
“Ó Maria, minha princesa e Mãe Imaculada de Deus‑homem, Jesus Cristo, desejo lutar com esse Homem, isto é, o Verbo divino, armado não dos meus méritos, mas dos teus”[1].
Oh! Quão poderoso e forte é, para Jesus Cristo, quem está armado com os méritos e intercessão da digna Mãe de Deus, que, como diz Santo Agostinho, venceu amorosamente o Todo‑poderoso.

§ II. Maria purifica nossas boas obras, embeleza-as e as torna agradáveis a seu Filho.

146. Essa Senhora tão bondosa purifica, embeleza e torna agradáveis ao seu Filho todas as nossas boas ações, porque, através desta devoção, entregamos tudo a Ele pelas mãos de sua Mãe Santíssima.
1º) Ela purifica nossas boas obras de qualquer mancha de orgulho ou de apego a pessoas ou coisas deste mundo — sentimentos que, mesmo sem percebermos, podem se misturar até nas ações mais santas. Quando nossas obras passam por suas mãos tão puras e cheias de frutos, essas mesmas mãos — que nunca foram manchadas pelo pecado e que nunca deixaram de fazer o bem — retiram de nossos presentes tudo aquilo que possa estragar ou diminuir seu valor diante de Deus.

147. 2º) Ela embeleza nossas boas ações, cobrindo-as com seus próprios méritos e virtudes. É como se um camponês, querendo conquistar a amizade do rei, fosse até a rainha e lhe entregasse uma simples maçã — tudo o que ele tinha — pedindo que ela a oferecesse ao rei em seu nome. A rainha, aceitando com carinho aquele presente humilde, colocasse a maçã no centro de uma bandeja grande e maravilhosa, feita de ouro, e a levasse assim até o rei, dizendo que era um presente do camponês. Nessa situação, mesmo que a maçã, por si só, não fosse digna de ser oferecida ao rei, ela se tornaria um presente digno da realeza por estar numa bandeja tão rica e, ainda mais, por ser apresentada pela própria rainha.

148. 3º) Ela apresenta essas boas obras a Jesus Cristo, porque não guarda nada para si daquilo que oferecemos. Tudo o que entregamos a Maria, ela passa fielmente a Jesus. Quando damos algo a ela, estamos, na verdade, dando a Jesus. Se louvamos e glorificamos Maria, ela imediatamente se volta para louvar e glorificar Jesus. Assim como fez no passado, quando Santa Isabel a exaltou, ela ainda hoje responde com as mesmas palavras: “A minha alma engrandece o Senhor...” (Lc 1,46).

149. 4º) Maria faz com que Jesus aceite nossas boas ações, mesmo que o presente que damos ao Rei dos reis e Santo dos santos seja simples e pequeno. Quando tentamos oferecer algo a Jesus por conta própria, confiando apenas em nossas forças e intenções, Ele examina bem o que estamos dando. Muitas vezes, rejeita o presente porque percebe que está manchado pelo nosso orgulho ou egoísmo — do mesmo jeito que rejeitou os sacrifícios dos judeus, pois vinham cheios de vontades próprias. Mas, quando apresentamos algo a Jesus pelas mãos puras e cheias de amor de sua Mãe amada, tocamos o seu coração de forma especial, se assim podemos dizer. Ele não olha tanto o presente em si, mas sim quem está levando o presente até Ele. E como Maria sempre foi bem recebida pela Majestade divina, Jesus, e nunca rejeitada, tudo o que ela apresenta é bem aceito, seja pequeno ou grande. Basta que seja Maria quem leva, para que Jesus receba com alegria. É por isso que São Bernardo dava este conselho precioso aos que queriam crescer na santidade: “Se quiserdes oferecer algo a Deus, cuidai de fazê-lo pelas mãos agradáveis e dignas de Maria, senão correis o risco de ser rejeitados”[2].

150. Como já vimos (n. 146), a própria natureza ensina os pequenos como devem se comportar diante dos grandes. Então, por que a graça de Deus não nos levaria a fazer o mesmo em relação a Ele, que está infinitamente acima de nós e diante de quem somos menos que um grão de poeira? E mais: temos uma advogada tão poderosa, que nunca foi rejeitada por Deus; tão sábia, que conhece os caminhos do Coração divino; e tão boa e cheia de amor, que nunca se afasta de ninguém, mesmo que a pessoa seja fraca ou pecadora.
Mais à frente, explicarei melhor essas verdades usando a história de Jacó e Rebeca (ver capítulo VI).
____________________
1. Rup., Prolog. in Cant.
2. São Bernardo: “De Aquaeductu”.

  Artigo IV (151)

Esta devoção é um meio excelente de promover a maior glória de Deus

151. Quarto motivo. Esta devoção, quando praticada fielmente, é um excelente meio para fazer com que todas as nossas boas obras contribuam para a maior glória de Deus. Quase ninguém age com esse nobre objetivo, apesar de sermos obrigados a isso — ou porque não entendem o que é a maior glória de Deus, ou porque não querem buscá-la. Mas a Santíssima Virgem, à qual entregamos o valor das nossas boas obras, sabe perfeitamente o que constitui a maior glória de Deus, e nada faz sem que isso seja o fim. Por isso, um servo perfeito dessa amável Soberana, que se consagrou completamente a ela, como dissemos, pode afirmar com confiança que o valor de todos os seus atos, pensamentos e palavras serve para a maior glória de Deus — salvo se ele mesmo retificar de outra forma a intenção da oferta. Existe algo mais consolador para uma alma que ama a Deus de forma pura e sem interesse, e que dá mais valor à glória e aos interesses de Deus do que aos seus próprios?

  Artigo V (152-168)

Esta devoção conduz à união com Nosso Senhor

152. Quinto motivo. Esta devoção é um caminho fácil, rápido, perfeito e seguro para chegarmos à união com Nosso Senhor — e é justamente essa união que é a perfeição da vida cristã.

§ I. Esta devoção é um caminho fácil.

É um caminho fácil. Foi o próprio Jesus Cristo quem o abriu quando veio até nós, e nele não há nada que nos impeça de chegar a Ele. Claro, existem outros caminhos pelos quais também se pode chegar a Jesus, mas nesses caminhos há muito mais dificuldades, cruzes pesadas, sofrimentos e obstáculos difíceis de superar. Neles, é comum passar por momentos de escuridão, lutas internas, sofrimentos profundos, subidas muito difíceis e até atravessar desertos espirituais.
Já no caminho de Maria, a caminhada é muito mais suave e tranquila. Ainda que também existam batalhas e desafios a enfrentar, essa boa Mãe está sempre perto de seus fiéis servos. Ela os ilumina nas horas de escuridão, os orienta quando têm dúvidas, os fortalece quando sentem medo, e os sustenta quando enfrentam lutas e dificuldades. Por isso, esse caminho, conduzido por Maria, é como um caminho florido e doce, cheio de graças, quando comparado aos outros.
Alguns santos — poucos, como Santo Efrém, São João Damasceno, São Bernardo, São Bernardino, São Boaventura, São Francisco de Sales, entre outros — percorreram esse caminho mais suave até Jesus, porque o Espírito Santo, que é o fiel esposo de Maria, lhes mostrou essa via por uma graça especial. A maioria dos outros santos, mesmo tendo devoção à Santíssima Virgem, não trilharam tão profundamente esse caminho, e por isso enfrentaram provações mais duras e perigos maiores.

***

153. Então alguém pode perguntar com sinceridade — “Por que será que, servindo fielmente esta boa Mãe, nós enfrentamos tantas situações difíceis, às vezes até mais do que aqueles que não são devotos dela? Por que somos contraditos, perseguidos, caluniados, não aceitos[1]? Ou por que andamos em trevas interiores, numa aridez tão grande como se estivéssemos no deserto, onde não cai nem uma gota de orvalho celestial? Se essa devoção torna mais fácil o caminho para Jesus Cristo, de onde vem que sejamos tão desprezados?”

154. Eu respondo: é verdade sim que os servos mais fiéis da Santíssima Virgem, justamente por serem muito amados por ela, recebem dela as maiores graças e bênçãos do céu — e isso inclui as cruzes. Mas também afirmo que são esses mesmos servos de Maria que conseguem carregar essas cruzes com mais facilidade, com mais mérito e com mais glória. E mais: enquanto outros parariam ou até cairiam mil vezes no meio do caminho, esses continuam firmes e até avançam, porque essa boa Mãe, cheia da graça e da unção do Espírito Santo, adoça todas as cruzes que ela mesma prepara para eles. Ela as mergulha no mel do seu carinho materno e no amor mais puro. Assim, eles conseguem carregá-las com alegria — como se fossem nozes cobertas de açúcar, mesmo sendo naturalmente amargas.
Acredito que alguém que queira de verdade ser devoto e viver uma vida santa em Jesus Cristo — e que, por isso, precisa enfrentar perseguições e carregar a sua cruz todos os dias — nunca vai conseguir carregar cruzes pesadas, ou carregá-las com alegria até o fim, sem ter uma verdadeira devoção à Santíssima Virgem. Porque é ela quem adoça essas cruzes. Seria como tentar comer nozes verdes, muito amargas, sem açúcar: só com muita força de vontade, e mesmo assim não por muito tempo.

§ II. Esta devoção é um caminho rápido.

155. Esta devoção à Santíssima Virgem é um caminho rápido[2] para encontrar Jesus Cristo. Primeiro, porque quem anda por ele não se perde. Segundo, porque, como já expliquei, quem segue por esse caminho anda com mais alegria e facilidade, e por isso chega mais rápido. Avançamos muito mais em pouco tempo, sendo submissos e obedientes a Maria, do que em vários anos confiando só na própria força e fazendo a própria vontade. Quem se entrega a Maria com confiança e obediência vencerá grandes batalhas contra os inimigos da alma, como está escrito: “O homem obediente cantará vitórias” (Provérbios 21,28). Os inimigos vão tentar impedir essa pessoa de prosseguir, fazê-la recuar ou até derrubá-la. Mas, com o apoio, a ajuda e a orientação de Maria, ela continuará firme, sem cair, sem recuar e sem se atrasar. Pelo contrário, ela avançará com passos largos, como um gigante, na direção de Jesus Cristo. Será pelo mesmo caminho que Jesus tomou para vir até nós, como diz o Salmo 18,6: um caminho rápido e direto.

156. Por que será que Jesus Cristo viveu tão pouco tempo na Terra, e por que a maior parte desses anos viveu em submissão e obediência à sua Mãe? Ah! É porque, mesmo tendo vivido pouco, Ele preencheu sua vida como se tivesse vivido muito tempo — “encheu a carreira de uma longa vida” (Sb 4,13). Ele viveu abundantemente — mais que Adão, do qual veio reparar as perdas, embora este tenha vivido mais de novecentos anos — porque viveu completamente submisso e unido à sua Mãe Santíssima, para obedecer a Deus, seu Pai. Pois bem:
1º) “Quem honra a mãe, assemelha-se a quem acumula tesouros,” diz o Espírito Santo. Ou seja, quem honra Maria, sua Mãe, submetendo-se a ela e obedecendo-a em tudo, logo se torna rico em graças, porque guarda tesouros espirituais todos os dias (Eclo 3,5). 2º) E porque, segundo uma interpretação espiritual da palavra do Espírito Santo: “Minha velhice está na misericórdia do seu seio” (Sl 91,11), é no seio de Maria — que gerou o Homem‑Perfeito (cf. Jr 31,22), que “teve a capacidade de conter aquele que o universo todo não compreende nem contém”[3] — que os jovens amadurecem em luz, santidade, experiência e sabedoria; e onde, em poucos anos, se pode alcançar a plenitude da idade de Jesus Cristo.

§ III. Esta devoção é um caminho perfeito.

157. Essa devoção à Santíssima Virgem é um caminho perfeito para chegar e se unir a Jesus Cristo, porque Maria é a mais perfeita e a mais santa de todas as criaturas. Jesus, que é Deus e quis vir até nós de forma perfeita, escolheu Maria como o caminho para essa grande e maravilhosa vinda. O Deus Altíssimo, que está além de tudo, tão grande que é impossível de compreender e alcançar, quis vir até nós, que somos pequenos como vermes da terra, quase nada. E como Ele fez isso? O Altíssimo desceu até nós de forma perfeita e santa, passando pela humilde Maria, sem perder nada de sua divindade e santidade. Do mesmo modo, é por meio de Maria que nós, pequenos e fracos, devemos subir até Deus, sem medo de nada. O Deus que não pode ser contido, se deixou conter perfeitamente por Maria, sem deixar de ser imenso. Por isso, nós também devemos deixar que Maria nos guie e nos sustente totalmente, sem guardar nada só para nós. Aquele que ninguém podia se aproximar, quis se aproximar, se unir perfeitamente e até pessoalmente à nossa humanidade, por meio de Maria, e não perdeu nada de sua majestade divina. Assim também nós devemos nos aproximar de Deus e nos unir a Ele perfeitamente, sem medo de sermos rejeitados, se for por Maria. Aquele que é tudo quis vir até nós que não somos nada, e nos transformar em algo divino — para que nós, que nada somos, nos tornemos participantes da graça e da glória de Deus. Ele fez isso perfeitamente ao se entregar e se submeter inteiramente à Virgem Maria, sem deixar de ser, no tempo, o mesmo Deus eterno. Da mesma forma, é por meio de Maria que nós, sendo nada, podemos nos tornar semelhantes a Deus, se nos entregarmos totalmente a ela, de tal forma que não sejamos mais nós mesmos, mas tudo nela — sem medo de estarmos errando ao fazer isso.

158. Mesmo que alguém me mostrasse um novo caminho para chegar até Jesus Cristo, um caminho todo feito com os méritos dos santos do céu, enfeitado com as virtudes mais heroicas deles, iluminado com a luz e a beleza dos anjos, e que todos os anjos e santos estivessem ali para guiar, proteger e apoiar quem quisesse seguir por ele, eu digo — e digo com coragem e certeza — que ainda assim preferiria o caminho puro de Maria: “Posui immaculatam viam meam” (Salmo 18,33), ou seja, “escolhi um caminho imaculado”. Esse é um caminho sem nenhuma mancha, sem pecado original nem pessoal, sem escuridão ou sombra. Quando Jesus, nosso amado Senhor, vier uma segunda vez em glória para reinar sobre a terra — o que com certeza vai acontecer — Ele escolherá o mesmo caminho por onde veio da primeira vez: Maria Santíssima. A diferença entre a primeira vinda e a segunda é que a primeira foi escondida e silenciosa, enquanto a segunda será cheia de glória e majestade. Mas ambas serão perfeitas, porque nas duas Ele virá por meio de Maria.
Esse é um mistério tão profundo que as palavras humanas não conseguem explicar: “Aqui, toda língua deve silenciar.”

§ IV. Esta devoção é um caminho seguro.

159. Esta devoção à Santíssima Virgem é um caminho seguro para irmos a Jesus Cristo e alcançarmos a perfeição, unindo-nos a Ele:
1º) Porque essa prática que estou ensinando não é algo novo. É tão antiga que, como diz Boudon[4], em um livro que escreveu sobre essa devoção, não dá para saber exatamente quando começou. O que sabemos com certeza é que ela já era praticada na Igreja há mais de 700 anos[5].
Santo Odilon, abade de Cluni, que viveu por volta do ano 1040, foi um dos primeiros a praticá-la na França, como está escrito em sua biografia.
O Cardeal Pedro Damião[6] conta que, no ano 1016, o bem-aventurado Marinho, seu irmão, se consagrou como escravo da Santíssima Virgem diante de seu diretor espiritual, de uma forma muito comovente: colocou uma corda no pescoço, se disciplinou, e colocou sobre o altar uma quantia em dinheiro como sinal de sua entrega e consagração a Santíssima Virgem. Ele foi tão fiel a essa devoção que, na hora da morte, foi visitado e consolado por sua boa Mãe do Céu, que lhe prometeu o paraíso em recompensa por seus serviços.
Cesário Bollando também fala de um cavaleiro famoso, Vautier de Birbak, parente próximo dos duques de Lovaina, que por volta do ano 1300 fez essa mesma consagração à Santíssima Virgem.
Durante muitos séculos, essa devoção foi vivida de forma particular por várias pessoas, até que, no século XVII, começou a se tornar mais conhecida publicamente.

160. O Padre Simão de Roias, da Ordem da Santíssima Trindade — também conhecida como a ordem da redenção dos cativos — foi pregador do rei Filipe III e ajudou a tornar essa devoção mais conhecida por toda a Espanha (no ano de 1611) e também na Alemanha[7]. A pedido do próprio rei Filipe III, ele conseguiu do Papa Gregório XV grandes indulgências (ou seja, graças espirituais) para quem praticasse essa devoção.
O Padre de Los Rios, da Ordem de Santo Agostinho, que era grande amigo do Padre de Roias, também se dedicou com muito empenho a divulgar essa devoção na Espanha e na Alemanha, tanto por meio de seus escritos como de suas pregações. Ele escreveu um livro bastante extenso chamado Hierarquia Mariana[8], no qual fala com muita piedade e sabedoria sobre a antiguidade, a importância e a firmeza dessa devoção.

