UM BREVE COMENTÁRIO À ORAÇÃO DA AVE MARIA: SAUDAÇÃO DE SANTA ISABEL (PARTE 2)

No último artigo sobre a oração da Ave Maria, começamos a analisar a saudação de Santa Isabel (“Bendita sois vós entre as mulheres e bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus”, de Lc 1, 42), à luz do contexto da Visitação de Nossa Senhora à Santa Isabel (Lc 1, 39-56). Neste artigo, vamos continuar examinando esta saudação, tendo em vista o contexto das passagens do Antigo Testamento que são aludidas na Visitação e nesta saudação.

Há principalmente duas categorias de alusões ao Antigo Testamento na passagem da Visitação e na saudação de Santa Isabel: alusões que identificam a Virgem Maria com a arca da aliança, e alusões que a ligam à mulher que fere a cabeça da serpente.

Nossa Senhora como a arca da aliança

Em primeiro lugar, na passagem da Visitação, há alusões a passagens relacionadas à arca da aliança, em 2 Samuel 6 e Crônicas. A Visitação de Nossa Senhora à Santa Isabel é apresentada com a mesma linguagem (no grego da Septuaginta) da mudança da arca da aliança para Jerusalém feita por Davi. A Virgem Maria, “levantando-se… foi” à região montanhosa de Judá (Lc 1, 39), assim como Davi “levantou-se e foi” para Baala de Judá, também na região montanhosa (2Sm 6, 2). Santa Isabel pergunta: “E de onde a mim isso, que venha a mãe do meu Senhor até mim?” (Lc 1, 43), assim como Davi pergunta: “Como virá até mim a arca do Senhor?” (2Sm 6, 9). São João Batista pulou de alegria no ventre de Santa Isabel diante de Nossa Senhora (Lc 1, 41. 44), assim como Davi ia saltando e dançando diante da arca do Senhor (2Sm 6, 16). Finalmente, a Virgem permaneceu três meses com Santa Isabel (Lc 1, 56), assim como a arca da aliança ficou três meses na casa de Obed-Edom (2Sm 6, 11).

Além desses paralelos, São Lucas escreve que Santa Isabel “exclamou” (verbo “anafoneo”) em alta voz a saudação à Nossa Senhora (Lc 1, 42). Esse verbo, que só ocorre aqui no Novo Testamento, aparece apenas cinco vezes na Septuaginta (1Cr 15, 28; 16, 4. 5. 42; 2Cr 5, 13), sempre para descrever o som melodioso dos cantores e músicos levitas ao louvarem o Senhor diante da arca da aliança. Assim, o que Santa Isabel fez não foi apenas uma simples exclamação, mas um louvor litúrgico diante de Nossa Senhora como nova arca da aliança.

Desse modo, Nossa Senhora é identificada com a arca da aliança. A Mãe de Deus não é simplesmente um novo templo, habitada por Deus e coberta pela presença gloriosa do Altíssimo (Lc 1, 35), como vimos no primeiro artigo. Ela também é o utensílio mais importante do templo que ficava no lugar mais sagrado, no Santo dos Santos, envolvido pela nuvem de glória (Ex 40, 34-35; 1Rs 8, 6-11). Isso fica ainda mais evidente quando lembramos que, dentro da arca da aliança, estavam as duas tábuas de pedra contendo os Dez Mandamentos (a Palavra de Deus: Dt 10, 1-5), o maná (o pão do céu: Êx 16, 33-34) e o cajado de Aarão que floresceu, representando o sacerdócio aarônico (Nm 17, 10-11; cf. Hb 9, 4). Assim também, Nossa Senhora levou dentro de si a Palavra de Deus encarnada (Jo 1, 14), o verdadeiro Pão vivo que desceu do céu (Jo 6, 31-35. 48-58) e o verdadeiro sumo sacerdote segundo a ordem de Melquisedeque (Hb 5, 1-10; 7, 1–10, 25). É por isso que, quando o vidente de Apocalipse viu a arca da aliança no céu (Ap 11, 19), imediatamente descreve que viu no céu uma mulher gloriosa que dá à luz o Messias (Ap 12, 1-2. 5), relacionando, também, a Virgem Maria com a arca.