161. Os padres teatinos espalharam essa devoção pela Itália, pela Sicília e pela região da Saboia durante o século XVII. O padre Estanislau Falácio, da Companhia de Jesus (os jesuítas), ajudou muito a divulgar essa devoção na Polônia[9].
O padre Cornélio a Lápide, conhecido tanto por sua santidade quanto por seu grande conhecimento, foi convidado por vários bispos e teólogos a estudar essa devoção com atenção. Depois de analisá-la com cuidado, ele a elogiou com palavras que mostravam sua profunda piedade. Seu apoio motivou muitas outras pessoas importantes a seguirem seu exemplo.
Os padres jesuítas, sempre muito dedicados ao serviço da Santíssima Virgem, entregaram ao Duque Fernando da Baviera — em nome dos membros da Congregação Mariana de Colônia — um pequeno livro sobre essa devoção[10]. O duque, que na época era também arcebispo de Colônia, aprovou o livro e permitiu que fosse impresso, além de incentivar todos os padres e religiosos de sua diocese a divulgarem essa devoção o máximo que pudessem.

162. O cardeal de Bérulle, muito querido e lembrado com carinho em toda a França, foi um dos que mais se dedicaram a espalhar essa devoção. Mesmo enfrentando calúnias e perseguições por parte de críticos e pessoas sem fé, ele não desistiu. Diziam que ele estava inventando algo novo ou até mesmo uma superstição. Chegaram a escrever e divulgar um panfleto cheio de mentiras contra ele. O demônio, usando essas pessoas, tentou de várias formas atrapalhar a divulgação dessa devoção na França.
Mas esse grande e santo homem respondeu às calúnias com paciência firme. Contra as mentiras escritas no panfleto, ele escreveu um pequeno texto, rebatendo com força os argumentos e mostrando que essa devoção está baseada no exemplo de Jesus Cristo, no que devemos a Ele e nas promessas que fizemos no nosso batismo. E é justamente com esse último ponto que ele silencia seus críticos, provando que essa consagração à Santíssima Virgem, feita para chegar a Jesus por meio dela, nada mais é do que uma renovação completa das promessas do batismo. Ele também escreveu muitas outras coisas lindas sobre o assunto, que podem ser encontradas em seus escritos.

163. No livro de Boudon, que já foi citado (n. 150), estão registrados os nomes dos papas que aprovaram essa devoção e também dos teólogos que a estudaram com atenção. Lá também se pode ler sobre as perseguições que ela enfrentou e como saiu vitoriosa, além das milhares de pessoas que a praticaram. E o mais importante: nenhum papa jamais a condenou — e, na verdade, isso nem seria possível, a não ser que se quisesse destruir os próprios fundamentos do cristianismo.
Por isso, podemos afirmar com certeza que essa devoção não é algo novo, e também não é algo comum, porque é valiosa demais para ser compreendida e vivida por qualquer pessoa.

***

164. 2º) Esta devoção é um caminho seguro para chegar até Jesus Cristo, porque ela pertence à Santíssima Virgem, e é próprio dela nos conduzir até Jesus Cristo — assim como é próprio de Jesus nos levar até o Pai do Céu. Algumas pessoas muito espirituais podem pensar, de forma errada, que Maria seria um obstáculo no caminho para a união com Deus. Mas pense bem: seria possível que Aquela que encontrou graça diante de Deus por toda a humanidade — e por cada um de nós em particular — atrapalhasse uma alma que está buscando justamente a graça de se unir a Deus?
Seria possível que Aquela que foi cheia e transbordante de graças, tão unida a Deus a ponto de Ele mesmo se encarnar nela, impedisse uma alma de estar totalmente unida a Ele?
É verdade que a presença de outras criaturas, mesmo que santas, pode às vezes nos distrair ou atrasar esse caminho de união com Deus. Mas isso não acontece com Maria — e eu já disse isso antes e repito, sem me cansar. Uma das razões pelas quais tão poucas almas chegam à maturidade espiritual completa em Jesus Cristo, é porque Maria, que é Mãe do Filho de Deus e Esposa do Espírito Santo, ainda não está verdadeiramente formada em seus corações.
Quem deseja colher um fruto maduro e bem formado precisa da árvore que o produz. Quem quer o fruto da vida, que é Jesus, precisa da Árvore da Vida, que é Maria. E quem deseja ter dentro de si a ação poderosa do Espírito Santo, precisa estar unido à sua Esposa fiel e inseparável, a Santíssima Virgem Maria, que torna essa ação fecunda, como já explicamos anteriormente (n. 20-21).

165. Tenham certeza de uma coisa: quanto mais vocês incluírem Maria em suas orações, meditações, ações e até nos seus sofrimentos — mesmo que não pensem nela de forma clara o tempo todo, mas de forma geral e constante —, mais perfeitamente vocês encontrarão Jesus Cristo. Com Maria, Jesus se manifesta com ainda mais grandeza, poder, ação e mistério do que em qualquer outro lugar, até mais do que no céu ou em qualquer outra criatura do universo.
Por isso, Maria Santíssima, que está totalmente unida e mergulhada em Deus, não é de forma alguma um obstáculo para quem busca a união perfeita com Ele. Pelo contrário, nunca existiu e jamais existirá outra criatura que nos ajude tanto nesse caminho quanto Ela.
Ela nos ajuda principalmente de duas formas:
Com as graças que nos dá, pois como diz um santo[11], ninguém pode ser totalmente preenchido pelo pensamento de Deus se não for por meio de Maria: Com a proteção contra os enganos e armadilhas do demônio, pois ela nos defende contra tudo isso com sua intercessão poderosa.

166. Onde Maria está presente, o espírito do mal não consegue entrar. Um dos sinais mais seguros de que estamos sendo guiados pelo Espírito Santo é quando temos uma verdadeira devoção à Virgem Maria, quando pensamos nela com frequência e falamos com ela muitas vezes. Um santo[12] afirma isso, e ainda acrescenta: assim como a respiração mostra que o corpo está vivo, o fato de lembrarmos com carinho de Maria e chamarmos por ela com amor é um sinal claro de que nossa alma não está morta pelo pecado.

167. A Igreja, guiada pelo Espírito Santo, afirma que foi Maria, sozinha, quem esmagou e destruiu todas as heresias no mundo: “Sola cunctas haereses interemisti in universo mundo”[13]. E mesmo que alguns críticos reclamem disso, a verdade é que um devoto fiel de Maria nunca cairá em heresia ou em erro grave, ao menos não de forma intencional.
É possível que ele cometa algum erro sem querer, achando que algo errado é certo, ou confundindo a ação do demônio com a do Espírito Santo. Mas mesmo esses erros acontecem com muito menos frequência do que em outras pessoas. E, mais cedo ou mais tarde, esse devoto vai perceber que errou. E quando perceber, não vai insistir no erro, nem continuar acreditando na mentira.

***

168. Qualquer pessoa que deseja, com sinceridade, crescer no caminho da santidade e encontrar Jesus Cristo de maneira segura e verdadeira, pode abraçar esta devoção à Santíssima Virgem sem medo de se enganar, mesmo que ainda não a conheça. Faça isso com todo o coração, com vontade firme e generosa, como diz a Escritura: "Que vos dê a todos um coração disposto a adorá-lo e a cumprir os seus preceitos, com grandeza de alma e generosidade." (2Mc 1,3). Entre com confiança neste caminho maravilhoso, que talvez nunca tenha conhecido, mas que agora estou mostrando a você (1Cor 12,31). Este é o caminho que Jesus Cristo, a Sabedoria feita homem, seguiu. Ele é o nosso único chefe e guia. Quem segue por esse caminho não se perde.
É um caminho fácil, porque está cheio da graça e da presença do Espírito Santo. Quem anda por ele não se cansa, nem desanima. É um caminho curto, que nos leva a Jesus Cristo rapidamente. É um caminho perfeito, onde não há lama, poeira ou qualquer sujeira do pecado. E, por fim, é um caminho seguro, que nos conduz diretamente a Jesus Cristo e à vida eterna, sem desvios nem confusões.
Por isso, vamos entrar nesse caminho e seguir nele dia e noite, até que alcancemos a maturidade da fé e nos tornemos plenamente semelhantes a Jesus Cristo (cf. Ef 4,13).
____________________
1. “Servientes tibi plus aliis invadunt dracones inferni” (SÃO BOAVENTURA. Psalter. maius B.V., S1 118).
2. “Tu es via compendiosa in caelo” (SÃO BERNARDO. Laudes glor. Virginis). • Cf. “Recta et tanquam compendiaria via ad Iesum per Mariam itur” (BENTO XV. Epist. ad R.P.D. Schoepfer. – AAS 1914, p. 515).
3. Cf. Gradual da Missa da Santíssima Virgem (de Pentecostes ao Advento); 1o Responso do Ofício da Santíssima Virgem.
4. Henri-Marie Boudon, doutor em teologia, falecido em odor de santidade, em 1702, como arcediago de Evreux. Autor do livro intitulado “A santa escravidão da admirável Mãe de Deus”, e de outras obras, todas impregnadas de uma ardente devoção à Santíssima Virgem.
5. O santo Rei Dagoberto II (século VII) consagrou-se assim à Santíssima Virgem, na qualidade de escravo (apud KRONENBURG. “Maria’s Heerlikheid”, 1, 98). O mesmo fez o Papa João VII (701-707).
6. Declarado “doutor da Igreja” por Leão XII.
7. O próprio Imperador Fernando II fez esta consagração com toda a sua corte, em 1640.
8. Editado em Antuérpia em 1641.
9. O rei da Polônia Wladislaf encarregou os jesuítas de pregá-la em seu reino. 10. Intitulado “Mancipium Virginis” – A escravidão da Virgem. Colônia, 1634. 11. SÃO GERMANO DE CONSTANTINOPLA (Sermo 2 in Dormit.).
12. Id. Orat. in Encaenia veneranda aedis B.V.
13. Ofício da Santíssima Virgem, 1ª antífona do 3º noturno.

  Artigo VI (169-170)

Esta devoção dá uma grande liberdade interior

169. Sexto motivo. Esta prática de devoção oferece, a quem a vive com fidelidade, uma grande liberdade interior — a liberdade dos filhos de Deus (cf. Rm 8,21). Pois, por meio desta devoção, tornamo-nos escravos de Jesus Cristo, entregando‑nos inteiramente a Ele. E Ele, em recompensa por esse “cativeiro” por amor a Ele a que nos submetemos, opera três coisas em nossa alma:
Primeiro, Ele elimina todo escrúpulo e temor servil — esses sentimentos que nos prendem, nos amedrontam ou nos perturbam.
Segundo, Ele amplia o coração com uma confiança santa em Deus, fazendo‑nos considerá‑lo como Pai.
Terceiro, Ele inspira em nós um amor terno e filial, como o de filhos que amam profundamente o pai ou a mãe.

170. Sem me alongar em dezenas de razões para provar essa verdade, quero apenas contar uma história baseada num texto da vida da Madre Inês de Jesus, religiosa da ordem jacobina[1], no convento de Langeac, na Auvergne, que faleceu em odor de santidade nesse mesmo lugar, em 1634. Quando ainda tinha menos de sete anos, ela sofreu fortemente no espírito. Em certa ocasião, ouviu uma voz que lhe disse que, se quisesse livrar‑se de todo sofrimento e ser protegida contra todos os inimigos, deveria se tornar imediatamente escrava de Jesus e de sua Mãe Santíssima. Mal chegou em casa, ela se entregou por completo a Jesus e Maria, como a voz lhe tinha indicado, mesmo sem saber exatamente em que consistia essa devoção. Ao encontrar uma corrente de ferro, cingiu‑se com ela aos rins e usou‑a até a morte. Depois desse ato, todos os seus tormentos e escrúpulos cessaram, e ela entrou numa paz profunda e grande bem‑estar de coração. Isso a levou a ensinar essa devoção a muitas outras pessoas, dentre as quais o Padre Olier, que fundou o seminário de São Sulpício, e muitos outros padres e eclesiásticos desse seminário.
Num dia, a Santíssima Virgem apareceu a ela e lhe pôs ao pescoço uma corrente de ouro para testemunhar a alegria de ter‑la como escrava de seu Filho e sua. Santa Cecília, que acompanhava a Santíssima Virgem, disse então: “Felizes os fiéis escravos da Rainha do Céu, pois gozarão da verdadeira liberdade: ‘Tibi servire libertas’.”
____________________
1. Até à Revolução Francesa os religiosos da Ordem de São Domingos eram chamados jacobinos, do nome da igreja de Saint-Jacques (São Tiago) em Paris, perto da qual a Ordem se estabeleceu.

  Artigo VII (171-172)

Nosso próximo aufere grandes bens desta devoção

171. Sétimo motivo. Outro grande motivo para abraçar essa devoção são os imensos benefícios que ela traz para as pessoas ao nosso redor. Quando a praticamos, estamos exercendo a caridade de um modo extraordinário, pois oferecemos por meio de Maria o que temos de mais precioso: o valor das nossas boas obras, sem deixar de lado nem o menor pensamento bom nem o menor sofrimento. Concordamos que tudo o que conquistarmos ou conquistarmos de bons frutos — nossas satisfações —, até a hora da nossa morte, seja usado conforme o desejo da Santíssima Virgem para converter pecadores ou libertar as almas no purgatório.
Não é isso amar verdadeiramente o próximo? Não é esse o sinal de que somos discípulos de Jesus Cristo, quando nos identificamos pela caridade? (Jo 13,35). E não é esse o meio de converter pecadores, sem cair na vaidade, e de libertar almas do purgatório, usando quase somente aquilo que já somos e fazemos em nosso estado de vida?

172. Para entender o quanto esse motivo é excelente, é preciso conhecer o bem que significa converter um pecador ou libertar uma alma do purgatório: é um bem infinito, maior que criar o céu e a terra[1], porque é dar a uma alma a posse de Deus. Mesmo que, por meio desta prática, você libertasse apenas uma alma do purgatório ou convertesse apenas um pecador, não bastaria isso para que qualquer pessoa verdadeiramente caridosa a adotasse?
E há mais: nossas boas obras, quando passam pelas mãos de Maria, ficam mais puras, e consequentemente ganham mais mérito e valor satisfatório (ou seja, para reparar nossos pecados) e impetratório (ou seja, para alcançar graças). Por isso, essas obras se tornam muito mais capazes de aliviar as almas no purgatório e de converter pecadores do que se não tivessem sido entregues a Maria. O pouco que oferecemos à Santíssima Virgem — sem buscar benefício próprio, apenas por caridade — torna-se, de fato, muito mais poderoso para acalmar a cólera de Deus e atrair sua misericórdia. E será verdadeiro: na hora da nossa morte, uma pessoa fiel a essa prática verá que, por meio dela, libertou inúmeras almas do purgatório e converteu muitos pecadores, mesmo tendo feito apenas as ações comuns do seu dia a dia. Que alegria haverá no seu julgamento! Que glória na eternidade!
____________________
1. SANTO AGOSTINHO. Tract. 72 in Ioann. a medio.

  Artigo VIII (173-182)

Esta devoção é um meio admirável de perseverança

173. Oitavo motivo. Finalmente, o motivo mais forte que nos leva a abraçar esta devoção à Santíssima Virgem é que ela nos oferece um meio maravilhoso para perseverar na virtude e manter a fidelidade. Por que tantas conversões não duram? Por que há tanta facilidade para cair no pecado de novo? Por que tantas pessoas justas, em vez de crescerem em virtude e graça, acabam perdendo o pouco que tinham? Já expliquei em outras partes (n. 87‑89) que isso acontece porque o ser humano, sendo tão corrompido, fraco e instável, confia em si mesmo e pensa que pode guardar sozinho o tesouro das suas graças, virtudes e méritos.
Por meio desta devoção, confiamos à Santíssima Virgem — fiel por excelência — tudo o que temos. Fazemos dela a depositária universal de todos os nossos bens, tanto naturais quanto espirituais. Confiamos na sua fidelidade, apoiamo‑nos no seu poder, baseamo‑nos na sua misericórdia e caridade para que Ela conserve e aumente as nossas virtudes e méritos, apesar do demônio, do mundo e da carne, que empenham todos os esforços para nos tirar isso. Nós lhe dizemos, como um filho bom à sua mãe: “Depositum custodi” (1Tm 6,20), ou seja: “Minha boa Mãe e Soberana, reconheço que até agora recebi mais graças de Deus pela vossa intercessão do que mereço, e minha triste experiência me ensina o quão frágil é o vaso em que guardo esse tesouro, e o quão fraco e miserável eu sou. ‘Pois sou jovem e desprezado’ (Sl 119,141).
Recebei em depósito tudo o que possuo e guardai‑me pela vossa fidelidade e pelo vosso poder. Se me protegeste, nada perderei; se me sustentareis, não cairei; se me defenderdes, estarei seguro frente aos meus inimigos.

174. São Bernardo nos ensina essa prática com palavras cheias de confiança: “Enquanto Maria te sustenta, você não cai; enquanto ela te protege, você não tem medo; enquanto ela te guia, você não se cansa; e, com a sua ajuda, você chega ao porto da salvação”[1]. São Boaventura também expressa isso de forma ainda mais clara. Ele diz que a Santíssima Virgem não apenas está na plenitude dos santos, mas também mantém os santos nessa plenitude, para que eles não percam nada. Ela impede que as virtudes deles se dispersem, que seus méritos se percam, que as graças que receberam sejam desperdiçadas. Ela protege contra os ataques dos demônios e até impede que Jesus castigue os pecadores[2]. Em outras palavras, Maria cuida de tudo com muito amor e poder: ela guarda os santos, suas virtudes, seus méritos, suas graças e protege todos nós.

175. A Santíssima Virgem é chamada de Virgem fiel porque, sendo completamente fiel a Deus, ela conserta o estrago que Eva, com sua desobediência, causou. E mais: ela consegue de Deus a graça da fidelidade e da perseverança para todos os que confiam nela. Por isso, um santo a compara a uma âncora firme, que segura as almas e as impede de afundar no mar agitado deste mundo, onde tantas pessoas acabam se perdendo por não estarem seguras nessa âncora firme. Ele diz: “Prendemos nossas almas à tua esperança, como a uma âncora segura”[3]. Foi em Maria que os santos confiaram e também ensinaram outros a confiar, justamente para que permanecessem firmes na prática do bem. Felizes, muito felizes, são os cristãos que hoje se entregam totalmente a ela e se prendem a ela como a uma âncora firme. As tempestades deste mundo não conseguirão derrubá-los, nem fazer com que percam os bens celestes. Felizes também os que procuram refúgio nela, como Noé fez na arca. As águas do dilúvio de pecados, que afogam tanta gente, não os atingirão, pois ela mesma diz com a Sabedoria: “Os que agem comigo não pecarão.”
Felizes os filhos da pecadora Eva que agora se apegam à Virgem fiel, que nunca deixa de ser fiel nem abandona os que confiam nela. Ela mesma diz: “Permaneço fiel e não posso negar a mim mesma”[4] E também: “Amo os que me amam"(Pr 8,17). E esse amor não é só de palavras, mas é um amor verdadeiro e eficaz. Maria, com as muitas graças que Deus lhe deu, impede que aqueles que a amam deixem de fazer o bem ou caiam e percam a graça de seu Filho.

176. Essa boa Mãe, por pura caridade, sempre aceita tudo o que entregamos a ela como um depósito. E, a partir do momento em que ela recebe algo como depositária, ela tem a obrigação de guardar aquilo por justiça, como num contrato de confiança. É como se alguém me entregasse mil moedas de ouro para guardar — essa pessoa teria o dever de cuidar bem delas, e, se perdesse por descuido, seria justamente responsabilizada. Mas com Maria isso nunca acontece. Ela é a Virgem fiel e jamais deixaria que se perdesse, por descuido, qualquer coisa que nós entregamos a ela com confiança. Antes o céu e a terra deixariam de existir do que ela ser negligente ou infiel com os que confiam nela.

***

177. Pobres filhos de Maria! Vocês são muito fracos, instáveis e cheios de defeitos por dentro. É verdade, eu reconheço: vocês vêm da mesma humanidade ferida pelo pecado, assim como os filhos de Adão e Eva. Mas não desanimem por isso! Pelo contrário, fiquem firmes, animem-se e alegrem-se, pois aqui vai um segredo que vou ensinar a vocês — um segredo que quase nenhum cristão conhece, nem mesmo os mais devotos.
Não deixem seu ouro e sua prata nos cofres do próprio coração, pois esses cofres já foram arrombados pelo espírito maligno que os enganou. São cofres muito frágeis, pequenos e velhos demais para guardar um tesouro tão grande e precioso.
Também não guardem a água pura e limpa da graça de Deus em vasos manchados e contaminados pelo pecado. Pode até ser que o pecado já tenha saído, mas o mau cheiro ainda fica, e essa água acaba se contaminando. Nem coloquem o vinho bom da graça em tonéis velhos, que já guardaram vinho ruim — ele vai se estragar e vocês vão perdê-lo.

178. Mesmo que vocês me entendam, almas escolhidas, estou falando com mais clareza. Não confiem o ouro da vossa caridade, a prata da vossa pureza, as águas das graças do céu, nem o vinho dos vossos méritos e virtudes a um saco rasgado, a um cofre velho e quebrado, a um vaso contaminado e corrompido — como muitas vezes nós somos. Pois, se o fizerem, vocês serão assaltados pelos ladrões — ou seja, os demônios — que buscam e espreitam, noite e dia, o momento ideal para atacar; e assim estragarão tudo o que Deus lhes deu de mais puro por causa do mau cheiro do orgulho, da confiança em si mesmo ou da vontade própria.
Antes disso, depositai — derramai — no seio e no coração de Maria todos os vossos tesouros, todas as vossas graças e virtudes. Maria é um vaso espiritual, um vaso de honra, um vaso notável de devoção. Depois que aí o próprio Deus, em pessoa, com todas as suas perfeições, se encerrou, esse vaso tornou‑se todo espiritual, e morada das almas mais espirituais. Tornou‑se honorável, o trono de honra dos maiores príncipes da eternidade. Tornou‑se distinta na devoção e morada dos mais ilustres nas doçuras, graças e virtudes. Tornou‑se, enfim, rica como uma casa de ouro, forte como a torre de Davi, pura como uma torre de marfim.

179. Oh! Como é feliz a pessoa que entregou tudo a Maria e confia nela em todas as coisas e por todos os motivos. Essa pessoa pertence totalmente a Maria, e Maria pertence totalmente a ela. Ela pode dizer com confiança, como disse o rei Davi: “Maria foi feita para mim” (Sl 118,56). Pode dizer como o discípulo amado de Jesus: “Eu a recebi como toda a minha riqueza” (Jo 19,27). Ou até mesmo repetir as palavras do próprio Jesus: “Tudo o que é meu é teu, e tudo o que é teu é meu” (Jo 17,10).

180. Se algum crítico, ao ler isso, achar que estou exagerando ou sendo excessivamente devoto, pobre dele! É sinal de que não me entende — talvez por ser alguém muito ligado às coisas da carne, que não valoriza o que é espiritual; ou por pertencer ao mundo, que não pode acolher o Espírito Santo; ou, ainda, por ser orgulhoso e crítico, e por isso rejeita e despreza aquilo que não consegue entender. Mas as almas que nasceram não do sangue, nem da vontade da carne (Jo 1,13), mas de Deus e de Maria, essas sim me entendem e valorizam o que digo. E é para elas, no fim das contas, que escrevo tudo isso.

181. Digo, tanto para uns quanto para outros, retomando o que estava dizendo antes, que a Maria Santíssima, por ser a mais pura e generosa de todas as criaturas, nunca deixa ninguém vencer seu amor e sua generosidade. Um santo chegou a dizer que, se lhe dermos um simples ovo, ela nos retribui com um boi. Ou seja, mesmo que ofereçamos algo pequeno, ela nos dá muito mais do que recebeu de Deus. Por isso, se uma alma se entrega a Maria sem guardar nada para si, ela também se entrega a essa alma completamente. Se colocamos toda nossa confiança nela e nos esforçamos para crescer nas virtudes e vencer nossas paixões, ela estará do nosso lado, ajudando em tudo.

182. Que os fiéis servos de Maria digam, com toda confiança, junto com São João Damasceno: “Confiando em ti, ó Mãe de Deus, eu serei salvo. Tendo tua proteção, não terei medo. Com tua ajuda, enfrentarei meus inimigos e os colocarei em fuga. Porque ser devoto de ti é como receber uma arma de salvação, que Deus dá àqueles que Ele quer salvar.”
____________________
1. Homilia 2 super “Missus est” n. 17.
2. Speculum B.V., lect. VII, § 6.
3. SÃO JOÃO DAMASCENO. “Sermo 1 in Dormitione B.M.V.”.
4. Aplicação à Santíssima Virgem das palavras de São Paulo: 2Tm 2,13.
7ª parte

  Capítulo VI (183)

Figura bíblica desta perfeita devoção: Rebeca e Jacó

183. De tudo o que expliquei até agora sobre a Santíssima Virgem, o Espírito Santo nos mostra, na Sagrada Escritura (Gênesis 27), uma imagem maravilhosa na história de Jacó, que recebeu a bênção de Isaac por causa da atenção e sabedoria de sua mãe, Rebeca.
Aqui está a história, do jeito que o Espírito Santo nos conta. Depois eu explicarei o seu significado.

  Artigo I (184-200)

Rebeca e Jacó

§ I. História de Jacó.

184. Esaú havia vendido para Jacó o direito de ser o filho mais velho, que naquela época dava muitos privilégios. Anos depois, Rebeca, mãe dos dois, queria garantir que Jacó recebesse as bênçãos que vinham com esse direito. Ela amava muito Jacó e usou uma estratégia cheia de significado espiritual para ajudá-lo.
Isaac, o pai, já estava bem velho e sentia que sua morte se aproximava. Antes de morrer, ele quis dar sua bênção ao filho mais velho. Chamou Esaú, que era seu preferido, e pediu que fosse caçar algo gostoso para ele comer. Depois, daria sua bênção.
Rebeca, ao ouvir isso, correu para contar tudo a Jacó. Pediu que ele trouxesse dois cabritos do rebanho. Quando ele os trouxe, ela preparou a comida do jeito que Isaac gostava. Em seguida, pegou roupas de Esaú, que guardava, e vestiu Jacó com elas. Também cobriu o pescoço e as mãos dele com a pele dos cabritos, porque Isaac não enxergava bem, e assim, ao tocar com as mãos pensaria que era Esaú, mesmo ouvindo a voz de Jacó.
Quando Jacó entrou com a comida, Isaac ficou desconfiado, porque a voz era de Jacó, mas ao tocar as mãos, sentiu os pelos e pensou que fosse Esaú. Disse: “A voz é de Jacó, mas as mãos são de Esaú.” Depois disso, ele comeu e, ao beijar Jacó, sentiu o cheiro das roupas de Esaú. Isso tirou de vez suas dúvidas. Então, abençoou Jacó, desejando-lhe o orvalho do céu, a fertilidade da terra, e o fez senhor de seus irmãos. Concluiu dizendo: “Quem te amaldiçoar será amaldiçoado, e quem te abençoar será muito abençoado.”
Logo depois que Isaac terminou de abençoar Jacó, Esaú chegou com o prato que havia preparado e pediu a bênção do pai. Isaac ficou muito espantado ao perceber o que havia acontecido, mas não retirou a bênção de Jacó. Ele entendeu que aquilo vinha de Deus.
Esaú gritou de dor e reclamou da atitude do irmão, perguntando ao pai se não havia outra bênção para ele. Os Santos Padres observam que Esaú representa aqueles que querem agradar a Deus e ao mundo ao mesmo tempo, desejando ter as alegrias do céu e da terra juntas. Isaac, comovido, acabou abençoando Esaú também, mas com uma bênção só terrena, e ele ficou abaixo de Jacó.
Esaú ficou com tanto ódio de Jacó que só esperava a morte do pai para poder matá-lo. Jacó só escapou graças à proteção de sua mãe, Rebeca, que, com sabedoria, lhe deu conselhos preciosos — e ele os seguiu.

§ II. Interpretação da história de Jacó.

185. Antes de explicar essa história tão bonita, é importante lembrar que, segundo todos os Santos Padres e intérpretes da Sagrada Escritura, Jacó representa Jesus Cristo e aqueles que são fiéis e escolhidos por Deus. Esaú, por outro lado, representa aqueles que rejeitam a graça. Basta observar o comportamento de cada um para perceber essa diferença.
1º) Esaú representa aquelas pessoas que rejeitam a graça de Deus.
2º) Esaú, o filho mais velho, era forte, com um corpo robusto, e muito habilidoso com o arco e na arte da caça.
3º) Quase nunca ficava em casa, preferia estar sempre ao ar livre, confiando na sua própria força e habilidade para tudo.
4º) Não se importava muito em agradar sua mãe, Rebeca, e praticamente não fazia nada por ela.
5º) Era guloso e dava muito valor aos prazeres da comida, a ponto de vender seu direito de primogenitura por um simples prato de lentilhas.
6º) Sentia inveja do irmão Jacó, como Caim sentia de Abel, e por isso vivia perseguindo-o sem parar.

186. Veja como agem aqueles que se perdem, todos os dias:
1º) Eles confiam demais na própria força e inteligência para lidar com os assuntos do mundo. São muito bons, espertos e entendidos quando se trata de coisas da terra, mas, ao mesmo tempo, são muito fracos e ignorantes nas coisas do céu: “Fortes nas coisas da terra, fracos nas celestiais”. Por isso:

187. 2º) Eles quase não permanecem em sua própria “casa interior”, isto é, dentro de si mesmos, no silêncio e na reflexão. Essa “casa interior” foi dada por Deus a cada pessoa como o lugar onde Ele nos chama a viver perto d’Ele, já que o próprio Deus habita sempre em Seu interior.
Mas os réprobos não gostam do recolhimento, nem da vida espiritual, nem da devoção do coração. Chegam até a chamar de fracos, exagerados ou estranhos aqueles que buscam a vida interior, que se afastam um pouco do mundo e trabalham mais dentro de si do que fora.

188. 3º) Os réprobos - que são aquelas pessoas que rejeitam a graça de Deus - não se preocupam de verdade com a devoção à Santíssima Virgem, Mãe daqueles que são escolhidos por Deus. É verdade que eles não chegam a odiá-la abertamente. Às vezes, até falam bem dela, dizem que a amam e podem praticar alguma devoção em sua honra. Mas, no fundo, não suportam vê-la sendo amada com carinho, pois não têm por ela o mesmo afeto que Jacó tinha.
Eles criticam as práticas de devoção dos bons filhos e servos da Virgem Santíssima, que se esforçam para agradá-la, acreditando com fé que essa devoção é essencial para a salvação. Pensam que, só pelo fato de não a desprezarem ou a odiarem diretamente, já estão agradando a Santíssima Virgem. Acham que basta recitar ou murmurar algumas orações em sua homenagem, sem qualquer carinho ou desejo de mudar de vida, para serem considerados seus servos.

189. 4º) Esses réprobos trocam seu direito de primogenitura — ou seja, a alegria do paraíso — por um prato de lentilhas, que simboliza os prazeres deste mundo. Vivem rindo, comendo, bebendo, se divertindo, jogando, dançando e curtindo a vida, sem se preocupar em agradar a Deus ou merecer a bênção do Pai do Céu, como fez Esaú. Em resumo, só pensam nas coisas da terra, só se importam com isso, só falam disso e vivem por isso. Por um momento de prazer, por uma honra passageira ou por dinheiro (representado por ouro ou prata), eles acabam entregando a graça do batismo, a pureza da alma e a herança que teriam no céu.

190. 5º) Os réprobos, por fim, odeiam e perseguem os predestinados, seja de forma escondida, seja abertamente. Fazem de tudo para prejudicá-los: desprezam, enganam, tiram o que têm, os empobrecem, afastam-nos de tudo e os reduzem a pó, os fazendo sofrer. Enquanto isso, eles mesmos se dão bem, aproveitam os prazeres da vida, vivem com luxo, enriquecem, se destacam e levam uma vida tranquila.
2º) Jacó, figura dos bem-aventurados

191. 1º) Jacó, o filho mais novo, era de corpo mais frágil, calmo e tranquilo. Ficava em casa o máximo que podia, querendo agradar sua mãe Rebeca, que o amava profundamente. Quando saía, não era por querer mostrar sua própria força ou esperteza, mas sim porque obedecia ao que sua mãe lhe pedia.

192. 2º) Jacó amava e respeitava sua mãe, e por isso preferia ficar em casa com ela. A maior alegria dele era estar com ela. Ele evitava qualquer coisa que pudesse deixá-la triste e sempre procurava fazer o que achava que iria agradá-la. Tudo isso fazia com que Rebeca o amasse ainda mais.

193. 3º) Em tudo, Jacó obedecia sua mãe com total entrega. Fazia isso com rapidez, sem demorar, e com amor, sem reclamar. Bastava um pequeno sinal de vontade da mãe, que Jacó logo se colocava a caminho e fazia o que precisava. Ele confiava completamente no que sua mãe dizia, sem duvidar. Por exemplo, quando Rebeca pediu que ele trouxesse dois cabritos para preparar a comida de Isaac, Jacó não questionou nem disse que um só já bastaria para alimentar um homem. Ele simplesmente fez o que ela pediu, exatamente como ela mandou.