Nossa Senhora como a mulher que fere a cabeça da serpente

Em segundo lugar, na saudação de Santa Isabel em Lc 1, 42 (“Bendita sois vós entre as mulheres”) há alusões a duas passagens do Antigo Testamento: “Seja bendita acima das mulheres, Jael, a mulher de Héber, o quenita, bendita acima das mulheres das tendas!” (Jz 5, 24); “Tu és bendita, ó filha, pelo Deus altíssimo, mais que todas as mulheres da terra” (Jt 13, 18a; cf. Jt 15, 9-10).

A primeira passagem faz parte do cântico de Débora e Barac, onde eles louvam Jael por ter matado Sísara, inimigo de Israel, com uma estaca na cabeça (Jz 4, 17-21). Na segunda passagem, Ozias, um dos chefes da cidade de Betúlia, louva Judite por ter matado Holofernes, inimigo dos judeus, cortando-lhe a cabeça com sua espada. O que há de comum entre essas duas mulheres é que ambas feriram mortalmente inimigos do povo de Deus na cabeça. Há outras mulheres no Antigo Testamento que fizeram o mesmo: uma mulher que feriu a cabeça de Abimelec, inimigo dos siquemitas, lançando uma pedra de moinho da muralha (Jz 9, 53); e Ester, responsável pela morte de Amã, inimigo dos judeus, por enforcamento (Et 5–7).

Todas essas passagens estão relacionadas com o Protoevangelho de Gn 3, 15. Nessa passagem, Deus diz à serpente (inimiga do povo de Deus): “Porei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a descendência dela. Esta te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar”. Há três inimizades mencionadas: entre a serpente e a mulher, entre a descendência da serpente e a descendência da mulher, e entre a serpente e a descendência da mulher.

Tanto no Texto Hebraico quanto na Septuaginta, não há ambiguidade em relação à palavra “esta” de Gn 3, 15, que se refere gramaticalmente à descendência da mulher. É a descendência da mulher que fere a cabeça da serpente. Apesar disso, como vimos, no Antigo Testamento há muitas ocorrências onde é a mulher quem fere a cabeça da “serpente” (inimigo). E no Novo Testamento, São Paulo aplica essa passagem à Igreja, esposa de Cristo (mulher): “O Deus da paz esmagará, sem demora, Satanás, sob vossos pés” (Rm 16, 20). Portanto, podemos entender que a inimizade entre a serpente e a mulher também envolve o ferimento da cabeça da serpente pela mulher. A mulher participa dessa vitória sobre a serpente juntamente com seu filho. É por isso que São Jerônimo, ao traduzir Gn 3, 15 para o latim, na Vulgata, escreveu que é a mulher quem fere a cabeça da serpente.

Voltando à saudação de Santa Isabel, quando a Virgem Maria é louvada como “bendita entre as mulheres”, ela é reconhecida como o clímax de todas essas mulheres do Antigo Testamento que feriram a cabeça da serpente: Eva (implícito em Gn 3, 15), Jael, a mulher que feriu Abimelec, Judite e Ester. Ao cooperar com a obra de redenção de seu Filho, em sua encarnação (Lc 1, 38), ministério (Jo 2, 1-11) e morte (Lc 2, 35; Jo 19, 25-27), Nossa Senhora contribuiu para que Nosso Senhor Jesus Cristo destruísse o diabo (Hb 2, 14) e suas obras (1 Jo 3, 8), ele que é a antiga serpente (Ap 12, 9). Desse modo, ela realmente feriu a cabeça da serpente juntamente com seu Filho. Por isso, em Ap 12, a Virgem Maria, representando a Igreja, é descrita como a mulher de Gn 3, 15-16, com dores de parto para dar à luz seu filho, em luta contra o diabo (Ap 12. 1-5), apresentado como um dragão (serpente: Ap 12, 9).

Concluindo, por que a Virgem Maria é chamada de bendita? Como vimos no artigo anterior, porque ela guardou a Palavra no coração e se tornou a Mãe de Deus. Como Mãe de Deus, ela é uma verdadeira arca da aliança, carregando a Palavra de Deus, Pão Vivo e Sumo Sacerdote, Jesus Cristo. Como Mãe de Deus, ela é a mulher que dá à luz o filho que fere a cabeça da serpente, participando com ele dessa vitória. Portanto, da próxima vez que você rezar a Ave Maria e chamar Nossa Senhora de “bendita entre as mulheres”, lembre-se de quão gloriosa e poderosa é aquela a quem você se dirige. Reze, assim, com reverência e confiança. Sem dúvida alguma, com a sua intercessão, tal Virgem gloriosa e bendita, Mãe de Deus, pode nos livrar sempre de todos os perigos.

André Aloísio

Teólogo

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