194.4º) Jacó confiava completamente em sua querida mãe. Ele não se apoiava em sua própria experiência, mas colocava toda sua segurança no cuidado e na proteção dela. Sempre que precisava de algo, chamava por ela. E, quando tinha dúvidas, era a ela que recorria. Um exemplo disso foi quando ele perguntou se, ao invés de receber a bênção do pai, não acabaria sendo amaldiçoado. Mesmo diante dessa preocupação, acreditou e confiou na resposta da mãe, que disse que assumiria para si qualquer maldição que pudesse acontecer.

195. 5º) Por fim, Jacó procurava imitar, dentro do que conseguia, as virtudes que via em sua mãe. Parece até que uma das razões pelas quais ele ficava tanto tempo em casa, sem sair muito, era justamente o desejo de seguir o exemplo dela, que era cheia de virtudes. Além disso, evitava más companhias, que poderiam estragar seus bons costumes. Por isso, tornou-se digno de receber a bênção dobrada de seu amado pai.

196. Eis também como vivem, no dia a dia, os escolhidos de Deus:
1º) Eles gostam de estar em casa, isto é, dentro de si mesmos, amam o recolhimento. São pessoas voltadas para o interior, e dedicam‑se à oração. Fazem isso seguindo o exemplo de sua Mãe, a Santíssima Virgem Maria, cuja glória está no interior e que sempre amou o silêncio e a oração.
É verdade que às vezes eles aparecem no mundo, fazem coisas fora de casa; mas isso é apenas para obedecer à vontade de Deus ou à vontade de sua querida Mãe, para cumprir o dever que têm no estado de vida em que estão.
Por grandes feitos que possam realizar externamente, que apareçam ao mundo, eles preferem com muito mais força os momentos silenciosos ao lado da Santíssima Virgem, porque sabem que ali executam a obra maior para alcançar a perfeição. Todas as outras obras externas lhes parecem quase brinquedos de criança diante dessa obra interior. Por isso, ao contrário dos irmãos e irmãs que gastam mais esforço e recebem muitos elogios no mundo, os escolhidos sabem, pela luz do Espírito Santo, que existe muito mais glória, bem e prazer em permanecer escondidos, em união com Jesus Cristo, seguindo‑o em total entrega à sua Mãe Santíssima, do que em realizar, por si próprio, maravilhas naturais e da graça no mundo, como tantos Esaús e réprobos - aqueles que rejeitam a graça.
“Glória e riqueza estão em sua casa” (Sl 111,3) — diz‑se que a glória de Deus e as riquezas dos homens encontram‑se na casa de Maria. Senhor Jesus, como são amáveis os vossos tabernáculos! O pardal encontrou uma casa para si, e a rola um ninho para os seus filhotes. Oh! como é feliz aquele que habita na casa de Maria, na qual Vós fizestes primeiro a vossa morada! É nesta casa dos predestinados que ele recebe de Vós somente auxílio, e em seu coração já há degraus de todas as virtudes, para crescer até à perfeição neste vale de lágrimas. “Quão amáveis são os vossos tabernáculos...” (Sl 83).

197. 2º) Eles amam profundamente e honram de verdade a Santíssima Virgem como sua boa Mãe e Senhora.
Eles não a amam apenas com palavras, mas com o coração; não a honram apenas de fora, mas também no íntimo. Como Jacó, evitam tudo o que poderia desagradá‑la e procuram, com fervor, fazer tudo o que pensam que pode conquistar sua benevolência.
Eles não apenas trazem “dois cabritos”, como Jacó trouxe a Rebeca, mas oferecem seu corpo e sua alma, com tudo o que corpo e alma envolvem — os dois cabritos são somente um símbolo disso — para que: 1º) ela os aceite como um dom que lhe pertence; 2º) ela os sacrifique para que morram ao pecado e a si mesmos, despindo‑os do seu amor‑próprio, para agradar a Jesus, seu Filho, que quer ao seu lado somente aqueles que morrem para si mesmos; 3º) ela os prepare de modo que agradem ao Pai Celeste e sirvam para sua maior glória — pois ela conhece melhor do que ninguém essa glória; 4º) e que, por meio dos seus cuidados e intercessão, esse corpo e essa alma, bem purificados de toda mancha, bem mortos para si mesmos, bem despidos do egoísmo e bem prontos, sejam um banquete digno para o paladar e a bênção de Deus Pai. Não é isso o que farão aqueles que são predestinados? Eles apreciarão e praticarão a consagração perfeita a Jesus Cristo pelas mãos de Maria, como eu ensinei, para mostrar a Jesus e Maria um amor verdadeiro e corajoso.
Os réprobos dizem que amam Jesus e que honram Maria, mas não com sua substância[1], não com seus bens. Eles não sacrificam seu corpo com seus sentidos, nem sua alma com todas as suas paixões — como fazem os predestinados.

198. 3º) Eles são submissos e obedientes à Santíssima Virgem, vendo‑a como sua boa Mãe — assim como fez Jesus Cristo, que dos seus trinta e três anos vivendo na terra, passou trinta glorificando a Deus Pai, obedecendo inteiramente a sua Mãe Santíssima. Eles seguem fielmente os conselhos dela, do mesmo modo que o jovem Jacó seguia os conselhos de sua mãe: ela dizia — “Meu filho, obedece aos meus conselhos” (Gên 27,8). Ou como os servos nas Bodas de Caná, a quem Maria disse: — “Fazei tudo o que Ele vos mandar” (Jo 2,5). Por causa dessa obediência a sua Mãe, Jacó recebeu a bênção — quase como num milagre — mesmo sem ter esse direito natural. E os servos nas bodas de Caná obedeceram a Santíssima Virgem e foram agraciados com o primeiro milagre de Jesus: a água transformada em vinho. Assim, todos aqueles que forem abençoados pelo Pai celeste e receberem maravilhas de Deus, só atingirão essas graças por causa da sua obediência perfeita a Maria. Ao contrário, os que forem como Esaú perderão a bênção, por não se submeterem à Santíssima Virgem.

199. 4º) As pessoas predestinadas confiam muito na bondade e no poder da Santíssima Virgem. Estão sempre pedindo sua ajuda, reconhecendo que ela é como uma estrela no céu, que os guia com segurança até Deus. Elas abrem o coração para Maria, contam a ela suas dores e necessidades. Buscam sua misericórdia e carinho de Mãe para receber o perdão de seus pecados e encontrar consolo nas dificuldades da vida. Essas pessoas se jogam nos braços de Maria, se escondem nela, e até se perdem de amor no seu coração puro e cheio de ternura. Ali, elas se enchem de amor, se purificam até das menores falhas, e encontram plenamente Jesus, que vive em Maria como num trono glorioso. Que alegria é essa! Como disse o Abade Guerrico: “Não pense que é maior felicidade estar no seio de Abraão do que no seio de Maria, pois foi ali que o Senhor colocou o seu trono”[2].
Já os réprobos - aqueles que se perdem - confiam apenas em si mesmos. São como o filho pródigo, que só come a comida dos porcos. Vivem como vermes, se alimentando da terra — ou seja, só ligam para as coisas do mundo, passageiras e visíveis. Por isso, não valorizam o carinho e a doçura do coração de Maria. Eles não sentem a força e o consolo que os predestinados sentem por confiar na Santíssima Virgem como sua Mãe. Estão apegados a coisas externas, como explica São Gregório[3], e não querem experimentar a doçura e a graça que está guardada dentro deles — a graça que vem de Jesus e de Maria.

200. 5º) Por fim, os predestinados permanecem no caminho da Santíssima Virgem — isto é, vivem como ela viveu — e por isso são verdadeiramente felizes e devotos, mostrando claramente que são escolhidos por Deus. Essa boa Mãe nos diz: “Bem‑aventurados os que seguem minhas virtudes e caminham pelos passos da minha vida” (Pr 8,32).
Eles são felizes já nesta vida, porque recebem dela muitas graças e doçuras — muito mais do que quem não se esforça por imitá‑la. São felizes na morte, que lhes é doce e serena, pois ela os conforta e lhes abre o caminho para a alegria eterna. E serão felizes para sempre no céu, porque nunca se perdeu nenhum de seus servos que imitasse fielmente suas virtudes.
Os réprobos, ao contrário, vivem infelizes — em sua vida, em sua morte e na eternidade — porque não seguem o exemplo da Santíssima Virgem. Pensam que é suficiente pertencer a alguma confraria dela, recitar uma oração de vez em quando ou praticar devoções de fora — mas isso não basta.
Ó Virgem Santíssima, minha boa Mãe, quão felizes são aqueles — repito com todo o meu coração — quão felizes são os que, sem se deixar enganar por devoções vazias, guardam fielmente vossos caminhos, vossos conselhos e vossas ordens! Mas quão infelizes e malditos são aqueles que, usando de vosso nome, desobedecem aos mandamentos de vosso Filho! “Malditos todos os que se afastam de tuas leis” (Sl 118,21).
____________________
1. Cf. Pr 3,9: “Honora Dominum de tua substantia” (Honra o Senhor com os teus haveres).
2. Sermo 1 in Assumptione, n. 4.
3. “Amamus foris miseri famem nostram” (Homil. 36 in Evangel.)

  Artigo II (201-212)

A Santíssima Virgem e os seus escravos por amor

201. A seguir, apresento os deveres carinhosos que a Santíssima Virgem cumpre como a melhor das mães para com seus fiéis servos — aqueles que se entregaram a ela conforme expliquei, e segundo o exemplo de Jacó.

§ I. Ela os ama.

"Eu amo aqueles que me amam” (Pr 8,17).
Maria ama de forma especial aqueles que a amam, e faz isso por vários motivos:
Primeiro, ela os ama porque é de verdade a Mãe deles. E uma mãe sempre ama seu filho, pois ele é parte dela, nasceu dela. Segundo, ela os ama por gratidão, já que eles a amam sinceramente como sua boa Mãe. Terceiro, ela os ama porque são escolhidos por Deus, são predestinados. E Deus também os ama: “Amei Jacó, porém rejeitei Esaú” (Rm 9,13). Quarto, ela os ama porque eles se entregaram totalmente a ela. Eles são parte dela, são sua herança: “Minha herança está em Israel” (Eclo 24,13).

202. Maria ama seus filhos com uma ternura tão grande, que supera todo amor de mãe que existe no mundo. Imagine se fosse possível juntar, num único coração de mãe, todo o amor que todas as mães do mundo têm por seus filhos, e esse amor fosse direcionado a um só filho — com certeza seria um amor imenso. Mas o amor de Maria por seus filhos é ainda maior que isso. E não é só um amor de sentimento. É um amor que age, que faz o bem de verdade. Ela ama com obras, com atitudes, assim como Rebeca amava Jacó — e ainda mais que ela. Tudo isso, essa boa Mãe faz com o objetivo de alcançar, para seus filhos, a bênção do Pai do Céu. Rebeca foi apenas uma imagem do que Maria é de verdade.

203. 1º) Assim como Rebeca, Maria está sempre atenta às melhores oportunidades para fazer o bem a seus filhos, para ajudá-los a crescer espiritualmente e até mesmo para enriquecê-los com graças. Ela vê, em Deus, todas as situações — tanto as boas quanto as ruins, as bênçãos quanto as maldições — e, por isso, prepara tudo de antemão para livrar seus filhos dos males e enchê-los de bênçãos. Se existe alguma graça a ser alcançada por causa da fidelidade de alguém em alguma missão importante, Maria com certeza vai fazer de tudo para que um de seus filhos receba essa graça, e também a força para ser fiel até o fim. Como diz um santo: “Ela cuida dos nossos assuntos”.

204. 2º) Ela dá conselhos valiosos, assim como Rebeca fez com Jacó: “Meu filho, escuta os meus conselhos” (Gn 27,8). Entre os conselhos que ela dá, um deles é que entreguem a ela dois cabritos. Isso significa entregar a ela o próprio corpo e a alma, consagrando-se totalmente, para que ela possa preparar uma oferta agradável a Deus. Também aconselha a fazer tudo aquilo que Jesus Cristo, seu Filho, nos ensinou, tanto com suas palavras quanto com seus exemplos. Mesmo que ela não fale diretamente com eles, ela usa os anjos para isso. E esses anjos sentem uma grande alegria e honra em obedecer ao menor pedido dela, descendo até a terra para ajudar aqueles que são seus fiéis servos.

205. 3º) Quando oferecemos e consagramos nosso corpo e nossa alma à Santíssima Virgem, sem deixar nada de fora, o que essa Mãe tão boa faz por nós? Ela faz algo parecido com o que Rebeca fez com os dois cabritos que Jacó lhe entregou: 1º) Ela nos ajuda a morrer para o velho jeito de viver, marcado pelo pecado, como se nos tirasse essa “vida velha”; 2º) Ela nos “descasca”, por assim dizer, tirando de nós tudo que é apenas natural: nossas vontades próprias, nosso egoísmo, nossos apegos às coisas do mundo; 3º) Ela nos purifica, nos limpa de qualquer pecado ou impureza; 4º) Ela nos prepara de um jeito que agrada a Deus e que o glorifica ainda mais. Maria conhece perfeitamente o que agrada a Deus e o que dá mais glória a Ele. Por isso, só ela consegue preparar nossa vida de um jeito que seja totalmente conforme esse desejo tão alto e tão profundo do Senhor.

206. 4º) Depois que essa boa Mãe recebe a oferta perfeita que fizemos de nós mesmos — com tudo o que somos e temos, inclusive nossos méritos e sofrimentos — por meio da devoção de que falamos, ela nos transforma. Tira de nós os velhos hábitos e nos limpa, deixando-nos prontos e dignos para nos apresentarmos diante de Deus, nosso Pai do céu. 1º) Ela nos veste com roupas limpas, novas, preciosas e perfumadas, como as de Esaú, o filho mais velho, que aqui representa Jesus Cristo, seu Filho. Essas roupas ela guarda em sua casa, ou melhor, ela tem o poder de distribuir, porque é como uma administradora de todos os méritos e virtudes de Jesus. Ela entrega esses dons a quem quiser, quando quiser, da forma que quiser e na quantidade que quiser. 2º) Ela envolve o pescoço e as mãos de seus servos com a pele dos carneiros mortos e preparados, o que significa que ela os reveste com o valor e os méritos de suas próprias ações. Ela nos ajuda a deixar de lado tudo que é impuro ou imperfeito, mas não joga fora o bem que já temos por causa da graça de Deus. Pelo contrário, ela guarda e aumenta esse bem para nos deixar mais fortes, capazes de carregar o “jugo” do Senhor (a responsabilidade de seguir Jesus) e realizar coisas grandes para a glória de Deus e a salvação das pessoas. 3º) Ela também dá um novo perfume e uma nova graça a essas roupas e ornamentos. Isso acontece porque elas entram em contato com as vestes dela mesma — com seus próprios méritos e virtudes — que ela deixou de presente, como uma herança, segundo revelou uma santa religiosa do século XVII. Por isso, todos os que são verdadeiramente servos e escravos fiéis de Maria ficam duplamente vestidos: com as roupas dela e com as de seu Filho (Pr 31,21). Assim, eles não precisam ter medo do frio de Jesus Cristo — branco como a neve — que os condenados, por estarem nus e sem os méritos de Jesus e de Maria, não conseguirão suportar.

207. 5º) Por fim, Maria consegue para eles a bênção de Deus Pai, mesmo que sejam apenas filhos adotivos, e por isso, naturalmente, não tivessem direito a essa bênção. Mas, com suas roupas novas, bonitas e perfumadas, com o corpo e a alma bem preparados e dispostos, eles se aproximam com confiança do “leito” do Pai do Céu. Deus os escuta e reconhece a voz deles — que ainda é a voz de um pecador —, toca suas mãos cobertas de pelos (como as de Esaú na história), sente o perfume que vem das vestes deles, e se alegra com o “prato” que Maria preparou. Ao reconhecer neles os méritos e o bom perfume de seu Filho Jesus e de Maria, sua Mãe Santíssima: 1º) Ele lhes dá uma bênção dupla. A primeira é o “orvalho do céu” (Gn 27,28) — ou seja, a graça divina, que é como a semente da glória eterna. Como está escrito: Ef 1,3) — Deus nos abençoou com toda a bênção espiritual em Cristo Jesus. A segunda é a “fertilidade da terra” (Gn 27,28) — ou seja, Deus também lhes dá o pão de cada dia e os bens materiais de que precisam. 2º) Ele os torna senhores dos seus outros irmãos, os réprobos (aqueles que rejeitaram a graça), mesmo que essa superioridade nem sempre apareça neste mundo passageiro, onde muitas vezes os maus parecem estar no comando. Como diz a Escritura: “Os pecadores falam com orgulho e se exaltam” (Sl 93,3-4), e: “Vi o ímpio exaltado e elevado” (Sl 36,35). Mas essa superioridade é verdadeira e será revelada para sempre na eternidade, onde, como diz o Espírito Santo, os justos governarão e comandarão as nações (Sb 3,8). 3º) E Deus, em sua majestade, não só os abençoa pessoalmente e abençoa todos os bens que eles possuem, como também abençoa todos aqueles que eles abençoarem. E, ao contrário, amaldiçoa todos os que os amaldiçoarem ou os perseguirem.

§ II. Ela os mantém.

208. O segundo gesto de amor que a Santíssima Virgem tem para com seus servos fiéis é cuidar de tudo o que eles precisam, tanto para o corpo quanto para a alma. Ela lhes dá roupas completas, como já vimos antes, e os alimenta com os melhores alimentos da mesa de Deus. Ela lhes oferece o pão da vida que ela mesma preparou: “A generationibus meis implemini” (Eclo 24,26), que quer dizer: “Meus filhos queridos, encham-se dos meus frutos”, ou seja, de Jesus, o fruto da vida que eu trouxe ao mundo para vocês. Ela continua a dizer: “Venite, comedite panem meum et bibite vinum quod miscui vobis” (Pr 9,5), e também: “Comedite et bibite, et inebriamini, carissimi” (Ct 5,1), o que significa: “Venham, comam do meu pão, que é Jesus, e bebam do vinho do seu amor, que preparei para vocês com o leite dos meus seios.” Como Maria é a tesoureira e aquela que distribui os dons e graças de Deus, ela escolhe para seus filhos e servos a melhor parte, a mais rica, para alimentá-los e sustentá-los. Eles são fortalecidos com o pão vivo e ficam cheios do vinho que produz almas puras (cf. Zc 9,17). São levados ao colo, (Is 66,12), e carregam o jugo de Jesus Cristo com tanta leveza que quase não sentem o peso, porque ela o amacia com o óleo da devoção, fazendo com que ele “se desfaça” de leveza (Is 10,27).

§ III. Ela conduz eles.

209. O terceiro bem que a Santíssima Virgem faz aos seus servos fiéis é guiá-los e conduzi-los conforme a vontade de seu Filho. Assim como Rebeca orientava o jovem Jacó, dando conselhos para que ele recebesse a bênção de Isaac e também para escapar da raiva de Esaú, Maria, que é a estrela do mar, conduz todos os seus servos fiéis até o porto seguro. Ela mostra o caminho para a vida eterna, evita que caiam em perigos, segura suas mãos nos caminhos da justiça, os sustenta quando estão prestes a cair e os levanta quando já caíram. Quando erram, ela os corrige com carinho, como uma mãe cheia de amor, e às vezes até os castiga com ternura. Um filho obediente a Maria pode errar o caminho que leva ao céu? São Bernardo responde: “Seguindo-a, não se perderá”. Não há motivo para temer que um verdadeiro filho de Maria seja enganado pelo demônio ou caia em alguma heresia. Onde a mão de Maria guia, o espírito maligno não se aproxima com suas mentiras, nem os hereges com seus enganos. “Se ela te segura, você não cai”[1].

§ IV. Ela defende e protege eles.

210. O quarto favor que a Santíssima Virgem concede a seus filhos e servos fiéis é protegê-los de seus inimigos. Rebeca, com sua atenção e sabedoria, salvou Jacó dos perigos que o ameaçavam, principalmente da morte que Esaú tinha prometido. Esaú, cheio de raiva e inveja, teria cumprido essa ameaça, como Caim fez com seu irmão Abel. Da mesma forma, Maria, a Mãe misericordiosa daqueles que estão destinados ao Céu, protege seus filhos com o seu amor. Ela os acolhe debaixo de suas asas, como uma galinha protege seus pintinhos. Ela conversa com eles, se aproxima com carinho, entende suas fraquezas e os defende das armadilhas do inimigo. Maria está sempre com eles, como um exército preparado para a batalha: “como um exército em ordem de combate” (Ct 6,3). Agora pense: alguém que é protegido por um exército de cem mil soldados teria medo de algum inimigo? Pois o servo fiel de Maria deve ter ainda menos medo, pois está cercado pela proteção e pela força da sua Mãe Santíssima. Essa Mãe e Rainha tão poderosa preferiria enviar legiões de milhares de anjos para socorrer um único de seus servos do que permitir que alguém que se entregou a ela caísse por causa da maldade, do número ou da força dos inimigos.

§ V. Ela intercede por eles.

211. O quinto e maior bem que a bondosa Maria oferece aos seus fiéis devotos é este: ela intercede por eles diante de seu Filho, acalma o coração d'Ele com suas orações, une essas pessoas a Jesus com um laço forte e faz com que permaneçam firmes nessa união. Rebeca mandou Jacó se aproximar do leito de Isaac. O pai, já idoso, tocou as mãos e os braços do filho, abraçou-o e o beijou com alegria, mostrando que ficou contente com a comida que Jacó lhe trouxe. E, ao sentir o perfume que vinha das roupas de Esaú, exclamou: “Eis que o cheiro do meu filho é como o cheiro de um campo cheio de flores, que o Senhor abençoou” (Gn 27,27). Esse campo florido, cujo perfume agrada tanto o coração do pai, representa as virtudes e os méritos de Maria. Ela é como um campo cheio da graça de Deus, no qual o Pai plantou, como o grão dos escolhidos, seu Filho único.
Oh! Como é bem recebido por Jesus, o Rei eterno, aquele filho que traz em si o bom perfume de Maria! E quão profundamente ele se une a Cristo — isso já foi explicado com clareza antes.

212. Além de encher de graças seus filhos e servos fiéis, Maria Santíssima consegue para eles a bênção do Pai do Céu e a união com Jesus Cristo. E mais ainda: ela os mantém unidos a Jesus, e faz com que Jesus permaneça neles. Ela os protege e cuida deles o tempo todo, para que não percam a graça de Deus e não caiam nas armadilhas do inimigo: ela conserva os santos em sua plenitude[2]. E os ajuda a permanecer fiéis até o fim, como já vimos. É isso que explica essa grande e antiga imagem da salvação e da condenação, uma figura tão pouco conhecida e, ao mesmo tempo, cheia de mistérios.
____________________
1. Palavras de São Bernardo, citadas e comentadas mais acima, n. 174.
2. Palavras de São Boaventura já citadas e comentadas (n. 174).
8ª parte

  Capítulo VII

Efeitos maravilhosos que esta devoção produz numa alma que lhe é fiel

Meu querido irmão, tenha certeza disso: se você for fiel às práticas interiores e exteriores dessa devoção, que vou explicar a seguir:

  Artigo I (213)

Conhecimento e desprezo de si mesmo

213. 1º) Pela luz que o Espírito Santo vai te dar através de Maria, sua amada Esposa, você vai perceber o quanto há de mal dentro de você, vai reconhecer sua fragilidade e que, por si só, não consegue fazer o bem como deveria. Com esse entendimento, você vai deixar de se achar importante e vai até sentir certo horror ao pensar em si mesmo. Vai se enxergar como uma lesma que suja tudo por onde passa, como um sapo que espalha veneno ou como uma serpente traiçoeira que só pensa em enganar. A humilde Maria vai te dar uma parte da sua própria humildade tão profunda, e com isso você vai aprender a se colocar em seu lugar sem se achar melhor que ninguém, e até vai sentir alegria em ser deixado de lado ou não ser reconhecido.

  Artigo II (214)

Participação da fé de Maria

214. 2º) A Santíssima Virgem vai te dar uma parte da fé dela — a maior fé que já existiu na terra. Ela teve mais fé do que todos os patriarcas, profetas, apóstolos e santos juntos. Agora que está no céu, ela já não precisa mais dessa fé, pois vê tudo claramente em Deus, com os olhos da glória. Mas, com a permissão de Deus, ela não perdeu essa fé ao entrar no céu; ela a guardou para oferecer aos seus servos e servas fiéis na Igreja militante - aqueles que ainda lutam aqui na terra. Quanto mais você agradar essa Princesa e Virgem fiel, mais fé você vai ter em tudo o que fizer: uma fé pura, que te fará deixar de lado o que é visível e extraordinário; uma fé viva e cheia de amor, que fará com que tudo o que você fizer seja por amor verdadeiro; uma fé firme, que não se abala nem nas maiores dificuldades; uma fé ativa e profunda, como uma chave misteriosa que te permite entrar nos mistérios de Jesus, nos assuntos mais sérios da vida e até no coração de Deus; uma fé corajosa, que te ajudará a começar e realizar grandes coisas para Deus e para salvar almas. Por fim, essa fé será como uma luz que te guia, o caminho para Deus, um tesouro escondido cheio de sabedoria divina, e uma arma invencível. Com ela, você vai iluminar quem está perdido na escuridão, aquecer os corações frios, dar vida nova aos que estão mortos pelo pecado, tocar e mudar os corações mais duros, e vencer o demônio e todos os inimigos da sua salvação.

  Artigo III (215)

Graça do puro amor

215. 3º) Esta Mãe, que é cheia de amor verdadeiro (Eclo 24,24), vai tirar do seu coração todo medo exagerado e todo tipo de preocupação que te deixa preso ou paralisado. Ela vai abrir o seu coração e alargá-lo, para que você consiga seguir os mandamentos de seu Filho com liberdade e alegria, como um verdadeiro filho de Deus. E também vai encher o seu coração com o amor puro, pois ela tem um tesouro cheio desse amor. Assim, você não vai mais viver como talvez tenha vivido até agora, obedecendo a Deus apenas por medo. Vai passar a obedecer por amor, e só por amor. Vai enxergar Deus como um Pai muito bondoso, e o seu desejo vai ser agradá-lo o tempo todo. Vai conversar com Ele de forma próxima, como um filho fala com seu pai. E se um dia você cometer algum erro e ofendê-lo, vai se humilhar diante d’Ele com arrependimento, pedir perdão com humildade, estender a mão com confiança, e se levantar com amor, sem ficar se culpando demais ou se desesperar. E, com paz no coração, vai continuar seguindo seu caminho rumo a Ele.

  Artigo IV (216)

Grande confiança em Deus e em Maria

216. 4º) A Santíssima Virgem vai te encher de grande confiança em Deus e nela mesma, por alguns motivos: 1º) Porque, de agora em diante, você não vai mais buscar Jesus Cristo sozinho — sempre irá a Ele por meio dessa boa Mãe. 2º) Porque, tendo você entregado a Maria todos os seus méritos, graças e sacrifícios, para que ela disponha como quiser, ela te dará suas virtudes e te vestirá com seus méritos. Assim, você poderá dizer a Deus confiante: “Eis-me aqui, Senhora; faça-se em mim conforme a tua palavra” (Lc 1,38). 3º) Porque, se você se entregou inteiramente a ela — corpo e alma —, ela, muito generosa, dará tudo de si a você. Você poderá dizer-lhe com coragem: “Santíssima Virgem, eu Vos pertenço; salvai-me!” (Sl 118,94). Como já afirmei antes, você poderá dizer com o discípulo amado: “Recebi-Vos como tudo o que tenho.” Você também poderá dizer, junto com São Boaventura: "Eis aqui minha Senhora e salvadora! Agirei com confiança e não terei medo, pois és minha força e meu louvor no Senhor..."[1]. E, em outro momento, ele diz: "Sou todo teu, e tudo o que é meu também é teu; ó Virgem gloriosa, bendita mais que todas as criaturas, coloco-te como um selo sobre meu coração, porque teu amor é forte como a morte"[2]. E a Deus poderá dizer, cheio de humildade (Sl 130,1-2): “Senhor, não elevei meu coração nem me gloriarei; nem busquei coisas grandiosas; mas, como uma criança pequena, confio em Vós e sigo humilde, como quem volta ao colo da mãe. É nesse colo que encontro todos os bens”. 4º) E o que fortalece ainda mais sua confiança em Maria é saber que você lhe confiou tudo o que tem de bom — tanto o que já foi conquistado quanto aquilo que espera conquistar — e agora dependerá menos de si e muito mais dela. Que consolação para uma alma saber que seu tesouro está guardado nesse lugar seguro! “Ela é o tesouro do Senhor” [3] — já diz um santo. Então confie: a Santíssima Virgem será seu refúgio, sua guia e seu tesouro.
______________________
1. Psalter. maius B.V., Cant. instar Is 12,2.
2. Psalter. maius B.V., Cant. instar Ex 15.
3. Idiota (In contemplationo B.M.V.).

  Artigo V (217)

Comunicação da alma e do espírito de Maria

217. 5º) A alma da Santíssima Virgem se unirá à sua alma para que você possa glorificar o Senhor; o espírito de Maria entrará em você para que você possa alegrar-se em Deus — desde que você viva com fidelidade essa devoção. “Que a alma de Maria esteja em cada um, para ali glorificar o Senhor; que o espírito de Maria esteja em cada um, para ali exultar em Deus”[1]. Ah! Quando será esse tempo feliz — dizia um santo dos nossos dias, devoto de Maria — quando Maria será Senhora e Rainha dos corações, reinando plenamente sobre eles para torná-los totalmente de seu grande e único Jesus? Quando será o dia em que as almas passarão a respirar como se fosse Maria, tal como o corpo respira o ar? Então, coisas maravilhosas acontecerão neste mundo. O Espírito Santo, ao ver que sua Amada Esposa está presente nas almas, descerá com abundância, enchendo-as de dons — especialmente o dom da sabedoria — para realizar maravilhas de graça. Meu querido irmão, quando chegará esse tempo feliz? Esse século dedicado a Maria, em que inúmeras almas escolhidas, mergulhadas em seu interior, se tornarão cópias vivas de Maria, para amar e glorificar Jesus Cristo? Esse tempo só chegará quando a devoção que ensino for conhecida e vivida: “Que venha o teu reino, venha o reino de Maria.”
____________________
1. SANTO AMBRÓSIO (Expositio in Lc, 1. III, n. 26).

  Artigo VI (218-221)

Transformação das almas em Maria à imagem de Jesus Cristo

218. 6º) Se cultivarmos bem Maria — que é a Árvore da Vida — dentro da nossa alma, seguindo com fidelidade os atos desta devoção, ela dará fruto na hora certa; e esse fruto é ninguém menos que Jesus Cristo. Vejo muitas pessoas que procuram Jesus por vários caminhos. Algumas passam noites inteiras rezando, lutando com a oração, e acabam dizendo: “Passamos a noite toda trabalhando, e não conseguimos nada” (Lc 5,5). Mas podemos responder a elas: “Vocês se esforçaram demais e conseguiram pouco”[1]. Isso acontece porque Jesus ainda está fraco dentro delas. Por outro lado, se formos pelo caminho puro de Maria e praticarmos essa devoção verdadeira que estou ensinando, nosso “trabalho espiritual” não exige tanto esforço nem tantas noites em claro. Trabalha‑se de dia, em um lugar santo — o coração limpo — e com simplicidade. Com Maria não existe noite espiritual, porque ela nunca pecou, nunca teve sombra de pecado. Ela é o lugar santo — o Santo dos Santos — onde se formam e amadurecem os santos.

219. Repare bem no que estou dizendo: os santos são moldados em Maria. Existe uma grande diferença entre esculpir uma imagem com martelo e cinzel, e moldá-la com um molde pronto. Os escultores, quando fazem uma imagem à mão, têm muito trabalho e gastam bastante tempo. Já quando usam um molde, o esforço é bem menor e tudo fica pronto bem mais rápido. Santo Agostinho chama a Santíssima Virgem de “forma Dei”, ou seja, o molde de Deus. Ele diz: “Se eu te chamar de molde de Deus, estou te dando o nome certo”[2]. Maria é o molde ideal para formar, por assim dizer, pequenos “deuses” — ou seja, pessoas cheias de Jesus Cristo. Aquele que se entrega a esse molde divino, ou seja, à Virgem Maria, logo será formado em Jesus Cristo, e Jesus Cristo será formado nele. Com pouco esforço e em pouco tempo, essa pessoa se tornará parecida com o próprio Deus, porque foi moldada no mesmo molde que formou o próprio Filho de Deus.

220. Eu acho que posso comparar bem alguns diretores espirituais e pessoas devotas que tentam formar Jesus Cristo em si mesmas ou nos outros, por outros caminhos diferentes deste que ensino, com escultores. Esses escultores confiam totalmente na própria habilidade, no que sabem fazer, e então dão marteladas e mais marteladas, desgastam seus cinzéis em pedras duras ou madeiras ásperas, tentando esculpir a imagem de Jesus Cristo. Só que, muitas vezes, não conseguem representar Jesus como Ele realmente é — seja por falta de habilidade, seja por um erro que estraga toda a obra. Já aqueles que seguem este segredo da graça que estou ensinando, eu os comparo a pessoas que trabalham com moldes. Esses não confiam em suas próprias habilidades, mas se utilizam de um molde perfeito — Maria — em quem Jesus Cristo foi formado de modo natural e divino. Assim, em vez de tentar moldar a si mesmos, eles se lançam com confiança dentro desse molde, se deixam formar por ele, e se tornam imagens fiéis de Jesus Cristo.

221. Que comparação bonita e verdadeira! Mas quem será que vai entendê-la de verdade? Espero que seja você, meu querido irmão. Só que é importante lembrar de uma coisa: só se coloca no molde aquilo que já foi derretido e está líquido. Ou seja, é preciso destruir em você tudo o que pertence ao “velho Adão” — suas más inclinações, o egoísmo, o orgulho — para que, então, um homem novo possa ser formado dentro de Maria.
____________________
1. Ag 1,6 (O texto exato diz: “Seminastis multum ...”).
2. Sermo 208 (inter opera S. Augustini): “Sois digna de ser chamada o molde de Deus”.

  Artigo VII (222-225)

A maior glória de Jesus Cristo

222. 7º) Se você seguir com fidelidade esta prática, vai dar mais glória a Jesus Cristo em um único mês do que com outras práticas, mesmo que mais difíceis, durante muitos anos. Aqui estão os motivos do que estou dizendo: 1º) Quando você age por meio da Santíssima Virgem, como esta devoção ensina, você deixa de lado suas próprias intenções e esforços, mesmo que sejam bons e sinceros, para mergulhar nas intenções de Maria, mesmo sem entendê-las totalmente. Com isso, você participa da grandeza das intenções dela, que eram tão puras, que ela deu mais glória a Deus com as ações mais simples — como fiar com a roca ou dar um ponto de agulha — do que São Lourenço deu com seu martírio terrível na grelha, ou mesmo todos os santos com suas ações mais heroicas. Durante sua vida, Maria conquistou uma quantidade imensa de graças e méritos, tão grande que seria mais fácil contar as estrelas do céu, as gotas do oceano ou os grãos de areia da praia, do que contar essas graças. Ela deu mais glória a Deus do que todos os anjos e santos juntos — mais do que todos juntos deram ou poderão dar. Ó maravilha de Maria! Só vós podeis fazer esses milagres de graça nas almas que desejam, com humildade, mergulhar em vós.

223. 2º) Porque uma alma que vive essa prática considera como nada tudo o que pensa ou faz por conta própria, e confia totalmente nas atitudes e virtudes de Maria para se aproximar de Jesus Cristo e até para falar com Ele. Isso faz com que essa alma pratique uma humildade muito maior do que aquelas que confiam apenas em si mesmas e se orgulham das próprias qualidades. E é justamente por essa humildade que ela dá mais glória a Deus, pois Deus é perfeitamente glorificado apenas pelos humildes e pelos que têm um coração simples.

224. 3º) Porque a Santíssima Virgem, movida por sua imensa caridade, aceita em suas mãos puras e virginais o presente das nossas ações e o embeleza de forma maravilhosa. Ela mesma apresenta essas ações a Jesus Cristo, e assim, o Senhor recebe muito mais glória do que se nós mesmos as entregássemos com nossas mãos marcadas pelo pecado.

225. 4º) Por fim, porque toda vez que você pensa em Maria, ela, por sua vez, pensa em Deus por você. E sempre que você a louva ou a honra, ela louva e honra a Deus junto com você. Maria está totalmente unida a Deus. Eu poderia muito bem chamá-la de “relação de Deus”, porque tudo nela está voltado para Ele; ou de “eco de Deus”, porque tudo o que ela diz e repete é sobre Deus. Quando Santa Isabel louvou Maria e a chamou de feliz por ter acreditado, Maria, sendo o eco fiel de Deus, respondeu: “Minha alma glorifica o Senhor” (Lc 1,46). O que Maria fez naquele momento, ela continua fazendo todos os dias: quando a louvamos, amamos, honramos ou lhe oferecemos algo, é Deus quem recebe esse louvor, esse amor e essa honra, por meio de Maria e nela.
9ª parte

  Capítulo VIII

Práticas particulares desta devoção

ARTIGO I - Práticas exteriores

ARTIGO II - Práticas especiais e interiores para os que querem tornar-se perfeitos

  Artigo I (226-256)

Práticas exteriores

226. Embora o mais importante dessa devoção esteja no interior do coração, ela também tem práticas exteriores que não devem ser deixadas de lado. Jesus mesmo disse: “É preciso fazer estas coisas sem deixar aquelas” (Mt 23,23). Isso porque as práticas exteriores, quando bem feitas, ajudam a fortalecer as interiores. Além disso, servem para lembrar ao ser humano — que se guia muito pelos sentidos — o que já fez e o que ainda precisa fazer. Essas práticas também edificam os outros que as veem, o que não acontece com aquilo que se vive apenas no íntimo. Por isso, ninguém do mundo deve criticar ou desvalorizar essas práticas dizendo que a verdadeira devoção está apenas no coração, ou que é preciso evitar gestos externos porque podem ser vaidosos, ou que o melhor seria esconder a própria fé. A essas pessoas, respondo com as palavras de Jesus: “Assim brilhe a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem vosso Pai que está nos céus” (Mt 5,16). Isso não quer dizer — como lembra São Gregório[1] — que devemos fazer essas ações para sermos vistos ou elogiados, pois isso seria vaidade. Mas sim que podemos realizá-las diante dos outros, com a intenção sincera de agradar a Deus e dar glória a Ele, sem nos preocupar com os elogios ou críticas que receberemos. Agora, vou citar algumas dessas práticas exteriores, de forma breve. Chamo-as de “exteriores” não porque sejam feitas sem o coração, mas porque envolvem algum sinal externo, em contraste com as que são totalmente interiores.

§ I. Consagração depois de exercícios preparatórios.

227. Primeira prática. As pessoas que desejam viver esta devoção — que ainda não foi organizada como uma confraria, embora isso fosse o ideal[2] —, depois de passarem, como já expliquei na primeira parte desta preparação para o reino de Jesus Cristo[3], ao menos doze dias se desapegando do espírito do mundo, que é contrário ao espírito de Cristo, deverão então dedicar três semanas para se encher de Jesus Cristo por meio da Santíssima Virgem[4]. A seguir está a ordem que elas poderão seguir:

228. Durante a primeira semana, todas as orações e atos de piedade devem ser feitos com o objetivo de pedir a graça de se conhecer melhor e sentir verdadeira dor pelos pecados cometidos. Tudo deve ser feito com humildade. Para ajudar, pode-se meditar sobre aquilo que já foi falado sobre a maldade que existe dentro de nós[5]. Durante os seis dias desta semana, considere-se como uma lesma, um sapo, um porco, uma serpente ou um bode; ou então pense nestas palavras de São Bernardo: “Lembra-te do que foste: uma semente podre; do que és: um vaso cheio de sujeira; e do que serás: comida de vermes”[6]. Peçam a Nosso Senhor e ao Espírito Santo que lhes deem essa luz, dizendo: “Senhor, fazei que eu veja”[7]; ou “Que eu me conheça”[8]; ou ainda rezando “Vinde, Espírito Santo”. Todos os dias, recitem a ladainha do Espírito Santo e a oração que vem em seguida[9]. Procurem também a ajuda da Santíssima Virgem, pedindo a ela essa grande graça, que será a base de todas as outras graças. Para isso, rezem todos os dias o “Ave, Maris Stella” e as ladainhas.

229. Durante a segunda semana, a pessoa deve se dedicar, em todas as suas orações e atividades diárias, a conhecer melhor a Santíssima Virgem. Deve pedir ao Espírito Santo essa graça de conhecê-la mais profundamente. Pode reler e meditar tudo o que já foi explicado sobre ela até agora. Também deve continuar rezando, como fez na primeira semana: as ladainhas do Espírito Santo, o “Ave, Maris Stella” e, todos os dias, um rosário completo ou, pelo menos, um terço, com essa intenção.

230. A terceira semana deve ser dedicada a conhecer melhor Jesus Cristo. Você pode ler e refletir sobre o que já foi dito sobre Ele, e também rezar a oração de Santo Agostinho que está no número 67. Pode ainda repetir muitas vezes ao longo do dia, como fez o próprio santo: “Noverim te – Senhor, que eu vos conheça” ou “Domine, ut videam – Senhor, fazei que eu veja quem sois”. Como nas semanas anteriores, continue rezando as ladainhas do Espírito Santo e o “Ave, Maris Stella”, e acrescente também as ladainhas do Santíssimo Nome de Jesus.

231. Ao final dessas três semanas, devem se confessar e comungar com a intenção de se entregarem a Jesus Cristo como escravos de amor, pelas mãos de Maria. Depois da comunhão — que devem fazer com atenção, seguindo o método que será explicado mais adiante (veja o nº 266) — devem rezar a fórmula de consagração, que também está mais à frente (veja na página 280). É importante que escrevam essa fórmula com a própria mão, ou que peçam a alguém para escrevê-la, caso não a tenham impressa, e que a assinem no mesmo dia em que fizerem a consagração.

232. Nesse dia, é bom oferecer algo a Jesus Cristo e à sua Mãe Santíssima. Pode ser como sinal de arrependimento por não terem sido fiéis às promessas do batismo, ou como forma de mostrar que querem viver como verdadeiros servos de Jesus e de Maria. Esse presente ou oferta vai depender da devoção e da possibilidade de cada um. Pode ser um jejum, uma pequena penitência, uma esmola ou até acender uma vela. Mesmo que a pessoa só consiga oferecer algo simples, como um alfinete, se for com um coração sincero, isso já é suficiente para Jesus, que olha a intenção com que se faz a oferta.

233. Todos os anos, pelo menos no mesmo dia em que fizeram a consagração, deverão renová-la, seguindo as mesmas práticas durante três semanas. Se quiserem, podem renovar essa entrega até todos os meses ou até mesmo todos os dias, dizendo apenas estas poucas palavras:
“Tuus totus ego sum, et omnia mea tua sunt” – Sou todo vosso e tudo o que tenho vos pertence, ó meu amado Jesus, por Maria, vossa Mãe Santíssima[10].

§ II. Rezando a coroinha da Santíssima Virgem.

234. Segunda prática. Rezarão todos os dias da vida, mas sem se sentirem obrigados ou forçados, a Coroinha da Santíssima Virgem. Ela é feita de três Pai-Nossos e doze Ave-Marias, em honra dos doze privilégios e grandezas de Nossa Senhora. Essa prática é bem antiga e tem base na própria Bíblia. São João, no livro do Apocalipse, viu uma mulher coroada com doze estrelas, vestida com o sol e com a lua sob os pés (Ap 12,1). Segundo muitos estudiosos[11], essa mulher é a própria Santíssima Virgem.

235. Existem muitos jeitos diferentes de rezar bem essa coroinha, e seria muito longo explicar todos aqui. O Espírito Santo vai inspirar aqueles que forem mais fiéis a essa devoção. Para rezá-la bem de forma simples, comece dizendo: Dignai-vos permitir que eu vos louve, Virgem sagrada; dai-me força contra os vossos inimigos[12]. Depois, reze o Credo, em seguida um Pai-Nosso, quatro Ave-Marias e um Glória ao Pai. Depois, de novo: um Pai-Nosso, quatro Ave-Marias e um Glória ao Pai, e assim por diante. Ao final, reze a oração “Sub tuum praesidium”.

§ III. Usar pequenas cadeias de ferro.

236. Terceira prática. É algo muito bonito, digno e proveitoso para os que quiserem mostrar que são escravos de Jesus por meio de Maria, usar pequenas correntes de ferro como sinal dessa entrega amorosa. Essas correntes devem ser abençoadas com uma bênção especial[13]. É verdade que esse sinal exterior não é algo essencial, e uma pessoa pode muito bem seguir essa devoção sem usar as correntes. No entanto, não posso deixar de elogiar aqueles que, depois de se libertarem das correntes vergonhosas da escravidão ao demônio — nas quais o pecado original e, talvez, os pecados cometidos os tinham lançado — se entregam livremente à santa escravidão de Jesus Cristo. Eles se alegram, como São Paulo, por estarem “acorrentados” por amor a Jesus (cf. Ef 3,1), usando correntes que, mesmo sendo de ferro, simples e sem brilho, são mais valiosas e honrosas do que qualquer colar de ouro usado por um imperador.

237. Antigamente, a cruz era vista como um símbolo de vergonha e humilhação. Mas hoje, ela se tornou o sinal mais glorioso do cristianismo. O mesmo pode ser dito sobre as correntes da escravidão. No passado, e até hoje entre os pagãos, nada era mais desonroso. Mas, entre os cristãos, essas correntes que usamos por amor a Jesus Cristo são um sinal de grande honra. Elas nos libertam e nos protegem das correntes vergonhosas do pecado e do demônio. Trazem de volta a verdadeira liberdade e nos unem a Jesus e a Maria — não por obrigação ou força, como se fôssemos prisioneiros, mas sim por amor, como filhos: “Eu os atrairei a mim com laços de amor” (Os 11,4), diz Deus por meio do profeta. Esses laços de amor são tão fortes quanto a morte (cf. Ct 8,6), e, de certa forma, ainda mais fortes para quem os carrega fielmente até o fim da vida. Mesmo que a morte destrua o corpo e ele se transforme em pó, essas correntes da santa escravidão, por serem de ferro, não se corrompem com facilidade. E, no dia da ressurreição, no Juízo Final, quem sabe se essas correntes, ainda presas aos ossos dos fiéis, não se tornarão parte da sua glória, transformadas em correntes de luz e esplendor? Felizes, mil vezes felizes, são os que vivem e morrem como fiéis escravos de Jesus em Maria, usando essas correntes até o túmulo!

***

238. Aqui estão os motivos pelos quais se usam essas pequenas correntes - cadeias:
1º) Elas ajudam o cristão a se lembrar dos votos e promessas feitos no batismo. Ao viver essa devoção, a pessoa faz uma renovação completa desses compromissos, e se compromete seriamente a permanecer fiel a Deus. Como o ser humano costuma ser mais influenciado pelos sentidos do que pela fé, é fácil esquecer suas obrigações para com Deus se não tiver algo que o ajude a se lembrar. Por isso, essas cadeias têm a função de lembrar o cristão das correntes - cadeias - do pecado e da escravidão ao demônio, das quais ele foi libertado pelo batismo. Também recordam a entrega que ele fez a Jesus Cristo nesse sacramento e a confirmação dessa entrega ao renovar suas promessas. Um dos motivos pelos quais tantos cristãos se esquecem das promessas feitas no batismo — e acabam vivendo de forma desregrada, como se nunca tivessem prometido nada a Deus, como se fossem pagãos — é o fato de não usarem nenhum sinal visível que os ajude a lembrar disso.

239. 2º) Essas cadeias mostram que a pessoa não sente vergonha de ser escrava e serva de Jesus Cristo, e que deixou para trás a triste escravidão do mundo, do pecado e do demônio.
3º) Elas também servem como proteção, ajudando a pessoa a se manter longe das correntes do pecado e das armadilhas do demônio. Pois, ou estamos presos pelas correntes do inimigo, ou usamos as correntes do amor e da salvação: correntes do pecado ou correntes da caridade.

240. Ah! meu querido irmão, vamos quebrar de vez as correntes do pecado e dos que vivem no pecado, do mundo e das coisas mundanas, do demônio e daqueles que o seguem. Vamos lançar bem longe de nós esse jugo que só nos faz mal: “Vamos romper as suas correntes e jogar para longe de nós o seu jugo” (Sl 2,3). Vamos colocar nossos pés, como diz o Espírito Santo, nessas correntes gloriosas e o nosso pescoço nessas correntes santas: “Coloca teu pé nos seus grilhões, e o teu pescoço em suas correntes” (Eclo 6,25). Vamos nos abaixar e carregar com alegria a Sabedoria, que é o próprio Jesus Cristo, e não vamos reclamar das Suas correntes: “Inclina teu ombro e carrega-a, e não fiques impaciente com os seus grilhões” (Eclo 6,26). Você vai perceber que o Espírito Santo, antes de dizer isso tudo, prepara o nosso coração para que não recusemos esse conselho tão importante. Ele diz: “Escuta, filho, aceita esse conselho de sabedoria e não rejeites minha orientação” (Eclo 6,24).

241. Permita-me, querido amigo, unir-me aqui ao Espírito Santo para dar a você o mesmo conselho: “As correntes dele são correntes de salvação” (Eclo 6,31). Jesus, ao ser levantado na cruz, disse que atrairia todos a si, e, de um jeito ou de outro, isso vai acontecer. Ele atrairá os condenados com as correntes de seus próprios pecados, acorrentando-os, como prisioneiros e demônios, à sua justiça e à sua ira eterna. Mas, especialmente nos tempos finais, Ele atrairá os escolhidos com as correntes do amor: “Atrairei todos a mim” (Jo 12,32), e também: “Eu os atrairei com laços de amor” (Os 11,4).

242. Esses servos amorosos de Jesus Cristo, também chamados de “acorrentados de Cristo” (vincti Christi – Ef 3,1), podem usar suas correntes - cadeias - como sinal dessa entrega: no pescoço, no braço, na cintura ou até nos pés. O Padre Vicente Caraffa, que foi o sétimo superior geral da Companhia de Jesus e faleceu em fama de santidade em 1643, usava um aro de ferro nos pés como sinal da sua escravidão a Cristo, e dizia que se entristecia por não poder arrastar publicamente essas correntes. A Madre Inês de Jesus, já mencionada antes (n. 170), usava sempre uma corrente de ferro na cintura. Outros preferem usar no pescoço, como penitência pelos colares de vaidade usados no mundo. Alguns as usam no braço, como lembrete, durante os trabalhos do dia a dia, de que são escravos de Jesus Cristo.

§ IV. Devoção especial ao mistério da Encarnação.

243. Quarta prática. Devem ter uma devoção especial ao mistério da Encarnação do Verbo, que celebramos no dia 25 de março[14]. Esse mistério está profundamente ligado a esta devoção, porque foi justamente inspirado pelo Espírito Santo com dois objetivos principais: 1º) Honrar e imitar a dependência que o Deus Filho quis ter de Maria, para a glória de Deus seu Pai e para a nossa salvação. Essa dependência fica especialmente clara nesse mistério, quando Jesus Cristo se faz cativo e escravo no ventre de Maria, dependendo dela em tudo. 2º) Agradecer a Deus pelas graças maravilhosas que Ele concedeu a Maria, especialmente por tê-la escolhido para ser sua digníssima Mãe — escolha que aconteceu justamente nesse mistério. Esses são os dois grandes objetivos da consagração como escravo de Jesus Cristo em Maria.

244. Quero que você preste atenção numa coisa: normalmente, eu digo “o escravo de Jesus em Maria” ou “a escravização a Jesus em Maria”. É verdade que muita gente até hoje já falou “o escravo de Maria” ou “a escravidão da Santíssima Virgem”, e essas expressões não estão erradas. Mas acredito que é melhor dizer “escravo de Jesus em Maria”, como também recomendava o Senhor Tronson, que foi superior geral do seminário de São Sulpício e era muito conhecido por sua sabedoria e profunda piedade. Ele deu esse mesmo conselho a um sacerdote que o procurou perguntando sobre esse assunto. E agora vou explicar as razões para isso:

245. Primeiro motivo: como vivemos em um tempo em que o orgulho é muito comum e há muitas pessoas que se acham sábias demais, cheias de críticas e sempre prontas para questionar até as práticas mais sólidas e bem fundamentadas da fé, é melhor evitar dar motivos para críticas desnecessárias. Por isso, é preferível dizer “escravidão de Jesus em Maria” e se chamar “escravo de Jesus Cristo” em vez de “escravo de Maria”. Dessa forma, mostramos logo que o objetivo principal dessa devoção é Jesus Cristo, e Maria Maria Santíssima é o caminho que nos leva até Ele. No entanto, é possível usar as duas expressões, sem nenhum problema ou peso na consciência — eu mesmo uso ambas. É como alguém que viaja de Orléans até Tours, passando por Amboise. Essa pessoa pode dizer que está indo para Amboise ou para Tours. A diferença é que Amboise é apenas o caminho, e Tours é o destino final da viagem.

246. Como o principal mistério que esta devoção celebra e honra é o mistério da Encarnação — onde contemplamos Jesus em Maria, encarnado no seu ventre — é mais apropriado dizer “a escravidão de Jesus em Maria”. Isso destaca Jesus vivendo e reinando dentro de Maria, como diz aquela bela oração feita por tantos santos e homens célebres: “Ó Jesus, vivendo em Maria, vinde e vivei em nós com vosso espírito de santidade”, e assim por diante.[15]

247. 3º Esse modo de falar mostra ainda mais claramente a união profunda entre Jesus e Maria. Eles estão tão unidos que um vive totalmente no outro: Jesus é tudo em Maria, e Maria é tudo em Jesus. Ou melhor dizendo, Maria já não vive por si mesma, mas é Jesus quem vive nela. Seria mais fácil separar a luz do sol do que separar Maria de Jesus. Por isso, podemos chamar Nosso Senhor de “Jesus de Maria” e a Santíssima Virgem de “Maria de Jesus”.

248. O tempo não me permite explicar agora todas as maravilhas e grandezas do mistério de Jesus vivendo e reinando em Maria, ou da Encarnação do Verbo. Por isso, digo em apenas três ideias: Esse é o primeiro mistério de Jesus Cristo — o mais oculto, o mais alto e o menos compreendido. É por esse mistério que Jesus, junto com Maria em seu seio — chamado pelos santos de “aula sacramentorum”, ou sala dos segredos de Deus[16] — escolheu todos os eleitos. Foi nele que Ele realizou, em silêncio, tudo o que viria depois: sua vida, sua missão, sua salvação(cf. Hb 10,5-9). Esse mistério resume todos os outros e contém a vontade e a graça de Deus. Ele é, enfim, o trono da misericórdia, da liberdade e da glória de Deus: Misericórdia: Porque só por Maria podemos nos aproximar de Jesus — falar com Ele, ser escutados. Jesus nunca recusa nada que Maria peça por nós. Liberalidade: Nesse mistério, no paraíso terrestre que era o seio de Maria, Jesus fez maravilhas ocultas, de modo tão sublime que nem anjos nem homens as compreendem. Por isso os santos chamam Maria de “magnificentia Dei” — “a magnificência de Deus”[17]. Glória para o Pai: Foi em Maria que Jesus reconciliou o Pai irritado por nossos pecados, restaurou a glória perdida e ofereceu o sacrifício perfeito: a si mesmo. Com isso, deu a Deus uma glória infinita, maior do que qualquer sacrifício anterior. Esse mistério — Jesus Cristo vivendo em Maria — é o centro de tudo, e quem o abraça participa dessa misericórdia, dessa glória e dessa liberdade divina.

§ V. Grande devoção à Ave-Maria e ao terço.

249. Quinta prática. Tenham uma devoção especial ao rezar a Ave‑Maria, também chamada Saudação Angélica — uma oração simples, mas de valor imenso, que mesmo muitos cristãos instruídos não conhecem bem. A Santíssima Virgem apareceu várias vezes a grandes santos para mostrar o valor dessa prece — como a São Domingos de Gusmão, São João Capistrano, e o bem‑aventurado Alano de la Roche — e eles escreveram livros inteiros sobre as maravilhas e a eficácia da Ave‑Maria para converter almas. Eles ensinaram que a salvação do mundo começou pela Ave‑Maria, e que a salvação de cada pessoa também está ligada a ela. Essa oração trouxe à terra seca e árida o fruto da vida — e de igual modo deve fazer brotar, em nós, a palavra de Deus e produzir o fruto da vida, que é Jesus Cristo. A Ave‑Maria é como um orvalho celeste: ela molha nossa alma e prepara o terreno para que Jesus cresça nela. Sem esse “orvalho”, nossa alma não dará fruto — ou dará apenas espinhos — e poderá mesmo estar exposta à maldição.

250. No livro De dignitate Rosarii, o bem‑aventurado Alano de la Roche relata que a Santíssima Virgem lhe revelou estas palavras: “Sabe, meu filho — e o anuncie a todos — que um sinal provável e próximo de condenação eterna é a aversão, a tibieza, a negligência em rezar a Saudação Angélica, que foi a reparação de todo o mundo”(cap. II). Palavras fortes e comoventes — consoladoras para quem as segue, terríveis para quem as despreza. Se não tivéssemos garantias de santos como ele, seriam difíceis de acreditar. Mas muitos outros, antes e depois, atestaram com sua vida que, de fato, aqueles que carregam os sinais de condenação — hereges, ímpios, orgulhosos e mundanos — odeiam e desprezam a Ave‑Maria e o terço. Os hereges, por exemplo, aprendem e rezam o Pai‑nosso, mas rejeitam a Ave‑Maria e o terço; preferem até carregar uma serpente no peito a segurar um rosário. E os orgulhosos — mesmo sendo católicos — têm as mesmas inclinações do antigo Lúcifer: ignoram ou zombam da Ave‑Maria, consideram o terço uma devoção “fraca”, indicada apenas para quem é ignorante. Por outro lado, quem demonstra sinais de predestinação ama profundamente a Ave‑Maria e o rosário, e o recita com alegria. Quanto mais próximo de Deus alguém está, mais a valoriza. A própria Santíssima Virgem disse isso ao bem‑aventurado Alano, logo após as palavras que citei.

251. Eu não sei exatamente como isso acontece, nem o motivo, mas é verdade: não conheço segredo melhor para saber se uma pessoa é de Deus do que observar se ela gosta de rezar a Ave-Maria e o terço. Digo "gosta", porque pode acontecer que alguém esteja impedido — por uma razão natural ou até espiritual — de rezar, mas ainda assim ama essa oração e incentiva outros a rezarem.

***

252. Almas escolhidas por Deus, que se tornaram escravas de Jesus por meio de Maria, entendam uma coisa muito importante: a Ave-Maria é a oração mais bela de todas, depois do Pai-Nosso. É a saudação mais perfeita que vocês podem dirigir à Virgem Maria, pois foi o próprio Deus quem a inspirou e ensinou a um arcanjo, para conquistar o coração da Jovem de Nazaré. E essas palavras foram tão fortes e tocantes, que mesmo com toda a humildade de Maria, ela aceitou participar da Encarnação do Verbo, ser a Mãe de Jesus. É com essa mesma saudação que vocês também vão tocar o coração dela, desde que a rezem do jeito certo.

253. Quando a Ave-Maria é rezada com atenção, devoção e com uma atitude respeitosa, ela se torna, como dizem os santos, uma arma poderosa contra o demônio, fazendo-o fugir imediatamente, como se fosse esmagado por um martelo. É também algo que santifica a alma, alegra os anjos, encanta os que são escolhidos por Deus, é como um hino do Novo Testamento, dá alegria a Maria e honra à Santíssima Trindade. A Ave-Maria é como um orvalho vindo do céu, que faz a alma dar bons frutos; é como um beijo puro e cheio de amor dado a Maria, como uma rosa vermelha oferecida a ela, como uma pérola preciosa entregue com carinho, como uma taça cheia do melhor néctar do céu. Todas essas comparações foram feitas por santos muito respeitados.

254. Peço com todo o coração, por causa do amor que tenho por vocês em Jesus e Maria, que não se contentem apenas em rezar a coroinha da Santíssima Virgem. Rezem também o terço, e, se tiverem tempo, o rosário inteiro todos os dias. Quando chegar a hora da morte, vocês vão agradecer profundamente o dia e a hora em que acreditaram nesse conselho. Pois, depois de terem semeado suas orações sob as bênçãos de Jesus e Maria, vão colher bênçãos eternas no céu: “Quem semeia bênçãos, colherá bênçãos” (2Cor 9,6).

§ VI. Recitação do Magnificat.

255. Sexta prática. Para agradecer a Deus por todas as graças que Ele deu à Santíssima Virgem, recitem com frequência o Magnificat, seguindo o exemplo da bem-aventurada Maria d’Oignies e de muitos outros santos. Essa é a única oração e obra feita por Maria — ou melhor, que Jesus realizou por meio dela, já que foi Ele quem falou usando a boca de sua Mãe Santíssima. O Magnificat é o maior louvor que Deus já recebeu no tempo da graça. É, ao mesmo tempo, o cântico mais humilde e cheio de gratidão, mas também o mais elevado e grandioso entre todos os cânticos. Nele existem mistérios tão profundos e escondidos que nem mesmo os anjos conseguem compreender totalmente. Gerson, um doutor muito sábio e piedoso, passou boa parte da vida escrevendo textos cheios de conhecimento e fé sobre temas bem difíceis. No fim da sua vida, ele tremeu de temor ao tentar explicar o Magnificat, que ele queria usar como conclusão de toda a sua obra. Em um livro bem extenso, ele fala coisas maravilhosas sobre esse cântico tão divino. Ele conta, entre outras coisas, que a Santíssima Virgem recitava o Magnificat muitas vezes sozinha, especialmente depois da comunhão, como forma de agradecer a Deus. O sábio Benzônio, comentando esse mesmo cântico, cita vários milagres que aconteceram por meio dele, e diz que os demônios tremem e fogem quando ouvem as palavras: “Fecit potentiam in brachio suo, dispersit superbos mente cordis sui” (Lc 1,51) — “Mostrou a força do seu braço, e dispersou os orgulhosos nos pensamentos de seu coração”.

§ VII. O desprezo pelo mundo.

256. Sétima prática. Os verdadeiros servos de Maria precisam desprezar, odiar e fugir do mundo corrompido. Devem se afastar de tudo aquilo que está contra Deus e contra os ensinamentos de Jesus. Para isso, é importante viver de acordo com as práticas que mostram como desprezar o mundo, como já explicamos na primeira parte deste ensinamento[18].
____________________
1. Homil. II in Evangel.
2. Os votos de São Luís Maria de Montfort se realizaram. Sua querida devoção está ereta em Arquiconfraria, cujos membros, já numerosos, multiplicam-se de um modo extraordinário.
3. Estas palavras de São Luís Maria parecem aludir a outra obra que teria servido de introdução a esta, como, por exemplo: “L’amour de la Sagesse éternelle” (Cf. cap. VII e XVI).
4. Cf. no fim do volume os exercícios espirituais aconselhados pelo autor para esses doze dias e essas três semanas preparatórias à consagração.
5. Cf. acima n. 78ss.
6. “Pensa no que foste: um pouco de lodo; no que és: vaso de escórias; no que serás: pasto de vermes” (SÃO BERNARDO, inter opera: Meditação sobre o conhecimento da condição humana).
7. “Senhor, fazei que eu veja” (Lc 18,41).
8. SANTO AGOSTINHO: “Que eu me conheça”.
9. Estas ladainhas do Espírito Santo encontram-se no apêndice no fim do volume.
10. Os membros da Arquiconfraria de Maria, Rainha dos corações, ganham uma indulgência de 300 dias todas as vezes que renovarem sua consagração, pelas palavras: “Sou todo vosso, e tudo que possuo vos ofereço, ó meu amável Jesus, por Maria, vossa Mãe santíssima”.
11. Entre outros, SANTO AGOSTINHO (Tract. de Symbolo ad Catechumenos, 1. IV, cap. I); • SÃO BERNARDO (Sermo super “Signum Magnum”, n. 3).
12. “Fazei-me digno de vos louvar, ó Virgem sagrada, e dai-me força contra os vossos inimigos”.
13. Poder-se-ia crer que certos decretos das Congregações Romanas tenham proibido terminantemente o uso dessas pequenas cadeias. Nada vemos, contudo, nesses decretos que interdite esta prática, símbolo da escravidão a Jesus em Maria, no que consiste propriamente a devoção do B. Montfort (Cf. Analecta Iuris Pontificii, 1a série, col. 757).
14. No dia 25 de março, todos os membros da Arquiconfraria de Maria, Rainha dos corações, podem ganhar uma indulgência plenária.
15. Cf. esta oração no fim do volume, p. 297.
16. SANTO AMBRÓSIO. De Instit. Virg., cap. VII, n. 50.
17. RICARDO DE SÃO LOURENÇO. De laud. Virg. 1. IV.
18. Cf. nota 3 do n. 227. Cf. “L’Amour de la Sagesse éternelle”, cap. XVI.

  Artigo II (257-265)

Práticas especiais e interiores para os que querem tornar-se perfeitos

257. Além das práticas exteriores dessa devoção que já mencionamos — e que não devem ser deixadas de lado por descuido ou desvalorização, sempre respeitando a realidade e as condições de cada pessoa —, existem também práticas interiores muito santificantes, pensadas especialmente para aqueles que o Espírito Santo chama a buscar uma vida de santidade mais profunda. Essas práticas podem ser resumidas em quatro atitudes: fazer todas as suas ações por Maria, com Maria, em Maria e para Maria, com o objetivo de realizar tudo isso ainda mais perfeitamente por Jesus, com Jesus, em Jesus e para Jesus.

§ I. Fazer todas as ações por Maria.

258. 1º) É preciso fazer todas as ações “por Maria” — ou seja, em tudo obedecer à Santíssima Virgem e deixar que ela guie nossa vida, pelo Espírito Santo de Deus. Aqueles que vivem segundo o Espírito de Deus são chamados de filhos de Deus (Rm 8,14). Quem deixa sua conduta ser guiada pelo espírito de Maria torna-se filho de Maria e, por consequência, filho de Deus. Entre tantos devotos da Virgem Santíssima, só os que realmente vivem guiados por seu espírito são devotos verdadeiros e fiéis. Digo que o espírito de Maria é espírito de Deus, porque ela nunca viveu segundo seu próprio espírito, mas sempre pelo Espírito de Deus — tanto que esse Espírito se fez tão dela que virou quase o próprio espírito dela. Por isso Santo Ambrósio disse: “Que a alma de Maria esteja em cada um para glorificar o Senhor; que o espírito de Maria esteja em cada um para deleitar-se em Deus”[1]. Quanta felicidade para aquela alma que, como o bom irmão jesuíta Rodríguez[2] — falecido em fama de santidade — se deixa possuir totalmente pelo espírito de Maria, um espírito suave e forte, zeloso e prudente, humilde e corajoso, puro e fecundo!

259. Para que a alma seja guiada pelo espírito de Maria, é preciso: 1º) Antes de tudo, deixar de lado o próprio jeito de pensar, suas opiniões e vontades, especialmente antes de rezar, ouvir ou participar da missa, comungar, e em qualquer ato espiritual. Isso porque nossos pensamentos, por mais que pareçam bons, podem atrapalhar a ação do santo espírito de Maria. 2º) A alma deve se entregar totalmente ao espírito de Maria, deixando-se guiar por ela como ela quiser. É como ser um instrumento nas mãos de um artesão, ou uma harpa nas mãos de quem sabe tocá-la. É como se lançar no mar e se deixar envolver pelas águas. E isso pode ser feito de forma muito simples: com um pequeno pensamento, um desejo do coração, ou até com palavras como: “Renuncio a mim mesmo, entrego-me a vós, minha querida Mãe”. Mesmo que não sintamos nada especial nesse momento, essa entrega é verdadeira. É como se alguém dissesse, com sinceridade: “Entrego-me ao demônio” — ainda que não sinta nada, essa entrega teria efeito. Do mesmo modo, entregar-se sinceramente a Maria, mesmo sem sentir nada, é real. 3º) Durante uma ação ou depois dela, é bom renovar esse oferecimento e essa união. Quanto mais fizermos isso, mais rápido nos santificamos e mais nos unimos a Jesus Cristo. E essa união com Jesus sempre vem depois da união com Maria, porque o espírito de Maria é o mesmo espírito de Jesus.

§ II. Fazer todas as coisas com Maria.

260. 2º) Em segundo lugar, é importante fazer todas as nossas ações com Maria. Isso quer dizer que, em tudo o que formos fazer, devemos olhar para Maria como nosso exemplo, nosso modelo perfeito de virtude e santidade — um modelo que o Espírito Santo formou numa simples criatura. Devemos nos esforçar para imitar Maria, dentro das nossas possibilidades. Em cada situação, podemos nos perguntar: Como Maria agiria se estivesse no meu lugar? E assim, tentar agir como ela. Para isso, é importante conhecer e refletir sobre as virtudes que Maria viveu em sua vida. Algumas dessas virtudes são: 1º) Sua fé viva, que a fez crer com firmeza até mesmo aos pés da cruz, no alto do Calvário; 2º) Sua humildade profunda, que a fez sempre se esconder, ficar em silêncio, aceitar tudo com obediência e escolher o último lugar; 3º) Sua pureza divina, que é tão elevada que nunca houve, nem haverá, ninguém como ela debaixo do céu.
E muitas outras virtudes que ela também praticou. Lembrem-se — e aqui repito — que Maria é como um molde perfeito feito por Deus[3]. É como uma forma ideal para moldar pessoas que se tornem verdadeiras imagens de Jesus. Uma alma que encontra esse molde, que se entrega totalmente a ele, será rapidamente transformada em Jesus Cristo, porque nesse molde é Ele quem está representado de forma viva.

§ III. Fazer todas as coisas em Maria.

261. 3º) Em terceiro lugar, é preciso fazer todas as nossas ações em Maria. Para entender bem o que isso significa, é importante saber que a Santíssima Virgem é o verdadeiro "paraíso terrestre" do novo Adão — Jesus Cristo. O antigo paraíso, onde Adão e Eva foram colocados, era apenas uma imagem, uma sombra do que é Maria. Esse “paraíso” que é Maria é cheio de riquezas, belezas, maravilhas e doçuras que não conseguimos explicar. Foi nesse lugar santo que Jesus, o novo Adão, escolheu morar durante nove meses. Ali Ele fez grandes maravilhas e acumulou riquezas com a grandeza própria de Deus. Esse lugar santíssimo é feito de uma terra virgem e imaculada - pura- , sem qualquer mancha, que formou e alimentou o novo Adão. Tudo isso aconteceu pela ação do Espírito Santo, que habita nela. É nesse paraíso que está de verdade a Árvore da Vida — aquela que deu ao mundo Jesus Cristo, o verdadeiro fruto da vida. Lá também está a Árvore do Conhecimento do bem e do mal, que iluminou a humanidade. Nesse lugar divino, existem árvores plantadas pelo próprio Deus e regadas por Sua graça. Elas dão frutos maravilhosos todos os dias, com um sabor divino. Ali também há jardins cheios de flores lindas e variadas, que representam virtudes e exalam um perfume que alegra até os anjos. Há campos verdes de esperança, torres fortes que não podem ser derrubadas, lugares cheios de encanto e segurança. Só o Espírito Santo pode realmente revelar o sentido profundo de todas essas imagens. Nesse lugar, o ar é puro, livre de qualquer mal; é um ar de santidade. O dia ali é sempre claro, sem noite — símbolo da santidade perfeita. O sol brilha sem sombras — imagem da presença divina. É como uma fornalha de amor que queima sem parar: tudo o que é lançado ali, como o ferro no fogo, se transforma em ouro. Um rio de humildade brota dessa terra, e se divide em quatro correntes que irrigam todo esse jardim encantado — são as quatro virtudes cardeais: prudência, justiça, fortaleza e temperança.

262. O Espírito Santo, através dos Santos Padres, dá vários nomes especiais à Santíssima Virgem. Ele a chama, por exemplo: 1º) Porta oriental, aquela por onde o grande sacerdote Jesus Cristo entrou no mundo (como diz o profeta Ezequiel 44,2-3). Foi por essa porta que Ele veio pela primeira vez, e será por ela que voltará. 2º) Ele também a chama de santuário da Divindade, descanso da Santíssima Trindade, trono de Deus, cidade de Deus, altar de Deus, templo de Deus e até mundo de Deus. Todos esses títulos e louvores são verdadeiros e mostram as maravilhas e graças que Deus realizou em Maria. Que riqueza! Que glória! Que alegria e felicidade é poder entrar e viver dentro de Maria, onde o Altíssimo colocou o trono da sua maior glória!

263. Mas como é difícil, para nós que somos pecadores, conseguir a permissão, a capacidade e a luz necessárias para entrar nesse lugar tão elevado e tão sagrado! Esse lugar não é protegido apenas por um querubim, como era o antigo paraíso da criação, mas sim pelo próprio Espírito Santo, que é o Senhor absoluto desse lugar. É sobre ele que está escrito: “Jardim fechado é minha irmã, minha esposa; jardim fechado, fonte selada”(Ct 4,12). Maria é esse jardim fechado. Maria é essa fonte selada. E nós, pobres filhos de Adão e Eva, que fomos expulsos do paraíso, só podemos entrar nesse novo paraíso com uma graça especial do Espírito Santo — e essa graça precisa ser merecida.

264. Depois que, com fidelidade, conseguimos essa grande graça, devemos permanecer com alegria no interior belíssimo de Maria. Lá, podemos descansar em paz, confiar plenamente, nos esconder com segurança e até mesmo nos abandonar por inteiro, sem medo. Porque, nesse coração materno: 1º) A nossa alma se alimenta do leite da graça e da misericórdia de Maria, como de uma mãe que cuida com carinho; 2º) A alma encontra alívio das angústias, dos medos e das dúvidas exageradas da consciência; 3º) A alma está protegida, em segurança, longe dos perigos dos inimigos espirituais — o demônio, o mundo e o pecado — que não conseguem entrar nesse lugar sagrado. É por isso que Maria pode dizer: “Os que operam em mim, não pecarão” (Eclo 24,30); ou seja, aqueles que vivem espiritualmente dentro da Santíssima Virgem não cometerão pecado grave; 4º) A alma também é formada à imagem de Jesus Cristo, e Ele vai sendo formado nela. Isso porque, como dizem os Santos Padres[4], o seio de Maria é como uma sala cheia dos mistérios de Deus, onde Jesus Cristo e todos os que foram escolhidos por Ele foram formados: “Homem e homem nasceram nela” (Sl 86,5)[5].

§ IV. Fazer todas as ações para Maria.

265. 4º) Por fim, é preciso fazer todas as coisas para Maria. Já que nos entregamos totalmente ao seu serviço, é justo que tudo o que fizermos seja para ela, como faria um empregado, um servo, um escravo fiel. Mas atenção: não tomamos Maria como o objetivo final do nosso serviço — esse objetivo é somente Jesus Cristo. Maria é o caminho mais fácil e direto para chegarmos até Ele. Como bons servos e escravos, não devemos viver na ociosidade, mas, com a ajuda da proteção de Maria, devemos nos esforçar para realizar grandes coisas por essa Rainha Soberana, tão respeitável. Devemos: Defender os privilégios dela quando forem questionados; Proteger sua honra quando for atacada; Fazer o possível para levar outras pessoas a conhecer e amar essa devoção verdadeira e firme; Falar com coragem contra os que usam mal a devoção à Virgem para desonrar seu Filho; e, ao mesmo tempo, divulgar essa devoção verdadeira. E por todos esses serviços, ainda que pequenos, não devemos esperar nenhuma recompensa além da alegria de pertencer a uma Rainha tão bondosa e da felicidade de, por meio dela, estarmos unidos a Jesus Cristo, seu Filho, com um laço que ninguém poderá desfazer, nem no tempo e nem na eternidade.
Glória a Jesus em Maria!
Glória a Maria em Jesus!
Glória somente a Deus!
____________________
1. Palavras já citadas e comentadas no n. 217,
2. Canonizado por Leão XIII, em 15 de janeiro de 1888. 3. Cf. n. 218s.
4. Cf. acima n. 248: “Aula sacramentorum”.
5. Sobre este texto, cf. o comentário de nosso Santo, n. 32.
10ª parte

  Suplemento

Modo de praticar esta devoção na santa comunhão

I - Antes da comunhão

II - Durante a comunhão

III - Depois da santa comunhão

  I - Antes da Comunhão (266)

266. 1º) Você se humilhará profundamente diante de Deus. 2º) Renunciará ao que há de corrompido dentro de você e às suas inclinações, mesmo que seu amor-próprio faça parecer que são coisas boas. 3º) Renovará sua consagração, dizendo: "Tuus totus ego sum, et omnia mea tua sunt" — "Sou todo teu, minha querida Senhora, com tudo o que tenho"[1]. 4º) Pedirá a essa boa Mãe que lhe empreste o coração dela, para que, com os mesmos sentimentos e intenções dela, você possa receber o Filho dela. Explique a ela que é importante para a glória do Filho dela que Ele não entre em um coração tão manchado quanto o seu e tão inconstante, que poderia desonrá-Lo ou mesmo perdê-Lo. Mas que, se ela quiser morar em você para receber seu Filho, ela pode fazer isso com facilidade, porque tem autoridade sobre os corações. E que, por meio dela, Jesus será bem recebido, sem mancha e sem risco de ser desonrado: "Deus está no meio dela, e ela não será abalada"(Sl 45,6). Diga com confiança que tudo o que você já deu a ela de seus bens é pouco para honrá-la. Mas que, na santa comunhão, você lhe dará o mesmo presente que o Pai Eterno lhe deu: o próprio Jesus. Esse é um presente que a honrará muito mais do que se você pudesse lhe dar todos os bens do mundo. E que Jesus deseja novamente encontrar nela suas alegrias e seu descanso, mesmo que seja em sua alma, tão suja e pobre quanto o estábulo onde Ele nasceu — mas onde Ele quis vir porque ela estava lá. E com essas palavras cheias de ternura, peça a Maria o seu coração: "Recebo-te em tudo que é meu. Dá-me teu coração, ó Maria!"[2].
____________________
1. Ou então a fórmula indulgenciada, indicada em “Notícia sobre a Arquiconfraria de Maria, Rainha dos corações” (Vantagens e privilégios, 3º).
2. Adaptação dos dois textos da Sagrada Escritura, comentados no decorrer do “Tratado”. Cf. Jo 19,27 e Pr 23,26.

  II - Durante a Comunhão (267-269)

267. Antes de receber Nosso Senhor Jesus Cristo, você dirá três vezes, depois do “Pai Nosso”: “Senhor, eu não sou digno...” como se estivesse dizendo, na primeira vez, ao Pai Eterno que, por causa de seus maus pensamentos e da sua ingratidão para com Ele, você não é digno de receber seu único Filho. Mas logo depois, você apresenta Maria, a serva do Senhor: “Eis aqui a serva do Senhor. Ela faz tudo por você e, por causa dela, você ganha uma confiança e uma esperança especial diante da Majestade de Deus, como está escrito: “Pois me fizeste habitar seguro na esperança”(Sl 4,10).

268. Você dirá ao Filho: “Senhor, eu não sou digno...” — reconhecendo que não é digno de recebê-lo por causa das palavras inúteis ou más que já disse e por sua falta de fidelidade ao servi-Lo. Mas você vai pedir que Ele tenha misericórdia de você, pois está prestes a acolhê-Lo na casa da própria Mãe d’Ele — que também é sua Mãe — e que não deseja deixá-Lo ir sem que Ele se instale ali: “Agarrei-me a Ele e não o deixarei até que o tenha trazido à casa de minha mãe, ao quarto daquela que me gerou” (Ct 3,4). Peça a Jesus que se levante e venha para o lugar do seu descanso, para a arca da sua santidade (Sl 131,8). Diga a Ele que você não confia nos seus próprios méritos, nem na sua força ou em suas preparações — como Esaú — mas sim nas virtudes de Maria, sua querida Mãe. Faça como o pequeno Jacó, que confiou nos cuidados de Rebeca. Mesmo sendo pecador, mesmo sendo como Esaú, você se aproxima de Jesus confiando nas virtudes de Maria, sua Mãe Santíssima.

269. Você dirá ao Espírito Santo: “Senhor, eu não sou digno...” reconhecendo que não é digno de receber a obra-prima do amor d’Ele, por causa da frieza e da maldade de suas ações e das vezes em que resistiu às inspirações do Espírito. Mas dirá que toda a sua confiança está em Maria, a fiel Esposa do Espírito Santo. E pode repetir as palavras de São Bernardo: “Esta é a minha maior confiança; esta é toda a razão da minha esperança.” Você pode até pedir que o Espírito Santo desça mais uma vez a Maria, sua Esposa inseparável, pois o coração dela continua tão puro e cheio de amor como sempre foi. E sem que Ele desça à sua alma, Jesus e Maria não poderão ser formados dentro de você, nem encontrar ali um lugar digno para habitar.

4x III - Depois da santa Comunhão (270-273)

270. Logo após a santa comunhão, recolhido em silêncio, com os olhos fechados, você colocará Jesus Cristo no coração de Maria. Você O entregará a Ela, e Maria O receberá com muito amor. Ela O colocará num lugar de honra, irá adorá-Lo profundamente, amá-Lo com perfeição, abraçá-Lo com ternura, e Lhe dará, em espírito e verdade, as honras que nós, por estarmos tão limitados e cercados de escuridão espiritual, nem conseguimos imaginar.

271. Ou, se preferir, fique profundamente humilhado diante de Jesus, que está habitando em Maria. Fique como um servo parado à porta do palácio real, onde o Rei conversa com a Rainha. E, enquanto Eles se entretêm sem precisar de você naquele momento, vá em espírito até o céu e por toda a terra, pedindo a todas as criaturas que, em seu lugar, louvem, adorem e amem a Jesus e Maria: “Vinde, adoremos, vinde!” (Sl 94,6).

272. Ou então, peça a Jesus, unido a Maria, que por meio dela venha o seu Reino à terra, ou que Ele nos conceda a sabedoria divina, ou o amor de Deus, ou o perdão dos seus pecados, ou qualquer outra graça — mas sempre através de Maria e em Maria. E, ao se olhar interiormente, diga: “Senhor, não olheis os meus pecados”[1], e continue: “que os vossos olhos vejam em mim apenas as virtudes e as graças de Maria"[2]. E ao se lembrar dos seus pecados, diga também: Foi o inimigo, fui eu mesmo, o maior inimigo de mim mesmo, quem cometeu esses pecados (Mt 13,28); ou então: Livrai-me do homem mau e enganador (Sl 42,1). Ou ainda: “Jesus, é preciso que tu cresças em minha alma e que eu diminua."(cf. Jo 3,30) Maria, é preciso que tu cresças em mim e que eu me torne menor do que tenho sido. (Gn 1,22): Ó Jesus e Maria, crescei em mim e multiplicai-vos também nos outros.

273. O Espírito Santo pode inspirar muitos pensamentos e ideias – e vai te inspirar ainda mais, se você for uma pessoa interiormente recolhida, mortificada (ou seja, desapegada das vontades do mundo) e fiel a essa devoção tão grande e elevada que acabei de te ensinar. Lembre-se: quanto mais você permitir que Maria aja dentro de você no momento da comunhão, mais Jesus será glorificado. E quanto mais você permitir que Maria atue para Jesus, e que Jesus atue em Maria, mais isso acontecerá à medida que você se humilhar profundamente. Então, você poderá ouvir ambos em paz e silêncio, sem precisar se preocupar em ver, sentir ou experimentar algo extraordinário, porque, em tudo, o justo vive pela fé — e isso é ainda mais verdadeiro na Santa Comunhão, que é um ato de fé: “O justo vive da fé” (Hb 10,38).
____________________
1. Missal romano, 1ª orat. ante communionem.
2. S1 16,2, aplicado à Santíssima Virgem.





Compartilhar: