Apresentação

“Toda Santidade consiste em amar a Deus e todo o amor a Deus consiste em fazer a sua vontade”

Apresentamos aqui a coleção de meditações católicas diárias escritas por Santo Afonso de Ligório. Obra esta compilada em 3 Tomos e que compreendem todos os dias e festas do ano, todas tiradas de suas mais de 120 obras publicadas. Para facilitar e organizar todo o conteúdo, colocaremos as meditações separadas por tempo, assim, tornar-se-á mais fácil de encontrar um artigo desta preciosa obra deste grande Santo da nossa Santa Igreja dentro do Pocket Terço.

Essas meditações são para o Tempo Comum após o Tempo do Natal até o Tempo da Quaresma.

Recomendamos que faça essas meditações seguindo a Meditação Dirigida disponível aqui no aplicativo. Quando chegar no momento de realizar a leitura meditada, volte aqui para ler.

Fonte:
LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo I: Desde o Primeiro Domingo do Advento até a Semana Santa Inclusive. Friburgo: Herder & Cia, 1921.

(rumoasantidade.com.br/meditacoes-santo-afonso)
1ª parte

 Primeira Semana depois da Epifania

Primeira Semana do Tempo Comum (Calendário Litúrgico)

Domingo: Perda de Jesus no Templo

Segunda-feira: Fim do homem

Terça-feira: Hei de morrer um dia

Quarta-feira: A eternidade do inferno é terrível, mas justa

Quinta-feira: Exemplos que nos da Jesus Menino

Sexta-feira: Fuga de Jesus para o Egito

Sábado: Maria Santíssima, modelo de fé

 Primeiro Domingo depois da Epifania

Perda de Jesus no Templo

Remansit puer Iesus in Ierusalem, et non cognoverunt parentes eius – “O Menino Jesus ficou em Jerusalém, sem que seus pais se apercebessem” (Lc 2, 43)

Sumário. Quando Jesus chegou à idade de doze anos, José e Maria levaram-No consigo a Jerusalém na solenidade de Páscoa. Por ocasião da volta, porém, Jesus ficou no templo, sem que seus pais se apercebessem, e só foi achado ao fim de três dias de busca e de lágrimas. Aprendamos deste mistério que devemos deixar tudo, parentes e amigos, quando se trata de promover a glória de Deus.

I. Escreve São Lucas que Maria e José iam todos os anos à Jerusalém na solenidade de Páscoa, e levavam consigo o Menino Jesus. Era costume entre os Israelitas, conforme diz o venerável Beda, que durante a viagem ao templo (ao menos na volta) os homens andassem separados das mulheres, ao passo que os meninos acompanhavam à vontade o pai ou a mãe. O Redentor, que então tinha doze anos, depois da solenidade, ficou três dias em Jerusalém. A Virgem-Mãe pensava que Jesus estava com José e este julgava-O na companhia de Maria. — O santo Menino empregou aqueles três dias em promover a glória de seu Eterno Pai com jejuns, vigílias e orações e em assistir aos sacrifícios que eram outras tantas figuras do seu próprio sacrifício da Cruz. Para ter algum alimento, diz São Bernardo, foi-lhe mister pedi-lo por esmola, e para descansar não tinha outro leito senão a terra nua.

Quando, à noite, Maria e José se encontraram na pousada, não achavam o seu Jesus, e com suma aflição se puseram a procurá-Lo entre os parentes e amigos. Voltando depois a Jerusalém, acharam-No finalmente, ao terceiro dia, no templo, disputando entre os doutores, que pasmados admiravam as perguntas e respostas daquele menino extraordinário. — Nesta terra não há pena que se possa comparar àquela que uma alma, desejosa de amar a Jesus, experimenta quando teme que por qualquer culpa d’Ele se tenha afastado. Foi esta a dor exatamente de Maria e José naqueles dias, porquanto a sua humildade, diz o devoto Lanspergio, fazia-lhes crer que se tornaram indignos de ter sob sua guarda um tão grande tesouro. É por isso que Maria, encontrando o Filho, a fim de Lhe exprimir a sua dor, disse:

“Filho, porque fizeste assim conosco? Sabe que teu pai e eu te andamos buscando cheios de aflição”

E Jesus respondeu:

“Porque é que me buscáveis? Não sabeis que importa ocupar-me das coisas de meu Pai?”

Tiremos do presente mistério dois ensinos. Primeiro, que devemos abandonar tudo, parentes e amigos, quando se trata de promover a glória de Deus. Segundo, que Deus se deixa achar por quem o busca. Bonus est Dominis animae quaerenti illum (1) — “O Senhor é bom para a alma que o busca”.

II. Ó Maria, vós chorais por terdes perdido vosso Filho uns poucos dias. Afastou-se Ele da vossa vida, mas não do vosso coração. Não vos lembrais que o amor tão puro com que O amais, O faz estreitamente unido convosco? Vós bem sabeis que quem ama a Deus, não pode deixar de ser amado de Deus, que diz: Ego diligentes me diligo (2) — “Eu amo os que me amam”. Porque, pois, temeis? Porque chorais? Deixai que eu chore, que tantas vezes e por minha culpa tenho perdido meu Deus, expulsando-O da minha alma.

Ah! Meu Jesus, como pude ofender-Vos de olhos abertos, sabendo que pelo pecado Vos ia perder? Mas não quereis que o coração que Vos busca desespere, senão que se regozije: Laetetur cor quaerentium Dominum (3). Se em outros tempos Vos abandonei, ó Amor meu, agora Vos busco, e não quero senão a Vós. Para possuir a vossa graça, renuncio a todos os bens e prazeres da terra, renuncio até a própria vida. Vós dissestes que amais a quem Vos ama: amo-Vos, e amai-me Vós também. Estimo mais a posse do vosso amor, do que o domínio sobre o mundo inteiro. Jesus meu, não quero mais perder-Vos; mas não posso confiar em mim mesmo; confio tão somente em Vós. Por piedade! Uni-me estreitamente convosco e não permitais que ainda venha separar-me de Vós. — Ó Maria, vós me fizestes achar meu Deus, que tinha perdido há tempos; obtende-me agora a santa perseverança.

“E Vós, Pai Eterno, que fizestes reluzir sabedoria celestial na humilde puerícia de vosso divino Filho, concedei-nos que nós também, cheios do espírito de prudência, mereçamos, pela sincera humildade, a vossa complacência. Fazei-o pelos merecimentos de Jesus Cristo.” (4)

Referências:
(1) Lm 3, 25
(2) Prov. 8, 17
(3) Ps. 104, 3
(4) Or. Eccl.

 Segunda-feira da Primeira Semana depois da Epifania

Fim do homem

Deum time, et mandata eius observa: hoc est enim omnis homo – “Teme a Deus e observa os seus mandamentos; porque isto é o tudo do homem” (Ecle 12, 13)

Sumário. Não temos nascido, nem devemos viver para gozarmos, para nos fazermos ricos e potentes, senão unicamente para amarmos a Deus e nos salvarmos para sempre. Todavia, este grande fim da nossa existência é o mais descuidado pelos homens, que em tudo pensam exceto na salvação da alma. Nós ao menos não sejamos tão insensatos e consideremos seriamente que tudo que se faz, se diz ou se pensa contra a vontade de Deus, é perdido e perdido para sempre.

I. Considera, minha alma, que o teu ser é um dom de Deus, que sem mérito algum da tua parte te criou à sua imagem. No santo Batismo adotou-te por filho; amou-te com um amor mais que paternal, e deu-te a existência, a fim de que O ames e sirvas nesta terra, para depois gozares com Ele no paraíso. Portanto, não nasceste, nem deves viver para gozares, para te fazeres rico e poderoso, para comeres, beberes e dormires, como os irracionais; mas unicamente para amares o teu Deus e te salvares para sempre. O Senhor deu-te o uso das coisas criadas, a fim de que te sirvam para atingir o teu grande fim. — Ai de mim, que em tudo tenho pensado exceto no meu fim! Ó meu Pai celestial, pelo amor de Jesus Cristo, fazei que eu comece uma vida nova, toda santa e toda conforme à vossa divina vontade.

Considera também que na hora da morte terás veementes remorsos, por não te teres aplicado ao serviço de Deus. Qual será a tua aflição se no fim de teus dias perceberes que nessa hora não te resta de todas as riquezas, dignidades, glórias e prazeres senão um punhado de pó. Pasmarás que por coisas vãs e por ninharias perdeste a graça de Deus e a tua alma, sem poderes reparar o mal feito. Não haverá mais tempo para entrares no bom caminho. Ó desespero! Ó tormento! Verás então quanto vale o tempo; mas será tarde. Quererás comprá-lo pelo preço do teu sangue, mas ser-te-á impossível. Ó dia de amargura para quem não serviu e amou o seu Deus.

II. Considera quanto é descurado o último fim do homem. Pensa-se em aumento de riquezas, em banquetes, em festas, em passatempos. E ninguém se importa com o serviço de Deus, nem com a salvação da alma! O destino eterno é tido por uma bagatela e assim a maior parte dos Cristãos vai a caminho do inferno banqueteando-se, cantando e dormindo! Oxalá compreendessem o que quer dizer: inferno!

Ó homem, afadigas-te tanto para tua condenação e nada queres fazer para a tua salvação. Estava para morrer o secretário de um rei de Inglaterra e ao expirar disse: Desgraçado de mim! Tenho enchido tanto papel para escrever as cartas do meu senhor e não enchi uma única folha para me lembrar dos meus pecados e fazer uma boa confissão! Filipe III, rei de Espanha, disse na hora de sua morte: Ah! Antes houvera servido a Deus num deserto, do que sido rei!

Mas para que servirão naquela hora os gemidos e as lamentações? Servirão para maior desesperação. Aprende ao menos à custa de outros, a viveres solícito de tua salvação, se não quiseres cair no mesmo desespero. E lembra-te de que tudo o que fizeres, pensares ou disseres contrário à vontade de Deus, está perdido para a tua alma. Ânimo! Já é tempo de mudares de vida. Ou queres por ventura a hora da morte para te desiludir? Quando estiveres às portas da eternidade, como que suspenso sobre o abismo do inferno, quando não houver mais tempo para reparar o erro?

— Ó meu Deus, perdoai-me. Amo-Vos sobre todas as coisas. Detesto os meus pecados mais do que qualquer outro mal. Maria, minha esperança, rogai a Jesus por mim.

 Terça-feira da Primeira Semana depois da Epifania

Hei de morrer um dia

Statutum est hominibus semel mori; post hoc autem iudicium – “Está decretado que os homens morram uma só vez, e que depois venha o juízo” (Hb 9, 27)

Sumário. É utilíssimo para a salvação eterna dizermos muitas vezes conosco: “Hei de morrer um dia”; e entretanto escolhermos nos negócios da vida o que na hora da morte quiséramos ter feito. Com efeito, meu irmão: nesta terra um vive mais tempo, outro menos; mas mais cedo ou mais tarde, para cada um chegará o fim e então nada nos consolará senão o havermos amado Jesus Cristo e o termos padecido por seu amor e com paciência as dificuldade da vida presente.

I. É utilíssimo para a salvação eterna dizermos muitas vezes conosco: Hei de morrer um dia. A Igreja lembra-o todos os anos aos fiéis no dia de Cinzas: Memento, homo, quia pulvis es et in pulverem reverteris — “Lembra-te, ó homem, que és pó e em pó te hás de tornar.” Mas no correr do ano a lembrança da morte nos é sugerida frequentíssimas vezes, ora pela vista de um cemitério à beira da estrada, ora pelas campas que vemos nas igrejas, ora pelos defuntos que são levados à sepultura. — Os objetos mais preciosos que os anacoretas guardavam nas suas grutas eram uma cruz e uma caveira: a cruz para se lembrarem do amor que nos teve Jesus Cristo e a caveira para não se esquecerem do dia da sua morte. Assim é que perseveraram na sua vida de penitência até ao termo de seus dias. Morrendo pobres no deserto morreram mais contentes do que morrem os monarcas em seus palácios régios.

Finis venit, venit finis (1) — “O fim vem, vem o fim!” Nesta terra uns vivem mais tempo, outros menos; porém, mais cedo ou mais tarde, para cada um chegará o fim da vida, e nesse fim, que será a hora da nossa morte, nada nos dará consolo, senão o termos amado Jesus Cristo e o termos padecido com paciência, por amor d’Ele, as penalidades desta vida. Então nenhum consolo poderão dar-nos, nem as riquezas adquiridas, nem as dignidades possuídas, nem os prazeres gozados. Todas as grandezas terrestres não somente não consolarão os moribundos, antes lhes causarão aflições. Quanto mais as tiverem procurado, tanto mais lhes aumentará a aflição. Soror Margarida de Sant´Anna, carmelita descalça e filha do imperador Rodolfo II dizia: Para que servirão os reinos do mundo na hora da morte?

Ah! Meu Deus, dai-me luz e dai-me força para empregar o tempo de vida que me resta em Vos servir e amar! Se tivesse de morrer neste instante, não morreria contente, morreria com grande inquietação. Para que, depois, esperar? Esperarei por ventura até que a morte me surpreenda, com grande perigo para a minha eterna salvação? Se nos tempos passados tenho sido tão insensato, não o quero ser mais. Dou-me inteiramente a Vós; aceitai-me e socorrei-me com a vossa graça.

II. Não há que ver; para cada um chegará o fim da vida, e com este fim o momento que decidirá da nossa eternidade feliz ou infeliz: O momentum a quo pendet aeternitas! Oxalá, todos pensassem nesse grande momento e nas contas que então deverão dar ao divino Juiz acerca de toda a vida! De certo, não se preocupariam tanto com acumulação de dinheiro, nem se afadigariam para serem grandes nesta vida, que deve findar; senão pensariam em tornar-se santos e em ser grandes na vida que nunca mais terá fim.

Se portanto temos fé e cremos que há uma morte, um juízo e uma eternidade, procuremos viver tão somente para Deus durante o tempo de vida que ainda nos resta. Por isso, vivamos quais peregrinos nesta terra. Lembrando-nos de que em breve a teremos de deixar. Vivamos sempre com o pensamento fito na morte e nos negócios da vida presente, prefiramos sempre o que na hora da morte quiséramos ter feito. As coisas da terra nos deixam ou nós havemos de deixá-las. Escutemos o que nos diz Jesus Cristo: Thesaurizate vobis thesauros in coelo, ubi neque aerugo neque tinea demolitur (2) — “Ajuntai para vós tesouros no céu, onde não os consome a ferrugem nem a traça”. Desprezemos os tesouros terrenos, que não conseguem contentar-nos e em breve perecerão e procuremos ganhar os tesouros celestes, que nos farão felizes e nunca poderão acabar.

Ó meu Senhor, ai de mim, que por amor às coisas deste mundo Vos tenho tantas vezes virado às costas, a Vós, ó Bem infinito! Reconheço que fui insensato procurando ganhar no mundo grande reputação e fazer grande fortuna. De hoje em diante não quero para mim outra fortuna senão a de Vos amar e de cumprir em tudo a vossa santa vontade. Ó meu Jesus, arrancai de meu coração o desejo de fazer figura, fazei que eu ame os desprezos e a vida oculta. Dai-me força para me negar tudo o que não Vos agrada. Fazei que aceite com paz as enfermidades, as perseguições e todas as cruzes que me enviardes. Por vosso amor quisera morrer abandonado de todos, assim como Vós morrestes por meu amor. Ó Virgem Santa, as vossas orações me podem fazer achar a verdadeira fortuna, que consiste em amar muito o vosso divino Filho; por favor, rogai por mim, em vós confio.

Referências:
(1) Ez 7, 2
(2) Mt 6, 20

 Quarta-feira da Primeira Semana depois da Epifania

A eternidade do inferno é terrível, mas justa

Non dabit Deo placationem suam… laborabit in aeternum – “Não dará a Deus a sua propiciação… estará em trabalho eternamente” (Sl 48, 8)

Sumário. Digam os incrédulos o que quiserem: as penas do inferno durarão eternamente. E com razão. À ofensa de uma Majestade infinita é devido um castigo infinito. Sendo, porém, a criatura incapaz de sofrer um castigo infinito em intensão, é justo que o seja em duração. Quantos daqueles que não quiseram crer nesta terrível eternidade, experimentam-na agora em si mesmos! Ai daquele que cair no abismo infernal!

I. As penas da vida presente passam; porém, as da outra vida não passarão nunca, estarão sempre principiando. Pobre Judas! Passaram-se quase mil e novecentos anos desde que caiu no inferno e o inferno está apenas principiando para ele. Pobre Cain! Há perto de seis mil anos que está no inferno e o seu inferno ainda está no princípio. Perguntou-se certa vez a um demônio há quanto tempo já estava no inferno; e respondeu: Desde ontem. — Como? Disseram-lhe; desde ontem? Não há mais de cinco mil anos que foste condenado ao inferno? — Tornou o demônio: Oh! Se soubesses o que quer dizer eternidade, bem compreenderias que em comparação dela cinco mil anos não são senão um instante.

Mas como? Dirá um incrédulo; que justiça é essa? Castigar com uma pena eterna um pecado que dura apenas um momento? E como é, respondo eu, que o pecador pode ter a audácia de ofender, por um prazer momentâneo, uma Majestade infinita? Até a justiça humana, observa Santo Tomás, mede a pena, não pela duração, mas pela qualidade do crime. Non quia homicidium in momento committitur, momentanea poena punitur. A ofensa feita à Majestade divina merece castigo infinito, diz São Bernardino de Sena. Mas, como a criatura, acrescenta o Doutor Angélico, não é capaz da pena infinita em intensidade, é com justiça que Deus torna a pena infinita em duração.

Além disso, esta pena deve ser necessariamente eterna, porque o condenado já não pode satisfazer pelo seu pecado. Nesta vida, o pecador penitente pode satisfazer, porquanto podem ser-lhe aplicados os merecimentos de Jesus Cristo; mas desta aplicação fica excluído o condenado, e visto não poder aplacar a Deus, e ser eterno o seu estado de pecado, a pena deve também ser eterna:

Non dabit Deo placationem suam… laborabit in aeternum — “Não dará a Deus a sua propiciação… estará em trabalho eternamente”

— Demais: ainda que Deus quisesse perdoar, o réprobo não quisera ser perdoado, porque a sua vontade está obstinada e confirmada no ódio contra Deus. Por isso o mal do réprobo é incurável, porque ele recusa a cura: Factus est dolor eius perpetuus, et plaga desperabilis renuit curari (1).

II. Eis aí, pois, o estado lastimoso dos pobres condenados no inferno: ficarão encerrados eternamente nesse cárcere de tormentos, sem que haja para eles esperança alguma de sair. Depois de passados milhões e mais milhões de séculos, os desgraçados perguntarão aos demônios:

Custos, quid de nocte? (2) — “Guarda, que viste de noite?”

Já está muito adiantada esta noite procelosa? Quando acabará? Quando acabarão estes clamores, esta infecção, estas chamas, estes tormentos? E hão de responder-lhes: Nunca, nunca! E quanto tempo durarão? Sempre, sempre! E assim a trombeta da justiça divina eternamente lhes fará soar aos ouvidos estas palavras: Sempre, sempre! Nunca, nunca!

Ó meu amado Redentor Jesus, se atualmente estivesse condenado, como mereci, não haveria mais esperança para mim, e estaria obstinado no ódio contra Vós, ó meu Deus, que morrestes para me salvar. Que inferno seria para mim o ter de odiar-Vos, a Vós que tanto me tendes amado, que sois a beleza infinita, digno de amor infinito? Se estivesse, pois, no inferno, achar-me-ia em tão miserável estado, que nem quisera o perdão que me ofereceis agora. Agradeço-Vos, meu Jesus, a bondade que tivestes para comigo, e já que posso ainda esperar o perdão e amar-Vos, quero reconciliar-me convosco, quero amar-Vos. Ofereceis-me o perdão, e eu Vô-lo peço e espero-o pelos vossos merecimentos. Arrependo-me de todas as ofensas que Vos fiz, ó Bondade infinita, e perdoai-me. Amo-Vos de toda a minha alma.

Que mal fizestes, ó Senhor, para que Vos houvesse de odiar como inimigo na eternidade? Quem foi jamais tão meu amigo a ponto de fazer e padecer por mim, o que Vós, ó meu Jesus, haveis feito e sofrido por meu amor? Não permitais que me aconteça cair de novo em vosso desagrado e perder o vosso amor. Prefiro morrer a cair nesta extrema desgraça.

— Ó Maria, abrigai-me sob o vosso manto, e não permitais que saia debaixo dele para alguma vez me revoltar contra Deus e contra vós.

Referências:
(1) Jr 15, 18
(2) Is 21, 11

 Quinta-feira da Primeira Semana depois da Epifania

Exemplos que nos dá Jesus Menino

Erunt oculi tui videntes praeceptorem tuum – “Os teus olhos estarão vendo o teu mestre” (Is 30, 20)

Sumário. Quantos belos exemplos nos dá Jesus Cristo durante todo o tempo da sua infância! Exemplos de submissão à vontade divina, de pobreza, de humildade, de mansidão, de obediência; exemplos de mortificação, de amor à cruz, de recolhimento e de oração; uma palavra, exemplos de todas as mais belas virtudes. Esforcemo-nos por imitá-Lo, custe o que custar e imaginemos que lá de cima, da Gruta de Belém, o Pai Eterno nos diz: Se não vos fizerdes semelhantes a este meu amado Filho, feito menino por vosso amor, não entrareis no reino dos céus.

I. Tendo o Pai Eterno decretado que o Verbo divino se fizesse homem para operar a nossa Redenção, podia Jesus Cristo tomar um corpo glorioso, ou de homem perfeito, como Adão, sem que ficasse sujeito a todas as fraquezas e misérias próprias da infância. Não obstante isso, para nosso ensinamento e maior proveito, quis nascer criança como nós, a fim de que, vendo-O em tudo nosso semelhante, nos sintamos com mais estímulo de imitá-Lo e fazer-nos semelhantes a Ele.

Oh! Que exemplos tão numerosos de virtudes nos deu o divino Menino durante toda a sua infância, se quisermos aproveitá-los! Exemplos de amor para com seu Pai e de submissão à vontade divina. Vede, como Jesus, apenas nascido e, conforme diz o Apóstolo, no seu primeiro ingresso no mundo, inclina humildemente a cabeça, adora respeitosamente a Deus Pai e protesta que está pronto a fazer-Lhe em tudo a santíssima vontade: Ecce venio, ut faciam, Deus, voluntatem tuam (1) — “Eis que venho, para fazer, ó Deus, a tua vontade”. — Exemplos de pobreza e de castidade: escolhendo para mãe uma virgem; para guarda, um homem castíssimo; para sua corte, uns pastores inocentes. Quer que tudo ao redor d’Ele seja indigência e miséria: Propter vos egemus factus est (2) — “Para vós Ele se fez pobre”. — Exemplos de mansidão, de humildade e de obediência. Podia castigar instantaneamente ao ímpio Herodes, que o persegue à morte, mas demora o castigo, e entretanto subtrai-se à sanha do rei por meio de uma fuga humilhante para o Egito, onde vive obediente a qualquer aceno de José e Maria: Et erat subditus illis (3) — “E estava-lhes sujeito”.

Finalmente Jesus nos dá exemplos de mortificação, de abnegação própria, de amor de cruz, e sobretudo de recolhimento e de oração. Passa todos os seus dias nas mais duras privações e santifica o trabalho pelo silêncio e pela oração. De sorte que desde então se Lhe pode aplicar o que depois disse o Evangelista: Erat pernoctans in oratione (4) — “Passava as noites em oração”. Felizes de nós se soubermos imitar os exemplos do santo Menino Jesus!

II. Imaginemos que Deus Pai lá de cima da Gruta de Belém nos diz o que Jesus Cristo mesmo disse mais tarde a seus discípulos: Nisi efficiamini sicut parvulus iste, non intrabitis in regnum coelorum (5) — “Se não vos fizerdes como este menino, não entrarei no reino dos céus”. Se não vos fizerdes semelhantes a este meu Filho, feito criança por vosso amor, não entrareis no reino dos céus.

Examinemos, pois, a nossa consciência, e se infelizmente acharmos que nos tempos passados pouco ou nada temos imitado os exemplos do santo Menino, tomemos uma resolução firme de fazê-lo ao menos para o futuro.

“Ó dulcíssimo Jesus, como estou envergonhado de me ver tão diferente de Vós! Mas já que acolheis os maiores pecadores, quando se convertem, fazei que de hoje em diante não seja mais assim. Dai-me, ó Senhor, assim como fizestes para com todos os pecadores arrependidos, um coração semelhante ao vosso. Dai-me um coração humilde, amante da vida oculta e desprezada, ainda no meio das honras terrestres; um coração paciente, resignado em todas as contrariedades, por mais penosas que sejam; um coração pacífico, que guarde sempre uma inalterável paz com o próximo e consigo mesmo. Dai-me um coração amante da oração, que goste de entregar-se frequentemente a este santo exercício; e tenha só um desejo, o de ver Deus conhecido, amado e louvado de todas as criaturas; um coração no qual nada desagrade, senão ver Deus ofendido; que nada odeie senão o pecado; que não tenha outro desejo no mundo senão o de promover a glória de Deus e a salvação do próximo. Dai-me um coração reconhecido, que nunca se esqueça dos benefícios divinos e saiba sempre estimá-los devidamente; um coração forte e corajoso, que não tenha medo de mal algum e suporte tudo por amor do seu Deus; um coração benéfico para com todos os necessitados e cheio de compaixão das almas do purgatório; finalmente um coração perfeitamente regrado, cujas alegrias e tristezas, repugnâncias e desejos, movimentos e aspirações sejam todas conformes com a vontade divina. Numa palavra, dai-me, ó meu Jesus, um coração todo semelhante ao vosso. Fazei-o pelo amor de vossa e minha querida Mãe Maria santíssima.”(6)

Referências:
(1) Hb 10, 9
(2) 2 Cor 8, 9
(3) Lc 2, 51
(4) Lc 6, 12
(5) Mt 18, 3
(6) Oração de São Clemente Maria Hoffbauer, C. SS. R.

 Sexta-feira da Primeira Semana depois da Epifania

Fuga de Jesus para o Egito

Surge, et accipe puerum et matrem eius, et fuge in Aegyptum – “Levanta-te, e toma contigo o Menino e sua Mãe, e foge para o Egito” (Mt 2, 13)

Sumário. Considera que Jesus apenas nascido é perseguido de morte por Herodes, sendo assim obrigado a fugir para o Egito, a fim de salvar a vida. Quão penosa devia ser aquela fuga para a sagrada Família e especialmente para o Coração extremamente sensível do Menino Jesus. Minha alma, associa-te àqueles três pobres exilados, compadece-te deles, e quando o Senhor te provar com tribulações, une os teus padecimentos aos daqueles santos personagens. Considera igualmente que pelos pecados que cometeste, renovaste para Jesus a perseguição de Herodes.

I. O Anjo aparece em sonhos a São José e lhe dá a entender que Herodes vai procurar o Menino Jesus, para Lhe tirar a vida. Surge, et accipe puerum et matrem eius, et fuge in Aegyptum — “Levanta-te, e toma contigo o Menino e sua Mãe, e foge para o Egito”. Eis como Jesus apenas nascido é perseguido de morte. — Herodes é figura daqueles miseráveis pecadores que vendo Jesus Cristo apenas renascido em sua alma pelo perdão obtido, novamente o perseguem à morte, tornando a pecar: quaerunt puerum ad perdendum eum.

José, tendo recebido a ordem do Anjo, obedece logo, sem demora, e avisa a sua santa Esposa. Ajunta a pouca ferramenta que podia carregar, a fim de exercer o seu ofício no Egito, e deste modo sustentar a sua pobre família. — Maria, por seu lado, faz uma pequena trouxa dos paninhos, ao uso do divino Menino. Depois entra na pobre morada, ajoelha junto ao berço de seu tenro Filhinho, beija-Lhe os pés, e derramando lágrimas de ternura, lhe diz: Ó meu Filho e meu Deus, acabas de nascer e de vir ao mundo para salvar os homens e já os homens vêm procurar-Te para Te matarem! — Toma em seguida o Menino nos braços e enquanto os santos Esposos choram, saem da casa, fecham a porta e na mesma noite se põem em caminho para o Egito.

Considera em espírito quais foram as ocupações daqueles santos viajantes durante a jornada. Não falam senão sobre seu caro Jesus, sobre a sua paciência e o seu amor, e desta maneira consolavam-se nas dificuldades e incômodos de tão longo caminho. Oh! Quão doce é o sofrimento quando se olha para Jesus que sofre! Associa-te, minha alma, diz São Boaventura, a esses três santos e pobres exilados; compadece-te deles na viagem tão penosa, longa e incômoda, que estão fazendo. Roga a Maria que te faça sempre trazer o seu Filho divino em teu coração.

II. Considera ainda o que os santos peregrinos tiveram que sofrer, especialmente nas noites que passaram no deserto do Egito. O seu leito foi a terra nua ao ar livre e frio. O Menino chora, e também Maria e José choram de compaixão. Ó santa fé! Quem não havia de chorar ao ver o Filho de Deus, feito criancinha, que, pobre e desamparado, foge pelo deserto a fim de se subtrair à morte?

Ó meu amado Jesus, Vós sois o rei do céu; mas agora Vos vejo como criança errando sobre a terra. Dizei-me, o que estais procurando? Compadeço-me de Vós, vendo-Vos tão pobre e tão humilhado; porém, mais compaixão sinto vendo-Vos tratado com tamanha ingratidão por aqueles mesmos que viestes salvar. Estais chorando, mas eu também quero chorar por ter sido um daqueles que em tempos passados Vos desprezaram e perseguiram. Hoje estimo mais a vossa graça do que todos os reinos do mundo. Perdoai-me, ó Jesus meu, todas as minhas ingratidões para convosco. Permiti que assim como na sua fuga para o Egito Maria Vos trouxe nos braços, assim eu possa trazer-Vos sempre em meu coração durante a minha viagem para a eternidade.

Ó meu Redentor amado, muitas vezes Vos tenho expulso da minha alma, mas espero que já tornastes a tomar posse dela. Ah! Uni-me a Vós pelos doces lações do vosso amor. Não quero mais repelir-Vos de mim. Tenho, porém, medo que de novo venha a abandonar-Vos, assim como tenho feito em outros tempos. Meu Senhor, mandai-me a morte, antes que venha a usar para convosco de uma nova e mais horrenda ingratidão. Amo-Vos, ó bondade infinita, e sempre quero dizê-lo: amo-Vos, amo-Vos, amo-Vos; repetindo-o sempre, espero morrer amando-Vos: Deus cordis mei, et pars mea Deus in aeternum (1) — “Deus do meu coração, e a minha porção é Deus para sempre”.

Ó meu Jesus, Vós sois infinitamente bom e digno de ser amado; por piedade, fazei-Vos amar. Fazei-Vos amar de tantos pecadores que Vos perseguem; dai-lhes luz e fazei que conheçam o amor que lhes tendes dedicado, e o amor que mereceis, já que andais errando pela terra, como criancinha pobre, chorando, tiritando de frio, em busca de almas que Vos queiram amar.

— Ó Maria, ó Virgenzinha santa, ó Mãe querida e companheira dos sofrimentos de Jesus, ajudai-me a trazer e guardar sempre o vosso Filho em meu coração, tanto na vida como na morte.

Referências:
(1) Sl 72, 26

 Sábado da Primeira Semana depois da Epifania

Maria Santíssima, modelo de Fé

Beata quae credidisti, quoniam perficientur ea, quae dicta sunt tibi a Domino – “Bem-aventurada és tu, que creste, porque se hão de cumprir as coisas que te foram ditas da parte do Senhor” (Lc 1, 15)

Sumário. Maria Santíssima teve fé tão viva, que excedeu a de todos os homens e de todos os anjos, porquanto viu Jesus Cristo sujeito a todas as misérias humanas e sempre o reconheceu por seu Deus verdadeiro. Se quisermos ser dignos filhos da divina Mãe, imitemo-la nesta virtude como em todas as demais. Exercitemo-nos em fazer contínuos atos de fé e vivamos segundo as verdades da nossa fé: porque a fé sem as obras é morta.

I. Assim como a Bem-aventurada Virgem é modelo de amor e de esperança, assim também é modelo de fé, pois que, diz Santo Irineu, aquele dano que Eva fez com a sua incredulidade, Maria o reparou com a sua fé. Com efeito, Eva, porque quis dar crédito à serpente contra aquilo que Deus tinha dito, trouxe a morte; mas a nossa Rainha, dando crédito às palavras do anjo, que ela, ficando Virgem, devia fazer-se Mãe do Senhor, trouxe ao mundo a salvação. Exatamente por causa da sua fé é chamada bem-aventurada por Santa Isabel: Beata quae credidisti — “Bem-aventurada és tu porque creste”.

Diz o Padre Soarez, que a Santíssima Virgem teve mais fé que todos os homens e todos os anjos. Via o seu Filho no presépio de Belém e cria que Ele era o Criador do mundo. Via-O fugir de Herodes e não deixava de crer que era o Rei dos reis. Via-O nascer, e O cria eterno. Via-O pobre e necessitado de alimento, e O cria Senhor do universo; deitado sobre a palha, e O cria onipotente. Observava que não falava e cria que era a Sabedoria infinita. Ouvia-O chorar e cria que era a alegria do paraíso. Via-O, finalmente, na morte vilipendiado e crucificado e bem que nos outros vacilasse a fé, Maria estava firme em crer que Ele era Deus. É por esta razão, diz Santo Antônio, que no Ofício das Trevas só se deixa uma vela acesa e São Leão, a este propósito, aplica à Virgem esta passagem: Non extinguetur in nocte lucerna eius (1) — “A sua lâmpada não se apagará de noite”.

Maria Santíssima, pela sua grande fé, mereceu ser feita a Luz de todos os fiéis, como é chamado por São Metódio: Fidelium fax. E São Cirilo de Alexandria a chama Rainha da verdadeira fé: Sceptrum orthodoxae fidei. A mesma Igreja atribui à Virgem, pelo merecimento de sua fé, a derrota de todas as heresias: Gaude, Maria Virgo, cunctas haereses sola interemisti in universo mundo (2).

II. Exorta-nos Santo Ildefonso: Imitamini signaculum fidei Mariae — “Imitai a fé insigne de Maria”. Mas como havemos de imitá-la? A fé é ao mesmo tempo dom e virtude. É dom de Deus, enquanto é uma luz, que Deus infunde na alma. É virtude, quanto ao exercício que dela faz a alma. Por isso a fé não só nos há de servir de regra para crer, mas também para obrar; porquanto, como diz São Gregório: Crê verdadeiramente aquele que põe em prática as verdades que a fé lhe ensina. É isto ter uma fé viva, o viver segundo se crê, assim como, no dizer do Apóstolo, cada justo deve viver: Iustus autem meus ex fide vivit (3) — “O meu justo vive pela fé”. Assim viveu a Santíssima Virgem e assim nós também, à imitação dela, devemos viver, com diferença daqueles que não vivem segundo aquilo que creem, cuja fé é morta, como diz São Tiago (4). — E por isso roguemos à divina Mãe, que pelo merecimento de sua fé nos alcance uma fé viva: Domina, adauge nobis fidem — “Senhora, aumentai-nos a fé”. Ao mesmo tempo, exercitemo-nos em fazermos freqüentes atos de fé, unindo-os aos da Santa Virgem. Roguemos também por tantos nossos irmãos infelizes, que vivem fora da Igreja Católica.

† “Ó Maria, Mãe de misericórdia e Refúgio dos pecadores, súplices vos rogamos que lanceis um olhar benigno sobre os povos hereges e cismáticos. Vós, que sois a Sede da sabedoria, iluminai os espíritos tristemente envoltos nas trevas da ignorância e do pecado, a fim de que reconheçam claramente que a santa Igreja católica, apostólica, romana é a única verdadeira Igreja de Jesus Cristo, fora da qual não há santidade nem salvação. Completai a sua conversão impetrando-lhes a graça de abraçar qualquer verdade da santa fé, e de submeter-se ao Sumo Pontífice Romano, Vigário de Jesus Cristo na terra, a fim de que, estando em breve todos unidos conosco pelos doces laços do divino amor, haja um só rebanho, debaixo do mesmo único Pastor, e possamos todos, ó Virgem gloriosa, cantar com alegria na eternidade: Gaude, Maria Virgo, cunctas haereses sola interemisti in universo mundo — “Alegrai-vos, ó Virgem Maria, porque vós só derrotastes todas as heresias no mundo universo.” (5)

Referências:
(1) Pv 31, 18
(2) Off. B. M. V.
(3) Hb 10, 38
(4) Tg 2, 26
(5) Indulg. de 300 dias para quem reza esta oração, acrescentando-lhes três Ave-Marias
2ª parte

 Segunda Semana depois da Epifania

Segunda Semana do Tempo Comum (Calendário Litúrgico)

Domingo: Desejo que Jesus teve de sofrer por nós

Segunda-feira: O amor vence tudo

Terça-feira: Remorsos e desejos de um pecador moribundo

Quarta-feira: Morte feliz dos religiosos

Quinta-feira: Estada de Jesus no Egito

Sexta-feira: Volta de Jesus do Egito

Sábado: Santo Afonso, modelo de devoção a Maria Santíssima

 Segundo Domingo depois da Epifania

Desejo que Jesus teve de sofrer por nós

Baptismo habeo baptizari, et quomodo coarctor, usquedum perficiatur – “Tenho de ser batizado com um batismo; e quão grande não é a minha ansiedade até que ele se cumpra” (Lc 12, 50)

Sumário. Podia Jesus salvar-nos sem sofrer. Mas não; por nosso amor quis abraçar uma vida de dores e de desprezos, sem qualquer consolação terrena. Mais, durante toda a sua vida suspirava continuamente pela hora de sua morte, a fim de ser batizado com o seu próprio sangue e limpar-nos das imundícies dos nossos pecados. Em vista de tudo isso, como poderemos deixar de amá-Lo de todo o nosso coração, e recusar-nos a sofrer alguma coisa por seu amor?

I. Podia Jesus salvar-nos sem sofrer; mas não, quis abraçar uma vida de dores e de desprezos, sem qualquer consolação terrestre, e uma morte toda amargosa e desolada, unicamente para nos fazer compreender o amor que nos tinha e o seu desejo de ser amado por nós. Durante toda a sua vida Jesus suspirava pela hora da morte, que Ele desejava oferecer a Deus a fim de obter para nós a salvação eterna. É este o desejo que o fazia dizer: Baptismo habeo baptizari, et quomodo coarctor, usquedum perficiatur — “Tenho de ser batizado com um batismo; e quão grande não é a minha ansiedade até que ele se cumpra!” Jesus desejava ser batizado com o seu próprio sangue, para expiar, não os pecados próprios, senão os nossos. Ó amor infinito! Infeliz de quem não Vos conhece e não Vos ama.

Foi esse mesmo desejo que na véspera de sua morte Lhe inspirou estas palavras: Desiderio desideravi hoc Pascha manducare vobiscum (1) — “Tenho desejado ansiosamente comer esta Páscoa convosco”. Falando assim, demonstrou que em toda a sua vida não tivera outro desejo, a não ser o de ver chegado o tempo de sua paixão e morte, a fim de patentear ao homem o amor imenso que lhe tinha. — É pois, verdade, ó meu Jesus, almejais o nosso amor com tamanha veemência, que para o ganhardes não recusastes a morte! Como poderei negar alguma coisa a um Deus que por meu amor deu o seu sangue e a sua vida?

II. Diz São Boaventura que causa pasmo ver um Deus padecer por amor dos homens; mas que mais pasmo causa ver homens que contemplam um Deus que sofre por amor deles, que se fez criança e está tiritando de frio numa gruta, que vive como pobre oficial numa humilde loja e afinal morre, como um réu, sobre a cruz, e todavia não ardem de amor para com um Deus tão amante, ou mesmo chegam a desprezar o amor divino por amor dos vis prazeres da terra: como é possível que um Deus ame tanto os homens, e que estes, tão gratos aliás para com seus semelhantes, sejam tão ingratos para com Deus?

Ah! Jesus meu, eu também tenho sido do número destes ingratos. Dizei-me: como pudestes aceitar tantos sofrimentos por meu amor, apesar da previsão das injúrias que Vos havia de fazer? Mas já que me tendes suportado e me quereis ver salvo, dai-me uma grande dor dos meus pecados, uma dor proporcionada à minha ingratidão. Abomino e detesto sinceramente todos os desgostos que Vos tenho causado. Se em tempos passados desprezei a vossa graça, agora estimo-a acima de todos os reinos da terra. Amo-Vos de toda a minha alma, ó Deus de infinito amor, e desejo viver unicamente para Vos amar. Abrasai-me mais, e dai-me mais amor. Lembrai-me sempre o amor que me tendes dedicado, a fim de que o meu coração esteja sempre abrasado em vosso amor, assim como o vosso ardia no meu amor.

— Ó Coração amante de Maria, acendei em meu pobre coração o fogo do santo amor.

Referências:
(1) Lc 22, 15

 Segunda-feira da Segunda Semana depois da Epifania

O Amor vence tudo

Fortis est ut mors dilectio – “O amor é forte como a morte” (Ct 8, 6)

Sumário. Assim como a morte nos desprende de todos os bens terrestres, das riquezas, das dignidades, dos parentes e amigos e de todos os prazeres do mundo; assim o amor de Deus, quando reina num coração, desprende-o do afeto a todos os bens caducos. Queremos, pois, saber se amamos a Deus e se somos inteiramente d’Ele? Examinemos se estamos desapegados de todas as coisas terrestres. Vejamos sobretudo se já estamos desapegados de nós mesmos, pela morte do maldito amor próprio, que quer intrometer-se mesmo nas ações mais santas.

I. Assim como a morte nos desprende de todos os bens terrestres, das riquezas, das dignidades, dos parentes e amigos e de todos os prazeres mundanos: assim o amor de Deus, quando reina num coração, desprende-o do afeto a todos estes bens terrestres. Por isso vemos os Santos desfazerem-se de tudo quanto o mundo lhes oferecia, renunciarem às suas posses, às mais altas dignidades e retirarem-se para os desertos ou claustros, para pensarem somente em amar o seu Deus. — A alma não pode deixar de amar, ou seu Criador, ou as criaturas. Desfaça-se uma alma de todo o afeto terrestre e achá-la-eis cheia do amor divino. Queremos saber se pertencemos inteiramente a Deus? Examinemo-nos se estamos desapegados de todas as coisas da terra.

Queixam-se alguns de que em todas as suas devoções, orações, comunhões, visitas ao Santíssimo Sacramento não acham Deus. Responde-lhes Santa Teresa: desprende o coração das criaturas e então busca Deus e achá-Lo-ás. Não acharás sempre doçuras espirituais, mas o Senhor te fará gozar aquela paz interior que sobrepuja todas as delícias sensitivas. Que delícia maior pode experimentar uma alma abrasada no amor divino do que em dizer: Deus meus et omnia — “Meu Deus e meu tudo”?

Fortis ut mors dilectio — “O amor é forte como a morte”. Enquanto virmos um moribundo interessado por alguma coisa terrestre, teremos a prova mais certa de que não está ainda morto, visto que a morte nos tira tudo. Quem quiser ser todo de Deus deve deixar tudo: a reserva feita de qualquer coisa prova que o amor de Deus não é perfeito, mas fraco. — O amor divino, diz o P. Segneri Júnior, é um amável ladrão que nos tira todas as coisas terrestres. A outro servo de Deus, que tinha distribuído todos os seus bens entre os pobres, perguntou-se o que o reduzira a tal estado de pobreza. Tirou da algibeira o livro dos Evangelhos e disse: Eis aí quem me despojou de tudo. Em uma palavra, Jesus Cristo quer possuir o nosso coração todo inteiro e não sofre competidores.

II. Diz São Francisco de Sales que o puro amor divino consome tudo quanto não é Deus. Portanto, quando nasce em nosso coração qualquer afeto a alguma coisa que não seja Deus nem por Deus, preciso é arrancá-lo logo, dizendo: Vai-te, pois para ti não há aqui lugar. É nisto que consiste a renúncia completa, que o Salvador nos recomenda tão instantemente, se quisermos ser d’Ele sem reserva; digo renúncia completa, isso é, de qualquer coisa, e especialmente de parentes e amigos. Quantos, para agradar aos homens, deixam de fazer-se santos!

Mas sobretudo devemos renunciar a nós mesmos, triunfando do amor próprio. Maldito amor próprio que quer intrometer-se em tudo, até nas obras mais santas, deslumbrando-nos com a própria glória ou a própria satisfação. Quantos pregadores e escritores perdem assim todo o merecimento das suas fadigas! Muitas vezes mesmo em nossas meditações ou leituras espirituais ou mesmo em nossas santas comunhões se mistura alguma intenção menos pura, quer de sermos vistos, quer de experimentarmos as doçuras espirituais.

Devemo-nos portanto esforçar por vencer este inimigo que nos faz perder o fruto das nossas mais belas obras. Devemo-nos privar, quanto possível, daquilo que mais nos agrada: privar-nos de tal ou qual divertimento, exatamente porque nos diverte; obsequiar uma pessoa ingrata, exatamente porque é amargosa. O amor próprio faz com que nenhuma coisa se nos afigure boa em que ele não acha a sua satisfação. Mas quem quiser ser todo de Deus, quando se trata de coisas do seu agrado, faça-se violência e diga: Perca-se tudo, contanto que se dê gosto a Deus.

Pelo mais, não há no mundo pessoa mais contente do que aquela que despreza todos os bens do mundo. Quem mais se priva de semelhantes bens, mais rico se torna de graças divinas. É assim que o Senhor sóe galardoar aos que o amam fielmente.

Ó meu Jesus, Vós conheceis a minha fraqueza: prometestes socorrer a quem confia em Vós. Senhor, amo-Vos, espero em Vós, dai-me força e fazei-me todo vosso. Em vós também confio, ó minha doce Advogada, Maria.

 Terça-feira da Segunda Semana depois da Epifania

Remorsos e desejos de um pecador moribundo

Angustia superveniente, requirent pacem, et non erit – “Ao sobrevir-lhes de repente a angústia, eles buscarão a paz e não a haverá” (Ez 7, 25)

Sumário. Consideremos o estado infeliz de um moribundo que viveu mal, especialmente se era pessoa consagrada a Deus. Que remorso lhe causará o pensamento de que, com os meios que o Senhor lhe proporcionou, até um pagão se faria santo! Desejará então um instante daquele tempo que agora se perde, ou é empregado no pecado, mas em vão. Irmão meu, a fim de que não tenhamos tal desgraça, tomemos agora as resoluções que então havíamos de tomar. Talvez seja esta a última vez que Deus nos chama.

I. Como se deixam bem conhecer no momento da morte as verdades da fé, mas para maior tormento do moribundo que viveu mal, especialmente se era pessoa consagrada a Deus, já que, para o servir, tinha mais facilidade, mais exemplos, mais inspirações. Ó Deus, que pena será para essa pessoa pensar e dizer: “Repreendi os outros e fiz pior do que eles! Deixei o mundo e vivi ligado aos gozos, às vaidades e às afeições do mundo!” Que remorso lhe causará o pensamento de que, com as luzes que recebeu de Deus, até um pagão se teria feito santo! Que dor não sofrerá, lembrando-se de ter ridicularizado as práticas de piedade dos outros como fraquezas de espírito e de ter louvado certas máximas do mundo, de estima ou de amor próprio!

Desiderium peccatorum peribit (1) — “O desejo dos pecadores perecerá”. Quanto será desejado na morte o tempo que se perde agora! Conta São Gregório, nos seus Diálogos, que um homem rico, mas de maus costumes, chamado Crisâncio, estando a ponto de morrer, gritava aos demônios que lhe apareciam visivelmente para se apoderar de sua alma: “Dai-me tempo, dai-me tempo até amanhã.” Respondiam os demônios: “Ó insensato, é nesta hora que pedes tempo? Tiveste tanto tempo e perdeste-o, empregaste-o a pecar, e agora é que pedes tempo? Já não há mais tempo.” O desgraçado continuava a gritar e a pedir socorro. Próximo dele achava-se um seu filho chamado Maximo, que era monge. Dizia-lhe o moribundo: “Socorre-me, filho, meu caro Maximo, socorre-me!” No entanto, com o rosto chamejante, volvia-se de um para outro lado do leito, e nesta agitação e gritos de desespero, expirou desgraçadamente.

Ó céus! Durante a vida, aqueles desgraçados comprazem-se na sua loucura, mas na morte abrem os olhos e reconhecem quanto foram insensatos; mas isto então lhes serve tão somente para aumentar o seu desespero de remediarem o mal que fizeram. — Meu irmão, penso que ao leres estas reflexões, dirás: É verdade; é mesmo assim. Mas se é verdade, muito maior seria a tua loucura e a tua desgraça, se, reconhecendo a verdade na vida, não te aproveitasses dela a tempo. Esta mesma leitura, que acabas de fazer, ser-te-á no momento da morte uma espada de dor.

II. Eia pois, já que te é dado tempo de evitar tão deplorável morte, dá-te pressa em aproveitá-lo: não demores até que venha o tempo em que não poderá remediar o mal. Não demores sequer um mês, nem sequer uma semana. Quem sabe se a luz que Deus te dá agora na sua misericórdia, não é a última graça e a última exortação que te faz? É loucura não querer pensar na morte, que é certa e da qual depende a eternidade; mas maior loucura ainda é pensar nela e não se preparar. Faze agora as reflexões e resoluções que farás então; agora com fruto, então sem fruto; agora com a confiança de te salvar, então com grande desconfiança de tua salvação. — A um fidalgo, que se despedia da corte de Carlos V, a fim de viver unicamente para Deus, perguntou o imperador, porque deixava a corte. “Porque é necessário”, respondeu ele, “que exista um intervalo de penitência entre uma vida desordenada e a morte.”

Não, meu Jesus, não quero continuar a abusar da vossa misericórdia. Agradeço-Vos a luz que hoje me dais, e prometo-Vos mudar de vida. Quanto me consola o que dissestes: Convertimini ad me, et convertar ad vos (2) — “Convertei-vos a mim e eu me converterei a vós”. Afastei-me de Vós por amor das criaturas e das minhas miseráveis satisfações; agora deixo tudo e converto-me a Vós. Estou certo de que não me repulsareis, se eu quiser amar-Vos, porquanto me dizeis que estais pronto para me acolher em vossos braços. Convertar ad vos — “me converterei a vós”. Recebei-me na vossa graça, fazei-me conhecer o grande bem que em Vós possuo e o amor que tivestes para comigo, a fim de que não torne a deixar-Vos.

— Perdoai-me, ó meu amado Jesus, perdoai-me; meu Amor, perdoai-me todos os desgostos que Vos tenho causado. Dai-me o vosso amor e fazei de mim o que quiserdes. Castigai-me, como entenderdes; privai-me de tudo, mas não me priveis da vossa graça. Venha o mundo todo a oferecer-me todos os seus bens; protesto que só Vos quero a Vós e nada mais.

— Ó Maria, recomendai-me a vosso Filho; Ele vos concede tudo quanto pedis; em vós confio.

Referências:
(1) Sl 111, 10
(2) Za 1, 3

 Quarta-feira da Segunda Semana depois da Epifania

Morte feliz dos religiosos

Beati mortui qui in Domino moriuntur. Amodo iam dicit Spiritus, ut requiescant a laboribus suis – “Bem-aventurados os mortos que morrem no Senhor. Desde agora diz já o Espírito Santo que descansem dos seus trabalhos” (Ap 14, 13)

Sumário. Para te confirmares na tua vocação, imagina que estás a ponto de morrer e próximo a comparecer no tribunal de Jesus Cristo. Pensa o que então mais desejarás ter feito. Será talvez teres ajudado à casa e feito a vontade própria, com as honras de pároco, de cônego, de ministro? Ou antes, morrer na casa de Deus, assistido de teus bons confrades, depois de uma vida na Religião sob a obediência e desapegado de todas as coisas da terra?

I. Quem serão estes bem-aventurados mortos que morrem no Senhor, senão os Religiosos que no fim da vida se acham já mortos no mundo, tendo-se desapegado dele e de todos os seus bens, por meio dos santos votos? — Considera, meu irmão, quanto estarás contente, se, seguindo a tua vocação, tiveres a ventura de morrer na casa de Deus. O demônio te representará que, afastando-te do mundo e perseverando na Religião, depois poderás arrepender-te de teres deixado a tua casa e a tua pátria, de teres privado os parentes de algum proveito, que de ti podiam esperar. Mas pergunta a ti mesmo: Na hora da morte estarei arrependido ou contente por ter executado a minha resolução?

Por isso te peço: Imagina que estás à morte e próximo a comparecer perante o tribunal de Jesus Cristo. Pensa o que então mais desejarás ter feito, reduzido a tal estado. Será talvez teres contentado os parentes, teres feito benefício à casa ou à tua terra; morreres cercado dos parentes, dos sobrinhos, dos cunhados, depois de uma vida em tua casa com as honras de pároco, de cônego, de ministro? Ou não será antes teres vindo a morrer na casa de Deus, assistido de teus bons irmãos de religião, que na grande passagem te animarão; depois de teres vivido muitos anos na humilhação, na mortificação e na privação dos bens, longe dos parentes, sem vontade própria, debaixo da obediência e desapegado de todas as coisas da terra; circunstâncias estas todas que tornam doce e amável a morte?

O Papa Honório, quando estava para morrer, desejava ter ficado no mosteiro a lavar os pratos e não ter sido Papa. Na hora da morte, Filipe II, rei de Espanha, desejava ter sido leigo em algum convento e não rei. Filipe III, igualmente rei de Espanha, dizia na morte: Tomara que tivesse servido a Deus num deserto, em vez de ser monarca: porque agora compareceria com mais confiança perante o tribunal de Jesus Cristo.

II. Quando, pois, o demônio te tentar para abandonares a tua vocação, pensa na morte e imagina que estás próximo do grande momento do qual depende a eternidade. Assim vencerás todas as tentações, permanecerás fiel a Deus, viverás e morrerás contente.

O nosso Padre Januário Maria Sarnelli (1), pouco antes de morrer, falando com Deus, disse:

“Senhor, Vós sabeis que tudo quanto tenho feito, tudo quanto tenho pensado, tem sido para glória vossa: agora suspiro por Vos ir ver face a face, se assim o quiserdes.”

Depois acrescentou:

“Eia, quero pôr-me em doce agonia.”

Em seguida entrou em doce colóquio com Deus e momentos depois expirou placidamente com um sorriso nos lábios. O mesmo se dará contigo, meu irmão, e experimentarás com quanta razão São Bernardo, falando do estado religioso, exclamou:

“Ó vida segura, na qual se espera a morte sem temor e mesmo se suspira por ela com alegria, e é acolhida com afeto.”

Meu Senhor Jesus Cristo, que para me alcançardes uma boa morte, escolhestes para Vós uma morte tão amargosa, já que me amastes a ponto de me escolherdes para seguir mais de perto as vossas pegadas, a fim de me verdes assim mais unido e apertado ao vosso Coração amantíssimo; prendei-me agora, Vo-lo peço, todo a Vós com os doces laços de vosso amor, a fim de que nunca mais me aparte de Vós. Meu amado Redentor, desejo ser-Vos grato e responder a tão grande graça; mas, por causa de minha fraqueza, temo ser-Vos infiel. Jesus meu, não o permitais: deixai-me morrer antes do que abandonar-Vos e esquecer-me do afeto especial que me tendes havido.

Amo-Vos, meu amado Salvador; Vós sois e sereis sempre o único Senhor do meu coração e da minha alma. Deixo tudo e escolho-Vos, só a Vós, por meu único tesouro, ó Cordeirinho puríssimo de Deus, ó meu afetuosíssimo Amador! Ide-vos embora, ó criaturas: o meu único bem é meu Deus! Ele é o meu único amor, o meu tudo. Amo-Vos, ó Jesus meu e em amar-Vos quero empregar todo o resto da minha vida, quer seja breve, quer longa. Abraço-Vos e aperto-Vos ao meu coração e abraçado convosco quero morrer. É esta a graça que Vos peço, não quero outra. Fazei com que eu viva sempre abrasado em vosso amor e quando chegar o fim de minha vida, fazei-me expirar num ato de amor ardente para convosco. — Imaculada Virgem Maria, obtende-me esta graça: de vós a espero.

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* As pessoas seculares podem tomar a meditação para a terça-feira da quinta ou sexta semana depois da Epifania ou alguma das meditações que se acham no fim do volume (veja-se Apêndice n. V), e o mesmo farão sempre quando encontrarem uma meditação imprópria a seu estado. Pede-se, porém, a todos os sacerdotes e a todos os jovens, em particular nos Seminários ou Colégios, leiam sempre as meditações relativas ao estado religioso. Talvez o Senhor queira servir-se delas para chamar uma alma a uma vida mais perfeita e para fazer dela um instrumento da sua maior glória.

Referências:
(1) O Ven. P. Januário Maria Sarnelli, de quem fala aqui Santo Afonso, foi um de seus primeiros companheiros. Morreu em Nápoles no dia 30 de junho de 1744, com 42 anos de idade. O processo de Beatificação foi introduzido há tempos e esperamos vê-lo em breve sublimado às honras do altar.

 Quinta-feira da Segunda Semana depois da Epifania

Estada de Jesus no Egito

Consugens (Ioseph), accepit puerum et matrem eius nocte, et secessit In Aegyptum – “Levantando-se (José) tomou consigo, ainda de noite, o Menino e sua Mãe, e retirou-se para o Egito” (Mt 2, 14)

Sumário. Durante a sua estada no Egito, a sagrada Família se nos mostra modelo perfeitíssimo de uma família cristã e de uma comunidade religiosa. Quão bem ordenadas estavam todas as ocupações dessas santas pessoas, quão bem dividido o tempo entre o trabalho e a oração! Com o seu trabalho José ganha o pão para si e para os outros; Maria cuida principalmente de seu Filho; e Jesus começa a prestar a seus pais os primeiros leves serviços. Lancemos um olhar sobre nós mesmos e examinemos como temos imitado esses grandes modelos.

I. Jesus quis passar a sua infância no Egito, a fim de levar uma vida mais dura e desprezada. Segundo a opinião de Santo Anselmo e de outros escritores, a sagrada Família morou em Heliópolis. Contemplemos, com São Boaventura, a vida que Jesus levou no Egito, durante os sete anos que, conforme à revelação feita a Santa Maria Madalena de Pazzi, ali passou. A casa é muito pobre, porque São José só pode pagar um aluguel muito baixo; pobre é a cama, pobre a alimentação, pobre, em uma palavra, é toda a sua vida, porque, com o trabalho de suas mãos, só conseguem ganhar o necessário de dia em dia, e vivem num país onde são desconhecidos e desprezados, sem parentes nem amigos.

A sagrada Família vive, pois, em grande pobreza, mas como são bem ordenadas as ocupações desses três moradores! O santo Menino não fala com a boca, mas fala continuamente e eloqüentemente com o coração a seu Pai celestial, oferecendo-Lhe todos os seus padecimentos e todos os instantes de sua vida para nossa salvação. Maria tampouco fala, mas, vendo o seu caro Filhinho, contempla o amor divino e a graça que lhe fez escolhendo-a para sua Mãe. José trabalha igualmente em silêncio, mas vendo o divino Menino agradece-Lhe por tê-lo escolhido para companheiro e guarda de sua vida.

Foi naquela casa que Maria desabituou o menino Jesus de alimentar-se só com o leite e começou a alimentá-Lo com suas próprias mãos. Põe o Filho no colo, toma da tigelinha um pouco de pão amolecido em água e põe-Lho na sagrada boca. Naquela casa faz Maria para seu Filhinho o primeiro vestido e chegado o tempo de Lhe tirar as faixas, começa a vesti-Lo. Naquela mesma casa ainda começa Jesus a dar os primeiros passos e a falar. Começa ali a fazer o ofício de aprendiz, ocupando-se com os pequenos serviços que pode prestar uma criança.

Ó desmame! Ó vestidinho! Ó primeiros passos! Ó palavras balbuciadas! Ó pequenos serviços de Jesus Menino! Vós demasiadamente feris e abrasais os corações daqueles que amam Jesus e vos contemplam! Um Deus a andar vacilando e caindo! Um Deus a balbuciar! Um Deus feito tão débil, que não pode ocupar-se senão em pequenas coisinhas de casa, que não pode levantar um pão cujo peso excede as forças de uma criança. Ó santa fé, ilumina-nos a fim de que amemos um Senhor tão bom, que por nosso amor se sujeitou a tantas misérias.

II. Dizem que, quando Jesus entrou no Egito, caíram por terra todos os ídolos daquele povo. Roguemos a Deus que nos faça amar Jesus de todo o coração, porque, quando o amor de Jesus entra numa alma, caem todos os ídolos de afetos terrestres.

Ó Menino santo, que viveis nessa terra de bárbaros, pobre, desconhecido e desprezado, eu Vos reconheço por meu Deus e Salvador, e Vos dou graças por todas as humilhações e dores que sofrestes no Egito por meu amor. Com essa vossa vida ensinastes-me a viver como peregrino nesta terra, fazendo-me compreender que a minha pátria não é este mundo, senão o paraíso, que Vós viestes adquirir-me com a vossa morte. Ah, Jesus meu! Tenho pensado no que fizestes e padecestes por meu amor. Quando me lembro que Vós, ó Filho de Deus, tivestes nesta terra uma vida tão atribulada, pobre e desprezada, como é possível que eu ande à procura de prazeres e bens terrestres?

Ó meu amado Redentor, permiti que me associe convosco, admiti-me a viver nesta terra sempre unido a Vós para que unido a Vós chegue um dia a amar-Vos no céu, gozando de vossa companhia para sempre. Dai-me luz, aumentai a minha fé. Que bens e prazeres! Que dignidades e honras! Tudo é vaidade e loucura. A única riqueza, o único bem é possuir-Vos, ó meu Jesus, e a ninguém quero senão a Vós. Vós me quereis e eu Vos quero. Se possuísse mil reinos, renunciá-los-ia todos para Vos dar gosto: Deus meus et omnia — “Meu Deus e meu tudo!” Se em outros tempos corri atrás das vaidades e prazeres do mundo, agora detesto-os e estou arrependido. Meu Salvador amado, de hoje em diante, Vós sereis o meu único Bem, o meu único Amor, o meu único Tesouro. Maria Santíssima, rogai a Jesus por mim; rogai-Lhe que me faça rico de seu amor, e nada mais desejo.

 Sexta-feira da Segunda Semana depois da Epifania

Volta de Jesus do Egito

Consurgens (Ioseph), accepit puerum et matrem eius, et venit in terram Israel – “José, levantando-se, tomou o Menino e sua Mãe e veio para a terra de Israel” (Mt 2, 21)

Sumário. Depois de um exílio de sete anos, a sagrada Família recebeu afinal ordem de voltar para a Palestina. José toma a ferramenta de seu ofício, Maria a trouxa de roupa e se põem prestes em caminho com Jesus, ora carregando-O alternadamente nos braços, ora conduzindo-O pela mão. Quanto não devem ter sofrido os santos viajantes naquela jornada! Unamo-nos com eles na viagem que estamos fazendo para a eternidade.

I. Depois da morte de Herodes e depois de um exílio de sete anos, que na opinião de Santa Madalena de Pazzi Jesus passou no Egito, aparece novamente o Anjo a São José e manda-lhe que tome o santo Menino e a Mãe, e volte para a Palestina. Com grande satisfação pela notícia recebida, São José vai comunicá-la a Maria. Antes de partirem, os santos esposos vão levar as despedidas aos amigos que tinham granjeado naquela terra. Depois, José ajunta de novo a pouca ferramenta do seu ofício, Maria faz uma trouxa da roupa que possui e tomando o divino Menino pela mão, empreendem, com Jesus no meio, a viagem da volta.

Reflete São Boaventura que esta viagem foi mais penosa para Jesus do que a da fuga; porquanto já estava mais crescido, pelo que Maria e José não podiam carregá-Lo longo tempo nos braços; por outro lado, o santo Menino pela sua idade não podia ainda fazer tão grande viagem a pé; de sorte que Jesus se via obrigado muitas vezes a parar e a descansar por falta de forças. Mas, quer caminhem, quer descansem, José e Maria têm sempre os olhos e os pensamentos fitos no Menino amado, que era todo o objeto do seu amor. Ah, com que recolhimento anda por esta vida a alma feliz que tem sempre diante dos olhos o amor e os exemplos de Jesus Cristo!

Na viagem, os santos peregrinos quebram de quando em vez o silêncio com alguma conversação santa; mas com quem e de que é que falam? Não falam senão com Jesus e de Jesus. Quem tem Jesus no coração, não fala senão com Jesus, nem de outra coisa senão de Jesus.

II. Pondera ainda São Boaventura a pena que sofreu, durante a viagem, o nosso pequeno Salvador, quando, de noite, não tinha mais o colo de Maria para descansar, como na ida, mas sim a terra nua. Para alimentação também não tinha mais leite, mas um bocado de pão duro, duro demais para a sua tenra idade. É bem provável que sofresse também sede naquele deserto onde os Hebreus experimentaram tamanha penúria de água, que foi preciso um milagre de Deus para a remediar. Contemplemos e adoremos com amor todos esses sofrimentos de Jesus Menino.

Meu amado e adorado Redentor, voltais para vossa pátria; mas, ó Deus, para onde voltais? Ides ao lugar onde vossos conterrâneos vos preparam desprezos durante a vossa vida e depois açoites, espinhos, ignomínias e a cruz para a vossa morte. Tudo isso, ó meu Jesus, estava presente aos vossos olhos divinos, e Vós de boa vontade ides de encontro à paixão que os homens vos preparam. Mas, Senhor meu, se Vós não tivésseis vindo a morrer por mim, eu não poderia ir amar-Vos nos paraíso e deveria estar para sempre longe de Vós. A vossa morte é a minha salvação. — Como foi possível, ó Senhor, que eu pelo desprezo de vossa graça me condenasse outra vez ao inferno, mesmo depois da vossa morte por meio da qual me haveis libertado dele? Reconheço que um inferno é pouco para mim.

Todavia, Vós me esperastes para me perdoar. Graças Vos sejam dadas, meu Redentor, e arrependido como estou, detesto todos os desgostos que Vos tenho dado. Por piedade, ó Senhor, livrai-me do inferno. Se por minha desgraça tivesse um dia de condenar-me, o meu inferno mais doloroso seria o remorso de ter conhecido em vida o amor que me tendes havido. Não tanto o fogo infernal, como a falta de vosso amor, ó Jesus meu, seria o meu inferno. Vós viestes ao mundo a fim de acender o fogo de vosso amor; é neste fogo que quero abrasar-me e não naquele que me havia de separar para sempre de Vós. Repito, pois, ó meu Jesus, livrai-me do inferno, porque no inferno não Vos poderia amar. — Ó Maria, minha Mãe, ouço que todos dizem e publicam que aqueles que vos amam e em vós confiam, não irão ao inferno, contanto que se queiram emendar. Amo-vos, Senhora minha, e confio em vós; quero emendar-me; ó Maria, encarregai-vos de livrar-me do inferno.

 Sábado da Segunda Semana depois da Epifania

Santo Afonso, modelo de devoção a Maria Santíssima

Hanc amavi et exquisivi a iuventute mea, et quaesivi sponsam mihi eam assumere – “A esta eu amei e requestei desde a minha mocidade, e procurei tomá-la para mim por esposa” (Sb 8, 2)

Sumário. Foi indizível a devoção que Santo Afonso nutria para com a Santíssima Virgem. Durante a sua vida toda deu disso contínuas e variadas provas nos diversos obséquios praticados em honra dela. E a divina Mãe, que nunca se deixa vencer em amor, como soube, tanto na vida como na morte, retribuir o afeto desse seu dileto filho! Se queremos que também para nós a santa Virgem seja verdadeira Mãe, imitemos Santo Afonso e mostremo-nos em nossas obras seus dignos filhos.

I. A grande Mãe de Deus é a mais excelsa criatura do universo e o Senhor decretou que todas as graças que quer dispensar aos homens passem pelas mãos de Maria. Na convicção desta verdade, Santo Afonso começou desde criança a amar a santa Virgem e a honrá-la com obséquios especiais. Quando, porém, já desenganado do mundo e em sinal de que o abandonava para sempre, se declarou cavalheiro da Rainha do céu, depositando a espada sobre seu altar, então o seu amor à Virgem não teve mais limites e foi aumentando cada vez mais durante toda a sua vida.

De manhã e à noite, com o rosto em terra, punha toda a sua pessoa, e particularmente a sua pureza, sob proteção de Maria, beijava-lhe humildemente a mão e pedia-lhe a bênção como um filho à sua mãe, ao toque do Angelus, ajoelhava-se logo, onde quer que se achasse, para saudar afetuosamente a sua Senhora; repetia a saudação angélica cada vez que ouvia o relógio dar horas, e fizera promessa de nunca negar coisa alguma que lhe fosse pedida por amor de Maria. — No seu quarto quis sempre ter diante dos olhos uma imagem da Mãe do Bom Conselho, à qual recorria logo em todas as necessidades, dando-lhe os títulos mais afetuosos. Ao pescoço trazia sempre o escapulário e ao lado trazia o Rosário, mesmo quando bispo; e nunca deixou de rezá-lo, mesmo mais de uma vez por dia. Além disso, preparava-se para as festas da Virgem com devotas Novenas, jejuava na véspera, bem como todos os sábados, e desejava ser, depois de Deus, o primeiro no amor a Maria, tanto na terra como no céu.

Finalmente, desejando ver os outros também amarem à Virgem, mandou a seus missionários pregassem sempre sobre a misericórdia de Maria. Ele mesmo escreveu o importante livro das Glórias de Maria, com o único intuito de continuar sempre, ainda depois de morto, a promover a glória desta grande Rainha e a fazer que todos a amem. — Já que te glorias de ser filho e devoto de Santo Afonso, examina-te acerca da tua devoção a Maria Santíssima, compara-a com a de teu santo Pai, e lembra-te de que o caráter distintivo dos filhos verdadeiros do grande Doutor é exatamente a devoção especial à Mãe de Deus.

II. Maria Santíssima não pode deixar de amar a quem a ama. Mais, no dizer de um devoto escritor, ela nunca se deixa vencer em amor pelos seus devotos: Semper cum amantibus est amantior. Por isso, a grande Rainha retribuiu e venceu o afeto de seu amado filho Afonso, impetrando-lhe graças inumeráveis. — Em primeiro lugar, tomou a Congregação por ele fundada sob a sua proteção especial, defendeu-a contra os ataques infernais, e, ainda em vida de Santo Afonso, deu-lhe um insigne propagador na pessoa de São Clemente Maria (1). — Além disso, sempre abençoou e continua a abençoar os trabalhos apostólicos do Santo e de seus filhos, e obteve-lhe da Sabedoria incriada, ciência tão perfeita, que a Igreja o declarou o seu Doutor universal.

Finalmente, para não falar do mais, a divina Mãe consolou e animou Afonso em todas as dificuldades que lhe ocorreram em toda a sua longa vida. Assim como piamente se crê, apareceu-lhe e consolou-o na suprema agonia, e ainda depois da morte do Santo, uniu a devoção para com este à que os fiéis lhe dedicam a ela, de tal modo que, onde se fala, em qualquer parte do mundo, sobre Maria debaixo do título de Mãe do Perpétuo Socorro, se fala igualmente de Afonso.

Oh! Quantas graças a grande Rainha nos teria também preparado se nós nos mostrássemos seus dignos filhos! Seja, pois, o fruto desta meditação imitar a devoção de Afonso para com a Mãe de Deus, e para este fim imploremos o auxílio do Santo mesmo.

Ó fidelíssimo servo de Maria, Santo Afonso, vós que sabeis quanto Maria é digna de ser honrada, servida e amada, alcançai-me que eu também compreenda um pouco a sublimidade das suas virtudes para as imitar e seus eminentes privilégios para os admirar, louvar e amar. Meu santo protetor, eu também quisera honrá-la como vós a honrastes, amá-la como vós a amastes, louvá-la como vós a louvastes, para ser por ela amado como vós o fostes. Mas estes meus desejos são superiores às minhas forças; meu coração está demasiadamente apegado às criaturas para se elevar tão alto. Por isso a vós recorro, ó Protetor poderoso; alcançai-me a graça de honrar, servir e amar a Maria com todas as minhas forças e de invocá-la sempre com o título consolador de Mãe do Perpétuo Socorro.

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1. O leitor que deseja saber quem é este filho predileto de Santo Afonso, leia na 2ª Parte deste tomo a meditação para o dia 15 de março, dia da festa do Santo.
3ª parte

 Terceira Semana depois da Epifania

Terceira Semana do Tempo Comum (Calendário Litúrgico)

Domingo: O Centurião e os homens de meia fé

Segunda-feira: Os bens do mundo não nos podem fazer felizes

Terça-feira: Vinda do divino Juiz e exame no Juízo Final

Quarta-feira: Quanto é cara a Deus a alma que se lhe entrega toda

Quinta-feira: Jesus na casa de Nazaré

Sexta-feira: Jesus cresce em idade, em sabedoria, e em graça

Sábado: Da confiança em Maria, Rainha de misericórdia

 Terceiro Domingo depois da Epifania

O Centurião e os homens de meia fé

Amen dico vobis: non inveni tantam fidem in Israel – “Em verdade vos digo: não achei tamanha fé em Israel” (Mt 8, 10)

Sumário. Prouvera a Deus que todos os cristãos imitassem a fé do Centurião! Então o Senhor não terá de dirigir-lhes também a eles a queixa: “Não achei tamanha fé em Israel”. Mas infelizmente é demasiadamente grande o número dos homens de meia fé, dos que creem nos dogmas do Evangelho sem se importar com a observância das suas máximas. Os infelizes! Tal fé repartida servir-lhes-á de maior condenação perante o tribunal de Jesus Cristo.

I. Tendo Jesus Cristo entrado em Cafarnaum, saiu-lhe ao encontro um centurião, para lhe suplicar que restituísse a saúde a um seu criado paralítico. Respondeu-lhe o Redentor: Eu mesmo irei e o curarei. — Não, Senhor, replicou o Centurião; eu não sou digno de que entreis em minha casa; basta que digais uma só palavra, e o meu criado estará salvo. — Jesus Cristo, ao ouvir tal palavra, admirou-se; consolou o Centurião dando no mesmo momento saúde ao criado, e voltando-se para os seus discípulos disse-lhes: Em verdade vos digo que não achei tamanha fé em Israel.

Ah! Prouvera a Deus que todos os cristãos imitassem a fé daquele centurião; então o Senhor não teria de dirigir-lhes também a eles a queixa: Non inveni tantam fidem in Israel — “Não achei tamanha fé em Israel”. Mas é excessivamente grande o número de cristãos de meia fé somente. Quero dizer que há católicos que creem nas verdades especulativas da fé, que dizem respeito à inteligência, e não creem, ou ao menos não mostram que creem, também nas verdades práticas, que dizem respeito à vontade e aos costumes.

Com efeito, como se pode dizer que creem no Evangelho aqueles que julgam desonrar-se quando perdoam, que não pensam senão em ter vida de delícias, que julgam infeliz o que se abstém dos prazeres terrestres e mortifica a sua carne? Como se pode dizer que creem no Evangelho aqueles que por humano respeito e para não se exporem aos escárnios dos outros, deixam as suas devoções, deixam a frequência dos sacramentos, deixam o recolhimento de espírito, e se dissipam em confabulações, em banquetes, quiçá em coisas piores? Ah! Desses tais deve dizer-se, ou que não têm mais fé, ou que creem somente em parte: Non inveni tantam fidem in Israel — “Não achei tamanha fé em Isael”.

II. Irmão meu, suplico-te pela salvação de tua alma, examina com diligência qual é a vida que levas. Se por desgraça não a achares de todo conforme à religião que professas, faze um firme propósito de emendá-la, a principiar de hoje mesmo. Reflete que essa meia fé, esse crer nos dogmas do Evangelho sem a observância das suas máximas, não te será de nenhum proveito perante o tribunal do juiz eterno; ou antes, servir-te-á para tua maior condenação.

Eis aí exatamente o que Jesus Cristo diz no Evangelho de hoje: “Eu vos digo que muitos virão do Oriente e do Ocidente e se sentarão à mesa com Abraão, Isaac e Jacó, no reino dos céus. Os filhos do reino, porém, serão lançados nas trevas, onde haverá pranto e ranger de dentes.” — Com estas palavras, nos quis dizer que muitos dos que nasceram entre os infiéis se salvarão com os santos, ao passo que muitos nascidos no grêmio da Igreja irão ao inferno, onde o verme roedor da consciência, com os seus remorsos, os fará chorar amargamente por toda a eternidade, lembrando-lhes sempre que, se é insensato quem não crê no Evangelho, muito mais insensatos foram os que nele creram somente pela metade.

Ó meu amabilíssimo Jesus, eu também há muito tempo mereci ser contado no número daqueles insensatos, porque não tomei sempre a vossa Lei por norma das minhas ações, e Vos ofendi, ó bondade infinita. Senhor, não me atreveria a recorrer a Vós para obter misericórdia; mas: Ad quem ibimus: A quem iremos? Assim Vos direi com São Pedro: Verba vitae aeternae habes (1) — Vós tendes as palavras da vida eterna. Dizei portanto uma destas palavras e a minha alma será salva de todas as enfermidades espirituais, que lhe causei com os meus pecados.

— Quanto ao futuro, renovo agora a minha fé em todas as verdades reveladas no Evangelho, mas somente nas especulativas, senão também nas práticas, e protesto que antes quero morrer do que tornar a transgredi-las.

— E Vós, “Deus onipotente e eterno, olhai propício para a minha fraqueza e estendei em minha defesa a mão poderosa da vossa majestade” (2); fortalecei-me com a vossa graça a fim de que não Vos torne a trair. Peço-o também a vós, ó grande Mãe de Deus e minha Mãe, Maria.

Referências:
(1) Jo 6, 69
(2) Or. Dom. curr.

 Segunda-feira da Terceira Semana depois da Epifania

Os bens do mundo não nos podem fazer felizes

Vidi in omnibus vanitatem et afflictionem animi – “Vi em tudo vaidade e aflição do ânimo” (Ecl 2, 11)

Sumário. Os irracionais que foram criados para a satisfação dos sentidos acham a felicidade nos bens da terra, e possuindo-os nada mais desejam. A alma humana, porém, criada para amar a Deus e estar-lhe unida, nunca achará a paz nos prazeres dos sentidos, como demasiadamente prova a experiência. Só Deus pode contentá-la plenamente. Qual não será, pois a nossa loucura, se, deixando o Senhor, corrermos atrás dos bens falazes do mundo!

I. Neste mundo todos os homens trabalham para alcançar a paz. Afadiga-se tal negociante, tal soldado, tal litigante, porque imaginam que realizando o negócio, obtendo a desejada promoção, ganhando a demanda, farão fortuna e acharão a paz. Pobres mundanos, que procuram a paz no mundo, que lha não pode dar! Só Deus pode dar-nos a paz: Da servis tuis, assim ora a Igreja, illam quam mundus dare non potest pacem — “dai aos vossos servos a paz que o mundo não pode dar”. Não, o mundo com todos os seus bens não pode contentar o coração do homem, porque o homem não foi criado para esses bens, mas somente para Deus, donde resulta que só Deus o pode satisfazer. Os animais, que foram criados para os bens materiais, acham a paz nos bens terrestres. Mas a alma, que foi criada tão somente para amar a Deus e viver com Ele unida, nunca poderá achar a paz nos gozos dos sentidos; só Deus a pode tornar plenamente contente.

São Lucas fala de um rico que, tendo obtido colheita abundante de seus campos, disse assim para consigo: “Minha alma, tens muitos bens em depósito para largos anos; descansa, come, bebe, regala-te.” (1) Mas este desgraçado foi tratado como insensato. E com razão, diz São Basílio; ou não queria por ventura equiparar-se aos animais imundos, e pretendia contentar sua alma com a comida, com a bebida e com os deleites sensuais? Nunquid animam porcinam habes?

Numa palavra, assim conclui São Bernardo, o homem pode encher-se de bens do mundo, mas nunca saciar-se com eles. — Escrevendo o mesmo Santo a propósito desta passagem do Evangelho: Ecce nos reliquimus omnia — “Eis que nós deixamos tudo”, acrescenta que viu no mundo diversos doidos, que todos eram atormentados por uma grande fome. Para se fartar, uns comiam terra: imagem dos avarentos; outros aspiravam o ar; imagem dos ambiciosos; outros que estavam próximos de uma fornalha, recebiam na boca as centelhas que voavam: imagens dos coléricos; outros, enfim, à beira de uma lagoa paludosa, bebiam dessas águas corrompidas: imagens dos desonestos. Depois o Santo, dirigindo-se a eles, exclama: Ó insensatos, não vedes que estas coisas, longe de matar a fome, só podem atiçá-la? Haec potius famem provocant, quam extinguunt.

II. Os bens do mundo têm somente aparência de bens, é por isso que não podem saciar o coração do homem. Comedistis et non estis satiati (2) — “Comestes e não fostes saciados”. Assim o avarento, quanto mais adquire, e o dissoluto, quanto mais se revolve em seus deleites, tanto mais se mostra, a um tempo, desgostoso e ávido de novos prazeres. O mesmo acontece ao ambicioso, que quer saciar-se com uma fumaça. Se os bens da terra pudessem contentar o homem, os ricos, os monarcas seriam perfeitamente felizes, mas a experiência prova o contrário. É o que Salomão declara, afiançando-nos que nada tinha negado aos sentidos: Vanitas vanitatum et omnia vanitas (3) — “Vaidade das vaidades, e tudo é vaidade”.

Que me resta, meu Deus, das ofensas que Vos fiz, senão penas, amarguras e títulos para o inferno? A dor que sofro agora não me desagrada; pelo contrário consola-me, porque é efeito de vossa graça, e já que Vós a excitais em mim, dai-me a confiança que me quereis perdoar. O que me aflige é a amargura de que Vos enchi, ó meu Redentor, que tanto me haveis amado. Merecia ser então abandonado, meu Senhor, mas, em lugar de me abandonardes, vejo que me ofereceis o perdão e que sois o primeiro a pedir a paz. Sim, meu Jesus, quero fazer as pazes e desejo a vossa graça mais do que qualquer outro bem.

Arrependo-me de Vos ter ofendido, Bondade infinita, e por isso quisera morrer de dor. Eu Vos suplico, pelo amor que me tendes tido, a ponto de por mim expirar na cruz: perdoai-me e recebei-me no vosso Coração. Mudai o meu coração de tal sorte, que Vos dê tanto gosto no futuro, como no passado Vos causei desgosto. Pelo vosso amor, renuncio a todos os gozos que o mundo me possa oferecer e tomo a resolução de antes querer perder a vida que a vossa graça. Dizei-me o que tenho a fazer para Vos ser agradável; estou pronto a tudo fazer.

— Prazeres, honras, riquezas, a tudo renuncio; só a Vós quero, meu Deus, minha alegria, meu tesouro, minha vida, meu amor, meu tudo! Ajudai-me, ó Senhor, a Vos ser fiel. Fazei que Vos ame, e disponde de mim como Vos aprouver.

— Maria, minha Mãe e minha Esperança depois de Jesus, recebei-me debaixo da vossa proteção e fazei com que eu seja todo de Deus.

Referências:
(1) Lc 12, 19
(2) Ag 1, 6
(3) Ecl 1, 2

 Terça-feira da Terceira Semana depois da Epifania

Vinda do divino Juiz e exame no Juízo Final

Videbunt Filium hominis venientem in nubibus coeli, cum virtute multa et maiestate – “Eles verão o Filho do homem, que virá sobre as nuvens do céu com grande poder e majestade” (Mt 24, 30)

Sumário. Eis que se abrem os céus e os anjos vêm assistir ao juízo trazendo as insígnias da Paixão de Jesus Cristo, e especialmente a Cruz. Vêm depois os santos apóstolos e todos os seus imitadores; vem a Rainha dos Santos, Maria Santíssima, e por fim o eterno Juiz mesmo, que, sentado num trono de majestade e de luz, procederá ao exame. Reflitamos aqui: O que será de nós nesse dia? Que desculpas poderemos alegar, se por ventura formos condenados?

I. Considera como a divina Justiça julgará todos os povos no vale de Josafá, quando, no fim do mundo, ressuscitarem os corpos para receberem, juntamente com a alma, a recompensa ou o castigo, segundo as suas obras. Eis que já se abrem os céus, e os anjos vêm assistir ao juízo, trazendo as insígnias da Paixão de Jesus Cristo, segundo Santo Tomás. Aparecerá sobretudo a Cruz: E então aparecerá o sinal do Filho do homem, e todos os povos da terra se lastimarão em pranto (1). Diz Cornélio a Lapide: Ao verem a Cruz, como chorarão nesse dia os pecadores, que em vida não cuidaram da sua salvação eterna, que tanto custou ao filho de Deus! Assistirão também, na qualidade de assessores, os santos apóstolos e todos os seus imitadores, que juntamente com Jesus Cristo julgarão as nações. Fulgebunt iusti, indicabunt nationes (2) — “Os justos refulgirão e julgarão as nações”. Virá assistir igualmente a Rainha dos Santos e dos Anjos, Maria Santíssima.

Aparecerá enfim o eterno Juiz, num trono de majestade e de glória: Et videbunt Filium hominis venientem in nubibus coeli, cum virtute multa et maiestate — “Eles verão o Filho do homem, que virá sobre as nuvens do céu com grande poder e majestade.” A vista de Jesus regozijará os eleitos, mas para os réprobos será maior tormento que o inferno mesmo, diz São Jerônimo. Por isso exclamava Santa Teresa: Meu Jesus, infligi-me qualquer outro castigo, mas não me deixeis ver nesse dia a vossa face indignado contra mim. E São Basílio acrescenta: Superat omnem poenam confusio ista: esta vista será o mais horrível de todos os tormentos. Então cumprir-se-á a profecia de São João: os condenados rogarão às montanhas que caiam sobre eles e os livrem da vista do Juiz irritado. Abscondite nos a facie sedentis super thronum et ab ira Agni (3).

II. Principia o julgamento. Manuseiam-se os processos, isto é, põe-se a descoberto a consciência de cada um: Iudicium sedit et libri aperti sunt (4) — “Assentou-se o juízo e abriram-se os livros”. As primeiras testemunhas chamadas a depor contra os réprobos, serão os demônios, que (segundo Santo Agostinho) dirão:

“Deus de justiça, mandai que seja nosso aquele que de nenhum modo quis ser vosso.”

Testemunhas serão em segundo lugar as próprias consciências: dando-lhes testemunho a própria consciência (5). Outras testemunhas, a clamarem vingança, serão as paredes da casa onde Deus foi ofendido pelos pecadores: Lapis de pariete clamabit (6).

Virá afinal o testemunho do próprio Juiz, que esteve presente a todas as ofensas que lhe foram feitas. Diz São Paulo que então o Senhor manifestará o que se acha escondido nas trevas (7); isto é, descobrirá então aos olhos de todos os homens os mais recônditos e vergonhosos pecados dos réprobos, que eles em vida ocultaram aos próprios confessores: Revelabo pudenda tua in facie tua (8). Os pecados dos eleitos, segundo o Mestre das Sentenças e outros teólogos, não serão manifestados, mas ficarão encobertos, conforme estas palavras de Davi: Bem-aventurados aqueles cujas iniquidades são perdoadas e cujos pecados são encobertos (9). Pelo contrário, os dos réprobos, diz São Basílio, serão vistos de todo o mundo num relance de olhos, como num quadro.

Considera agora, meu irmão: o que será de ti nesse dia?… quão grande será a tua confusão se por desgraça te perderes?… que desculpas poderás alegar? Eia pois, faze penitência, muda de vida, dá-te inteiramente a Deus e começa a amá-Lo devéras.

Sim, meu Jesus, já Vos ofendi bastante; não quero empregar a vida que ainda me resta, em dar-Vos novos desgostos. Não é isso o que Vós mereceis. Quero empregá-la somente em amar-Vos e em chorar os meus pecados, que agora detesto de todo o meu coração.

† Ó dulcíssimo Jesus, não sejais meu juiz, senão meu Salvador (10). — E vós, ó minha Mãe Maria, rogai a vosso divino Filho por mim.

Referências:
(1) Mt 24, 30
(2) Sb 3, 7
(3) Ap 6, 16
(4) Dn 7, 10
(5) Rm 2, 15
(6) Hab 2, 11
(7) 1Cor 4, 5
(8) Na 3, 5
(9) Sl 31, 1
(10) Indulgência de 50 dias de cada vez

 Quarta-feira da Terceira Semana depois da Epifania

Quanto é cara a Deus a alma que se Lhe entrega toda

Ego dilecto meo, et ad me conversio eius – “Eu sou para o meu amado e Ele para mim se volta” (Ct 7, 10)

Sumário. Meu irmão, cuida em expulsar do teu coração tudo que não seja Deus, ou não conduza ao seu amor e consagra-te a Ele inteiramente e sem reserva. Não será justo por ventura que sejas todo daquele que se fez todo teu? Além disso lembra-te de que Jesus Cristo ama mais uma alma que inteiramente se Lhe consagra do que mil almas tíbias e imperfeitas. São as almas generosas e todas de Deus que estão destinadas a preencher o coro dos Serafins.

I. Deus ama todos aqueles que O amam (1). Muitos, porém, consagram-se a Deus, mas conservam ainda no coração alguma afeição às criaturas, a qual os impede de serem inteiramente de Deus. Ora, como é que Deus se quererá dar todo à alma que juntamente com Ele ama as criaturas? Com razão usará Deus de reserva para com a alma que se mostra reservada para com Ele. Ao contrário, Deus se dá todo às almas que expulsam do coração tudo que não seja Deus ou não conduza ao amor de Deus, e que, consagrando-se a Deus sem reserva, dizem com todas as veras: Deus meus et omnia – meu Deus e meu tudo.

Enquanto Santa Teresa nutria na alma um afeto desordenado, embora não pecaminoso, a certa pessoa, não lhe foi dado ouvir Jesus Cristo dizer-lhe, como depois lhe foi concedido, quando, tendo-se ela desprendido de qualquer afeto terrestre e entregue sem reserva ao amor divino, o Senhor lhe disse: “Já que és toda minha, eu sou todo teu.” Pelo amor que nos tem, o Filho de Deus se deu todo a nós: Dilexit nos et tradidit semetipsum pro nobis (2) – “Cristo nos amou e se entregou a si mesmo por nós”. Se pois, diz São João Crisóstomo, se deu a ti sem reserva, é de justiça que também te dês inteiro a Deus e Lhe digas de hoje em diante: Dilectus meus mihi et ego illi (3) — “O meu amado é para mim e eu sou para Ele”.

Revelou Santa Teresa a uma sua religiosa, à qual apareceu depois da morte, que Deus ama com mais amor uma alma, sua esposa, que se Lhe dá toda inteira, do que mil outras tíbias e imperfeitas. Com almas generosas e todas de Deus é que se preenche o coro dos Serafins. Diz o mesmo Senhor que ama tanto uma alma que aspira à perfeição, como se amasse somente a ela: Una est columba mea, perfecta mea (4). Por isso, o Bem-aventurado Egídio fazia esta exortação: Una uni — A única para o único. Com o que queria dizer que a única alma que nós temos, devemos dá-la, toda e não dividida, àquele que só merece o nosso amor, de quem depende todo o nosso bem e que mais do que ninguém nos ama. É o que repetia também São Bernardo: Sola esto, uto soli te serves. Ó alma, dizia, conserva-te só, não te dividas no afeto às criaturas, a fim de seres toda somente daquele que só merece um amor infinito e a quem somente deves amar.

II. Dilectus meus mihi, et ego illi — “O meu amado é para mim, e eu sou para Ele”. Ó meu Deus, já que Vós Vos destes todo a mim, eu seria demasiadamente ingrato se não me desse todo a Vós. Visto que me quereis todo para Vós, eis-me aqui, meu Senhor; eu me dou todo a Vós. Aceitai-me pela vossa misericórdia, não me desprezeis. Fazei com que o meu coração, que algum tempo amou as criaturas, agora se dê todo a amar a vossa bondade infinita. “Morra de uma vez este eu”, dizia Santa Teresa, “e viva em mim outro que não eu. Viva em mim Deus e me dê vida. Reine Ele, e seja eu escrava; a minha alma já não quer mais outra liberdade.” É muito pequeno o meu coração, ó Senhor meu amabilíssimo e pouco suficiente para Vos amar, porque Vós sois digno de um amor infinito. Muito grande injustiça, pois, Vos faria, se ainda quisesse dividi-lo e amar outra coisa que não a Vós.

Eu Vos amo, meu Deus, sobre todas as coisas, e só a Vós. Renuncio a todas as criaturas e me dou inteiramente a Vós, meu Jesus, meu Salvador, meu Amor, meu tudo. Digo e quero dizer sempre: Quid mihi est in coelo? Et a te quid volui super terram?… Deus cordis mei, et pars mea Deus in aeternum (5). Nada mais desejo, nesta vida nem na outra, senão possuir o tesouro do vosso amor. Ó Deus de meu coração, não quero que as criaturas ainda ocupem lugar em meu coração; só Vós sereis o meu Senhor, só a Vós quero pertencer para o futuro, só Vós sereis o meu bem, o meu repouso, o meu desejo, todo o meu amor. Com Santo Inácio, só uma coisa Vos peço e de Vós espero: Dai-me o vosso amor e a vossa graça, e serei bastante rico.

— Santíssima Virgem Maria, fazei com que eu seja fiel a Deus e nunca mais revoque a doação de mim mesmo, que fiz ao meu Senhor.

Referências:
(1) Pr 8, 17
(2) Ef 5, 2
(3) Ct 2, 16
(4) Ct 6, 8
(5) Sl 72, 25-26

 Quinta-feira da Terceira Semana depois da Epifania

Jesus na casa de Nazaré

Descendit (Iesus) cum eis, et venit Nazareth, et erat subditus illis – “Desceu (Jesus) com eles, e veio para Nazaré e lhes estava sujeito” (Lc 2, 51)

Sumário. De volta do Egito, São José foi para a Galiléia e fixou a sua morada na pobre casa de Nazaré. Foi portanto ali que o Filho de Deus passou na obscuridade e no desprezo o resto de sua infância e mocidade, até a idade de trinta anos, a fim de nos ensinar a vida humilde, recolhida e oculta. E apesar disso há tantos cristãos tão orgulhosos, que só ambicionam ser vistos e honrados!… Examinemo-nos, se por ventura somos do número desses ambiciosos.

I. Quando São José voltou para a Palestina, soube que Arquelau reinava na Judéia, no lugar de seu pai Herodes. Teve, pois, medo de ir para lá, e avisado em sonho, retirou-se para Nazaré, cidade da Galiléia, onde fixou sua morada numa pobre casa. Ó ditosa casa de Nazaré, eu te saúdo e te venero! Há de chegar um tempo em que serás visitada pelas primeiras grandezas da terra. Quando os romeiros se virem dentro de ti, não se saciarão de derramar lágrimas de ternura, lembrando-se que é dentro das tuas pobres paredes que o Rei do céu passou quase toda a sua vida.

É naquela casa que o Verbo Encarnado viveu o resto de sua infância e da sua mocidade. E como viveu? Viveu pobre e desprezado pelos homens, qual simples oficial e obedecendo a Maria e José: et erat subditus illis — “e lhes estava sujeito”. Ó Deus! Que ternura se experimenta em pensar que naquela pobre casa o Filho de Deus faz o ofício de criado! Ora vai buscar água, ora abre ou fecha a loja, ora varre a casa, ora ajunta as achas para o fogo, ora afadiga-se ajudando José em seus trabalhos. Ó assombro! Ver um Deus que varre a casa! Um Deus que faz o ofício de servente! Ó pensamento que devia abrasar a todos em santo amor para com um Redentor que tanto se abaixou para se fazer amar por nós!

Adoremos todas essas ações humildes de Jesus, porquanto foram todas divinas. Adoremos sobretudo a vida oculta e desprezada que Jesus Cristo levou na casa de Nazaré. Ó homens orgulhosos, como podeis ter a ambição de serdes vistos e honrados vendo o vosso Deus que passa trinta anos de sua vida em pobreza, oculto e ignorado, para vos ensinar o recolhimento e a vida humilde e oculta?

II. Ó Menino adorado! Eu Vos vejo, qual humilde operário, trabalhar e suar numa pobre oficina. Já entendo: é para mim que Vos abateis e fatigais de tal sorte. Assim como empregastes toda a vossa vida por amor de mim, fazei, ó meu amado Senhor, que eu empregue também por vosso amor o que ainda me resta de vida. Não considereis a minha vida passada, que tanto para mim como para Vós tem sido uma vida de dor e de lágrimas, uma vida desregrada, uma vida de pecados. Permiti, ó Jesus, que a Vós me associe nos dias que ainda me restam, deixai-me trabalhar e sofrer convosco na oficina de Nazaré e depois morrer convosco no Calvário, abraçando a morte que me destinastes.

Ó meu amadíssimo Jesus, meu amor, não permitais que eu Vos deixe e Vos abandone novamente, como fiz outrora. Vós, ó meu Deus, vivestes oculto, ignorado e desprezado, e sofrestes numa oficina em tão grande pobreza, e eu, verme desprezível, andei atrás das honras e prazeres, e por eles me separei de Vós, Bem supremo! Agora, porém, ó meu Jesus, eu Vos amo; e porque Vos amo, não quero mais viver longe de Vós. Renuncio a tudo o mais para unir-me a Vós, ó meu Redentor, oculto e humilhado por mim. Com a vossa graça me dais mais contentamento do que jamais me têm dado todas as vaidades e prazeres da terra, pelos quais tive a desgraça de Vos deixar.

Ó Virgem Santíssima, que ditosa sois por haverdes acompanhado vosso Filho na sua vida pobre e oculta, e vos terdes assim feito semelhante ao vosso Jesus. Minha Mãe, fazei que eu também, ao menos pelo pouco tempo de vida que me resta, me torne semelhante a vós e a meu Redentor.

— “E Vós, ó Pai Eterno, que pelo mistério da Encarnação do Verbo consagrastes misericordiosamente a casa da Bem-aventurada Virgem Maria, e a colocastes maravilhosamente no seio da vossa Igreja, concedei-nos que, afastados dos tabernáculos dos pecadores, mereçamos habitar em vossa santa Casa, pelo mesmo nosso Senhor Jesus Cristo.” (1)

Referências:
(1) Or. Eccl.

 Sexta-feira da Terceira Semana depois da Epifania

Jesus cresce em idade e em sabedoria e em graça

Et Iesus proficiebat sapientia et aetate et gratia apud Deum et homines – “E Jesus crescia em sabedoria, e em idade e em graça diante de Deus e dos homens” (Lc 2, 52)

Sumário. Posto que Jesus, desde o primeiro instante de sua vida, estivesse enriquecido de todos os carismas celestiais; contudo, crescendo em idade, crescia também em sabedoria, isso é, manifestava-a mais e mais. No mesmo sentido se diz que crescia em graça diante de Deus e dos homens. Nós também, com o progredir dos anos, devíamos ter crescido no amor, mas talvez tenha aumentado a nossa tibieza e culpabilidade. Imploremos o perdão do Senhor com o propósito de sermos para o futuro mais fervorosos.

I. Falando da morada do Menino Jesus na casa de Nazaré, diz São Lucas: Et Iesus proficiebat — “E Jesus crescia”. Assim como ia crescendo em idade, crescia também em sabedoria. Não como se Jesus adquirisse conhecimento mais perfeito das coisas, como nós; porquanto, desde o primeiro instante da sua vida, foi enriquecido de toda a ciência e sabedoria divina: In quo sunt omnes thesauri sapientiae et scientiae absconditi (1) — “No qual (Jesus) estão encerrados todos os tesouros da sabedoria e da ciência”. Mas diz-se que crescia, porque com o correr dos anos ia manifestando mais e mais a sua sublime sabedoria.

E neste sentido também se diz que Jesus crescia em graça diante de Deus e dos homens. Diante de Deus, porquanto todas as suas ações divinas, posto que não Lhe aumentassem a santidade nem os merecimentos (visto que desde o princípio foi Jesus repleto de santidade e de merecimentos, de modo que de sua plenitude nós recebemos todas as graças: De plenitudine eius accepimus omnes (2), todavia as obras do Redentor, consideradas em si mesmas, eram suficientes para Lhe acrescentar graças e méritos. Jesus crescia também em graça diante dos homens, crescendo em beleza e amabilidade. Oh! Como Jesus se ia tornando sempre mais querido e amável em sua adolescência, dando sempre mais a conhecer as belas qualidades que o faziam tão amável! Com que alegria obedecia o santo Menino a Maria e José! Com que recolhimento de espírito trabalhava! Com que modéstia se alimentava! Com que moderação falava! Com que doçura e afabilidade conversava com todos! Com que devoção orava! Numa palavra, cada ação, cada palavra, cada movimento de Jesus Cristo abrasava e feria o coração de todos que o viam e em particular de Maria e José, que tinham a ventura de O ver sempre junto de si. Oh! Como estavam estes santos Esposos sempre atentos a contemplar e admirar todas as ações, palavras e movimentos do Homem-Deus!

II. Crescei, amável Jesus, crescei para mim. Crescei para me ensinar por vossos divinos exemplos as vossas belas virtudes. Crescei para consumar o sacrifício da cruz, do qual depende a minha salvação eterna. Oh meu Senhor, fazei com que eu também cresça cada vez mais no vosso amor e graça. No passado, ai! Cresci somente em ingratidão para convosco, que tanto me haveis amado. Fazei, ó meu Jesus, com que no futuro seja o contrário; Vós conheceis a minha fraqueza; Vós deveis dar-me luz e força. Fazei com que eu compreenda quanto mereceis ser amado. Vós sois um Deus de infinita beleza e de infinita majestade, que não recusastes descer do céu, para vos fazerdes homem e levardes por nosso amor uma vida desprezada e penosa, terminada por uma morte tão cruel. Onde poderíamos achar amigo mais amável e mais amante?

Insensato que sou! No passado não vos quis conhecer e por isso Vos perdi. Peço-Vos perdão, já que de toda a minha alma me arrependo e tomo a resolução de ser todo vosso. Mas, ó meu Jesus, ajudai-me; recordai-me sem cessar a vida penosa e a morte dolorosa que sofrestes por meu amor. Dai-me luz e dai-me força. Quando o demônio me apresentar algum fruto vedado, dai-me firmeza para desprezá-lo; não permitais, que por qualquer gozo vil e passageiro eu Vos perca, ó Bem infinito. Amo-Vos, ó meu Jesus, morto por mim; amo-Vos, ó Bondade infinita; amo-Vos, ó amante da minha alma. — Ó Maria, sois vós a minha esperança; é pela vossa intercessão que espero obter a graça de amar a meu Deus de hoje em diante para sempre, e de nunca mais amar outra coisa que não seja Deus.

Referências:
(1) Cl 2, 3
(2) Jo 1, 16

 Sábado da Terceira Semana depois da Epifania

Da confiança em Maria, Rainha de misericórdia

Positusque est thronus matri regis, quae sedit ad dexteram eius – “Foi posto um trono para a mãe do rei, a qual se assentou à sua mão direita” (1 Rs 2, 19)

Sumário. O ofício da Santíssima Virgem no céu é compadecer-se dos miseráveis e socorrê-los, pois que exatamente para este fim o Senhor a constituiu Rainha de Misericórdia. Se nos quisermos salvar, recorramos com confiança a esta amada Mãe. A nossa confiança deve ser tanto maior quanto mais profunda for a nossa miséria, porque os miseráveis são destinados a ser a sua coroa de glória no paraíso. É, porém, mister que tenhamos a vontade de nos emendarmos.

I. Depois que a grande Virgem Maria foi elevada à dignidade de Mãe do Rei dos reis, com justa razão a santa Igreja a honra e quer que todos a honrem, com o título glorioso de Rainha. Mas, não somente de Rainha, senão de Rainha de misericórdia; porque ela é toda doce, clemente e inclinada a fazer bem a nós miseráveis: Salve, Rainha, Mãe de misericórdia! Considerando João Gerson as palavras de Davi: duo haec audivi, etc. (1) — “estas duas coisas tenho ouvido”, diz que, consistindo o reino de Deus na justiça e na misericórdia, o Senhor o dividiu. O reinado da justiça, reservou-o para si, e o reinado da misericórdia, cedeu-o a Maria, ordenando que todas as misericórdias que se concedessem aos homens, passassem pelas mãos de Maria e se distribuíssem a seu arbítrio, de sorte que o oficio da Virgem no céu é compadecer-se dos miseráveis a aliviá-los.

Na Sagrada Escritura se lê que a rainha Ester, com medo de irritar o seu esposo Assuero, se recusou a interceder junto dele a fim de que revocasse a sentença de morte pronunciada contra os Judeus. Mas Mardoqueu repreendeu-a e mandou dizer-lhe que não pensasse só em salvar-se a si, pois o Senhor a tinha posto sobre o trono para bem de todo o seu povo (2).

Não há perigo de que a nossa Rainha Maria jamais se recuse a ajudar os seus filhos; mas se em tempo algum ela recusasse alcançar-nos de Deus o perdão do castigo, de nós bem merecido, poderíamos também dizer-lhe: Ne putes, quod animam tuam tantum liberes — Não cuideis, Senhora, que Deus vos elevou a ser Rainha do mundo só para bem vosso, senão também a fim de que, elevada tão alto, possais compadecer-vos mais dos miseráveis e socorrer a todos os homens que a vós recorrem: quia in domo regis es prae cunctis hominibus.

II. Refugiemo-nos, pois, mas refugiemo-nos sempre aos pés da nossa dulcíssima Rainha, se seguramente nos queremos salvar. Se nos espanta e nos desanima a vista dos nossos pecados, lembremo-nos que Maria foi feita Rainha de misericórdia a fim de salvar com a sua proteção aos mais perdidos pecadores que a ela se recomendar. Estes hão de ser a sua coroa no céu, como disse o seu divino Esposo; coroa bem digna e própria da Rainha da misericórdia: Coronaberis de cubilibus leonum, de montibus pardorum (3).

Ó Maria, eis aqui a vossos pés um miserável escravo do inferno, que vos pede misericórdia. É verdade que não mereço nenhum favor; mas vós sois Rainha de misericórdia, e a misericórdia é para aquele que não a merece. Todo o mundo vos chama o refúgio e a esperança dos pecadores; sois, portanto, também o meu refúgio e a minha esperança. Sou como ovelha desgarrada, mas foi para salvação das ovelhas desgarradas que o Verbo Eterno desceu do céu e se fez vosso Filho; Ele quer que eu a vós recorra e que vós me socorrais com as vossas orações.

Sancta Maria, Mater Dei, ora pro nobis! Santa Maria, Mãe de Deus, rogai por nós! Ó grande Mãe de Deus que por todos rogais, rogai a vosso Filho também por mim! Dizei-Lhe que sou devoto vosso e que vós me protegeis. Dizei-Lhe que em vós pus toda a minha esperança. Dizei-Lhe que me dê o perdão e que detesto todas as ofensas que lhe tenho feito. Dizei-Lhe que pela sua misericórdia me conceda a santa perseverança. Dizei-lhe que me dê a graça de amá-Lo de todo o meu coração. Dizei-Lhe, enfim, que me quereis ver salvo. Jesus faz tudo que vós lhe pedis. Ó Maria, esperança minha, em vós confio, tende piedade de mim.

Referências:
(1) Sl 61, 12
(2) Est 4, 13
(3) Ct 4, 8
4ª parte

 Quarta Semana depois da Epifania

Quarta Semana do Tempo Comum (Calendário Litúrgico) ou se faltam 3 semanas para o Primeiro Domingo da Quaresma, ir para as Meditações da Semana da Septuagésima.

Domingo: A barca na tempestade e a Igreja Católica

Segunda-feira: Incerteza da hora da morte

Terça-feira: Do fogo do inferno

Quarta-feira: Qual será o gozo dos Bem-aventurados no paraíso

Quinta-feira: Devemos esperar tudo pelos merecimentos de Jesus Cristo

Sexta-feira: Jesus quis sofrer a fim de ganhar os nossos corações

Sábado: Maria Santíssima, modelo de esperança

 Quarto Domingo depois da Epifania

A barca na tempestade e a Igreja Católica

Motu magnus factus est in mari, ita ut navicula operiretur fluctibus; ipse vero dormiebat – “Levantou-se no mar uma grande tempestade, tal que as ondas cobriam a barca; entretanto ele dormia” (Mt 8, 24)

Sumário. Ao vermos a horrenda tempestade que o inferno suscita contra a religião, dirijamos súplicas fervorosas ao Senhor e temamos perder o grande tesouro da fé. Temamos por nós mesmos, mas não pela Igreja, porque a Barca de São Pedro pode ser coberta pelas ondas, mas não sossobrar. Virá o tempo em que o Senhor, despertado de seu sono místico pelas orações dos justos, mandará aos ventos e ao mar e logo se seguirá uma grande bonança.

I. Narra São Mateus que “subindo Ele (Jesus) para uma barca (no lago de Tiberíades), o seguiram seus discípulos. E eis que se levantou no mar tão grande tempestade, que as ondas cobriam a barca; e entretanto Ele dormia. Então se chegaram a Ele os seus discípulos, e O acordaram, dizendo: Senhor, salvai-nos, que perecemos. E disse-lhes Jesus: Porque temeis, homens de pouca fé? E, erguendo-se, mandou aos ventos e ao mar, e segui-se logo uma grande bonança. Então muito se admiraram os homens, dizendo: “Quem é este, que até os ventos e o mar Lhe obedecem? — venti et maré obediunt ei!”

O santos intérpretes veem naquela barca a figura da Igreja Católica. O inferno, por meio de seus ímpios satélites, lhe tem sempre suscitado, e especialmente hoje em dia lhe suscita as mais tremendas tempestades, que ameaçam submergi-la. E entretanto Jesus está dormindo, quer dizer, simula que não vê as tempestades ou que com elas não se importa. Mas o verdadeiro crente deve ter fé e não temer; porque a barca de Pedro pode, sim, ser coberta pelas ondas, mas nunca poderá sossobrar: portae inferi non praevalebunt (1) – “as portas do inferno não prevalecerão”.

Ah! Não duvidemos: tempo virá em que o Senhor, acordado de seu sono místico, pelas orações dos fiéis, se levantará, mandará aos ventos e ao mar, e se seguirá então um grande bonança. Também os inimigos da Igreja, assombrados pelo modo como Deus a protege, dirão com as multidões do Evangelho: Quis est hic, quia venti et mare obediunt ei? (2) — “Quem é este a quem os ventos e o mar obedecem?”

II. Não temamos pela Igreja, mas temamos por nós mesmos, que talvez, fracos como somos e cercados de tantos perigos, naufraguemos miseravelmente. Por isso roguemos com a Igreja ao Senhor, “que, pelo seu auxílio, possamos vencer os males que por nossos pecados padecemos”(3). Roguemos-Lhe sobretudo, pelos merecimentos de Maria Santíssima, que nos conserve o precioso dom da fé e repitamos muitas vezes: Domine, salva nos, perimus — “Senhor, salvai-nos; perecemos”.

† “Ó meu Redentor, terá por ventura chegado o momento terrível em que não restarão mais do que poucos cristãos animados do espírito de fé? O momento em que, provocada a vossa indignação nos tirareis a vossa proteção? Terão enfim as faltas e a vida criminosa de vossos filhos impelido irrevogavelmente vossa justiça a se vingar? Ó autor e consumador de nossa fé, nó Vos conjuramos, na amargura de nosso coração contrito e humilhado, não permitais que a bela luz da fé se extinga em nós. Lembrai-Vos de vossas antigas misericórdias; lançai um olhar de compaixão sobre a vinha que foi plantada pela vossa destra, regada com o suor dos apóstolos, inundada pelo sangue de milhares de mártires, pelas lágrimas de tantos generosos penitentes e fertilizada pelas orações de tantos confessores e virgens inocentes.”

“Ó divino Mediador, olhai para estas almas fervorosas, que elevando o seu coração a Vós, Vos pedem incessantemente a conservação do mais precioso de todos os tesouros, a verdadeira fé. Diferi, ó Deus justíssimo, o decreto de vossa reprovação, voltai vossos olhos de nossos pecados, fixai-os sobre o Sangue adorável que, derramado sobre a cruz, nos adquiriu a salvação, e intercede quotidianamente por nós sobre nossos altares. Ah! Conservai-nos a verdadeira fé católica romana. Aflijam-nos embora as enfermidades, os pesares nos consumam, acabrunhem-nos as desgraças; mas conservai-nos a santa fé, porque, ricos com este dom precioso, suportaremos de boa mente todas as dores, e nada poderá turbar a nossa felicidade. Ao contrário, sem o soberano tesouro da fé, a nossa desgraça será indizível e imensa.”

“Ó bom Jesus, autor da nossa fé, conservai-a pura; guardai-nos firmemente na barca de Pedro, fiéis e obedientes a seu sucessor, vosso vigário na terra, a fim de que a unidade da santa Igreja seja mantida, a santidade animada, a Sé Apostólica livre e protegida e a Igreja universal dilatada para bem das almas.”

“Ó Jesus, autor de nossa fé, humilhai e convertei os inimigos de vossa Igreja; concedei a todos os reis e príncipes cristãos e a todo o povo fiel a paz e verdadeira unidade; fortificai-nos e conservai-nos todos em vosso santo serviço, a fim de que para Vós vivamos e em Vós também morramos. Ó Jesus, autor de nossa fé, viva eu para Vós e para Vós morra. Assim seja.”(4)

Referências:
(1) Mt 16, 18
(2) Mt 8, 27
(3) Or. Dom. curr.
(4) Oração de São Clemente Maria Hoffbauer. Indulg. de 300 dias, uma vez por dia.

 Segunda-feira da Quarta Semana depois da Epifania

Incerteza da hora da morte

Videte, vigilate et orate: nescitis enim quando tempus sit – “Estai de sobreaviso, vigiai e orai ; porque não sabeis quando seja o tempo” (Mc 13, 33)

Sumário. Irmão meu, já está fixado o ano, o mês, o dia, a hora e o momento em que devemos deixar a terra e entrar na eternidade; esse tempo é-nos, porém, desconhecido. Jesus Cristo no-lo oculta a fim de estarmos sempre preparados para morrer. Ora, dize-me: se a morte te viesse colher neste instante, achar-se-ia a tua consciência em bom estado? Oh, quantos já morreram, e morrem cada dia subitamente!

I. Meu irmão, já está fixado o ano, o mês, o dia, a hora e o momento, em que tu e eu devemos deixar a terra e entrar na eternidade; esse tempo é-nos, porém, desconhecido. A fim de estarmos sempre preparados, Jesus Cristo ora nos avisa que a morte virá como um salteador de noite e às escondidas: Sicut fur in nocte, ita veniet (1); ora nos recomenda que estejamos vigilantes, pois no momento em que menos o pensarmos, Ele próprio virá para nos julgar: Qua hora non putatis, Filius hominis veniet (2). Diz São Gregório que Deus, para nosso bem, nos oculta a hora da morte, para que estejamos sempre prontos para morrer. — Visto, pois, que a morte nos pode tirar a vida a todo o tempo e em qualquer lugar, se quisermos morrer bem e salvar-nos, é preciso, diz São Bernardo, que a todo o tempo e em todo o lugar estejamos esperando pela morte.

Cada um sabe que deve morrer; mas o mal está em muitos verem a morte tão de longe, que quase a perdem de vista. Os velhos mais decrépitos e as pessoas mais doentias ainda se gabam de ter mais três ou quatro anos de vida. Mas eu, ao contrário, digo: quantos não temos conhecido que em nossos dias morreram repentinamente, uns estando sentados, outros no meio do caminho, outros dormindo em seu leito! É certo que nenhum deles julgava morrer tão subitamente, ou naquele dia em que morreu. Digo mais: de todos que neste ano passaram à outra vida, morrendo no próprio leito, nenhum imaginava que devia terminar os seus dias este ano. Poucas são as mortes que não chegam inesperadas!

II. Irmão meu, quando o demônio te tenta para pecar, dizendo que amanhã poderás confessar-te, responde-lhe: Quem sabe se o dia de hoje não é o último de minha vida? Se a hora, o momento em que voltasse as costas a Deus, fosse o último para mim, de modo que já não me restasse tempo para reparar a falta, que seria de mim na eternidade? A quantos míseros pecadores não sucedeu serem surpreendidos pela morte e precipitados no inferno a arderem eternamente no mesmo momento em que saboreavam algum manjar envenenado!

Infernus domus mea est (3) — “A minha casa é o inferno”. Assim é, ó Senhor: o lugar em que me devia achar agora, não é este onde estou, mas sim o inferno que tantas vezes mereci pelos meus pecados. Vós, porém, tivestes tanta paciência comigo e me esperastes, porque não quereis que eu me perca, senão que eu me arrependa! Eis, ó meu Deus, que volto para Vós; a vossos pés me lanço e Vos peço perdão. Miserere mei, Deus, secundum magnam misericordiam tuam (4). — “Tende piedade de mim, ó Deus, segundo a vossa grande misericórdia”. Senhor, para me perdoardes, é preciso uma grande e extraordinária misericórdia, porque Vos ofendi com pleno conhecimento. Outros pecadores também Vos ofenderam, mas não tinham as luzes que me destes. Apesar de tudo isto, ordenais-me ainda que me arrependa de meus pecados, e que espere o perdão. Sim, meu amado Redentor, de todo o coração me arrependo de Vos ter ofendido e espero o perdão pelos merecimentos da vossa Paixão.

Ó Padre Eterno, perdoai-me pelo amor de Jesus Cristo; escutai as suas súplicas, já que intercede por mim e se faz meu advogado. O perdão, porém, não me basta, ó Deus digno de infinito amor; quero ainda a graça de Vos amar. Amo-Vos, soberano Bem, e para sempre Vos ofereço o meu corpo, a alma, a vontade, a liberdade, todo o meu ser. — Ó Maria, grande Mãe de Deus, impetrai-me a santa perseverança.

Referências:
(1) 1 Ts 5, 2
(2) Lc 12, 40
(3) Jó 17, 13
(4) Sl 50, 1

 Terça-feira da quarta semana depois da Epifania

Do fogo do inferno

Quis poterit habitare de vobis cum igne devorante?… Cum ardoribus sempiternis? – “Qual de vós poderá habitar com o fogo devorador?… Com os ardores sempiternos?” (Is 33, 14)

Sumário. Na terra a pena do fogo é a maior de todas; mas há tamanha diferença entre o nosso fogo e o do inferno, que o nosso parece apenas um fogo pintado, ou antes, frieza. Como então, irmão meu, poderás habitar com esses ardores sempiternos, se por desgraça tua te condenares? Tu que não podes caminhar pelo ardor do sol, nem ficar com um braseiro num quarto fechado, nem aturar uma fagulha que se desprende de uma vela?

I. A pena que mais atormenta os sentidos do condenado é o fogo do inferno, que afeta o tato. Por isso o Senhor faz dele menção especial no juízo: Discedite a me, maledicti, in ignem aeternum (1) — “Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno”. Até na terra a pena do fogo é a maior de todas, mas há tamanha diferença entre o nosso fogo e o do inferno, que o nosso, no dizer de Santo Agostinho, parece apenas um fogo pintado. E São Vicente Ferrer acrescenta que, comparado àquele, o nosso fogo é frio. A razão é que o nosso fogo foi criado para nossa utilidade, ao passo que o do inferno foi criado por Deus expressamente para atormentar. Além de que, como diz Jeremias, aquele fogo é um fogo vingador aceso pela cólera de Deus (2). Por isso é que Isaías chama o fogo do inferno: espírito de ardor. Si abluerit Dominas sordes… in spiritu ardoris (3) — “O Senhor lavará as manchas… com o espirito de ardor”.

O condenado será enviado não só ao fogo, mas para dentro do fogo: Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno. De maneira que o desgraçado será envolvido pelo fogo como a lenha na fornalha. O réprobo terá um abismo de fogo abaixo de si, outro abismo acima de si, outro por todos os lados. Quando apalpar, quando vir, quando respirar, não apalpará, não verá, não respirará senão fogo. Estará no fogo como o peixe na água. — Não só este fogo cercará o condenado, mas penetrar-lhe-á todos os membros para mais o atormentar. Todo o seu corpo será uma fogueira. As vísceras arderão no ventre, o coração dentro do peito, o cérebro na cabeça, o sangue nas veias, a medula nos ossos. Em uma palavra, cada réprobo tornar-se-á uma fornalha ardente: Pones eos ut clibanum ignis (4) — “Vós os poreis como um forno aceso”.

II. Quantos há que não podem caminhar pelo ardor do sol, nem ficar com um braseiro num quarto fechado, nem aturar uma fagulha que se desprende de uma vela, e contudo não temem o fogo do inferno, o fogo devorador, como o chama o Profeta: Quis poterit habitare de vobiscum igne devorante? — “Qual de vós poderá habitar com o fogo devorador?” Assim como o animal feroz devora o cabritinho, assim o fogo do inferno devora o condenado: devora-o, mas sem o fazer morrer. São Jerônimo acrescenta que esse fogo trará consigo todos os tormentos e todas as dores que sofremos na terra; dores de peito, de cabeça, de ventre, de nervos e mesmo de frio. Finalmente assevera São Crisóstomo que todos os sofrimentos deste mundo não passam de uma sombra das penas do inferno.

Ó meu Jesus, o vosso sangue e a vossa morte são a minha esperança. Morrestes para me salvar da morte eterna. Quem é, Senhor, que recebeu maior parte dos frutos de vossa Paixão do que este miserável, que tantas vezes mereceu o inferno? Ah! Não continue a viver ingrato às inúmeras graças que me fizestes. Livrastes-me do fogo do inferno, porque não quereis que eu arda nesse fogo vingador, mas sim que seja abrasado no doce fogo do vosso amor. Ajudai-me a satisfazer o vosso desejo. Se estivesse no inferno, nunca mais poderia amar-Vos, mas, já que ainda posso amar-Vos, quero fazê-lo.

Amo-Vos, Bondade infinita, amo-Vos, meu Redentor, que tanto me tendes amado. † Jesus meu Deus, amo-Vos sobre todas as cousas (5). No futuro espero consagrar-Vos a vida que me resta. Renuncio a tudo. Só quero pensar em Vos servir e agradar. Recordai-me sem cessar o inferno que mereci e as graças que me tendes feito. Não permitais que eu torne a voltar-Vos as costas e a condenar-me por minha própria culpa, a esse abismo de tormentos.

— O Mãe de Deus, rogai por mim, pobre pecador. A vossa intercessão livrou-me do inferno. Ó minha Mãe, livre-me também do pecado, que só me pode condenar de novo ao inferno.

Referências:
(1) Mt 25, 41
(2) Jr 15, 14
(3) Is 4, 4
(4) Sl 20, 10
(5) Indulg. de 50 dias cada vez

 Quarta-feira da quarta semana depois da Epifania

Qual será o gozo dos Bem-aventurados no Paraíso

Videmus nunc per speculum in aenigmale; tunc autem facie ad faciem – “Vemos agora (a Deus) como por um espelho, em enigma; porém então face a face” (I Cor 13, 12)

Sumário. O bem-aventurado, conhecendo no céu a amabilidade infinita de Deus, e vendo todas as disposições admiráveis para sua salvação, amá-Lo-á de todo o coração, regozijar-se-á pela felicidade de Deus mais do que pela sua própria, e não terá outro desejo senão o de amá-Lo e de ser amado por Ele. É nisto que consistirá a sua eterna beatitude. Portanto, se nós amarmos a Deus, sem termos tanto em vista o nosso interesse como a satisfação pela felicidade de Deus, desde a vida presente começaríamos a gozar da beatitude do reino celestial.

I. Quando a alma entrar na pátria bem-aventurada e for corrido o reposteiro que lhe impedia a vista, verá a descoberto e sem véu a beleza infinita do seu Deus, e é nisto que consistirá o gozo do bem-aventurado. Todas as coisas que ele contemplará em Deus, enche-lo-ão de alegria. Verá a retidão dos juízos divinos, a harmonia nas suas disposições relativas a cada alma e todas ordenadas para a glória de Deus e o bem de si mesmo.

Com relação a si própria, a alma verá o amor imenso que Deus lhe mostrou em fazer-se homem e em sacrificar por amor dela a vida na Cruz. Conhecerá o excesso de amor encerrado no mistério da Cruz: ver um Deus feito servo e morto supliciado num infame patíbulo! Conhecerá o amor excessivo encerrado no mistério da Eucaristia: ver um Deus posto presente sob a espécie de pão e feito alimento de suas criaturas! Verá distintamente todas as graças que Deus lhe dispensou e que até então lhe estiveram ocultas. Verá toda a misericórdia de que Deus usou para com ela, esperando-a e perdoando-lhe todas as ingratidões. Verá os muitos convites, as luzes e os auxílios que tão abundantemente lhe foram prodigalizados. Verá que as tribulações, as doenças, a perda de bens ou de parentes, que chamara castigos, não foram castigos, senão manifestações da bondade divina para atrair a alma ao seu amor perfeito.

Numa palavra, tudo o que ela vir, lhe fará conhecer a bondade infinita de seu Deus, e o amor infinito que merece. Donde provém que logo que chegada for ao céu, não terá mais outro desejo senão o de vê-Lo feliz e contente. Compreendendo ao mesmo tempo, que a felicidade de Deus é suprema, infinita e eterna, sentirá uma satisfação, já não digo infinita, visto que a criatura não é susceptível de cousas infinitas, mas uma satisfação imensa e plena, que a encherá de gozo, e do mesmo gozo que é próprio a Deus. Assim se verificará nela a palavra de Jesus: Intra in gaudium Domini tui (1) — “Entra no gozo de teu Senhor”.

II. O bem-aventurado é feliz, não tanto pelo gozo que experimenta em si próprio, como pela felicidade de que Deus goza, porque ama a Deus imensamente mais do que a si mesmo. O amor que tem a Deus, faz com que ache imensamente mais satisfação na bem-aventurança divina do que na sua própria. O amor a faz esquecida de si mesma, e o que ela almeja, será unicamente agradar ao Bem-Amado. — É esta a santa e desejável embriaguez pela qual os bem-aventurados se esquecerão completamente de si, e só pensarão em louvar e amar o querido objeto de todo o seu amor, isso é, Deus. Inebriabuntur ab ubertate domus tuae (2) — “Embriagar-se-ão da abundância da tua casa”. Perfeitamente-felizes desde o primeiro instante da sua entrada no céu, ficam como que perdidos, ou, por assim dizer, submergidos no mar infinito da bondade divina.

Daí é que o bem-aventurado perderá todo e qualquer desejo, só lhe restando o de amar a Deus e ser amado por Ele. A segurança de sempre amá-Lo e de sempre ser amado, será a beatitude do escolhido, a qual o encherá de alegria e de contentamento eterno, de maneira que nada mais desejará. Em resumo: o paraíso dos bem-aventurados é gozar do gozo de Deus. Quem, portanto, na vida presente se compraz na beatitude de que Deus goza e gozará eternamente, pode dizer que desde agora entra no gozo de Deus e começa a gozar o paraíso.

Entretanto, ó meu doce Salvador e Amor de minha alma, vejo-me ainda desterrado neste vale de lágrimas, cercado de inimigos que me querem separar de Vós. Meu amado Senhor, não permitais que Vos perca; fazei com que Vos ame sempre nesta vida e na outra e depois disponde de mim segundo o vosso agrado.

— Ó Rainha do paraíso, se rogardes por mim, certamente estarei toda a eternidade em vossa companhia, a louvar-vos no paraíso.

Referências:
(1) Mt 25, 23
(2) Sl 35, 9

 Quinta-feira da quarta semana depois da Epifania

Devemos esperar tudo pelos merecimentos de Jesus Cristo

Proprio filio suo non pepercit, sed pro nobis omnibus tradidit illum – “(Deus) não poupou a seu próprio Filho, mas entregou-O por nós todos” (Rm 8, 32)

Sumário. A satisfação que o Filho de Deus ofereceu ao Pai Eterno é infinitamente maior do que a dívida que com os nossos pecados tínhamos contraído. Por isso não seria justo que perecesse o pecador que se arrepende de seus pecados e oferece a Deus os merecimentos do Redentor. Por outro lado, Jesus Cristo lá no céu intercede continuamente por nós e o Pai divino não pode negar nada a um Filho tão querido. Agradeçamos, pois, ao Senhor, e imploremos com confiança qualquer graça, valendo-nos sempre desses merecimentos infinitos.

I. Considera que, tendo-nos dado o Padre Eterno seu próprio Filho por medianeiro, por advogado junto a si, e por vítima em satisfação dos nossos pecados, não nos é mais lícito duvidar que não obtenhamos qualquer graça que pedirmos, valendo-nos da mediação de semelhante Redentor. Quomodo non etiam cum illo omnia nobis donavit? (1) Que é que Deus nos recusará, diz o Apóstolo, depois que não nos negou o próprio Filho?

Todas as nossas súplicas não merecem que o Senhor as atenda, ou somente para elas olhe, porquanto o que nós merecemos não é graça, senão castigo pelos nossos pecados. Digno, porém, de ser atendido é Jesus Cristo que intercede por nós e oferece a seu Pai todos os sofrimentos da sua vida, o seu sangue e a sua morte. O Pai não pode recusar nada a um Filho tão querido, que Lhe oferece um preço de valor infinito. Sendo Ele inocente, todo o preço que pagou à divina justiça é aplicado tão somente em satisfação de nossas dívidas e esta satisfação excede infinitamente os pecados dos homens. Não seria de justiça que viesse a perder-se um pecador que se arrepende dos pecados e oferece a Deus os merecimentos de Jesus Cristo, cujas satisfações foram super abundantes. Demos, pois, graças a Deus e esperemos tudo pelos merecimentos de Jesus Cristo.

II. Meu Deus e meu Pai, não posso mais desconfiar da vossa misericórdia; não posso temer que me recuseis o perdão de todas as faltas cometidas contra Vós, ou não me querais dar todas as graças precisas para minha salvação, visto que me destes vosso Filho, a fim de que Vo-lo ofereça por mim. É exatamente para me perdoar e fazer-me digno de vossas graças, que me destes Jesus Cristo e me ordenais que Vo-lo ofereça e pelos seus merecimentos espere de Vós a minha salvação. Sim, meu Deus, quero obedecer-Vos e Vos dou graças. Ofereço-Vos os merecimentos de vosso Filho e por eles espero a graça que remedeie a minha fraqueza e todos os danos que os meus pecados me causaram. Pesa-me, ó Bondade infinita, de Vos ter ofendido, amo-Vos sobre todas as coisas e de hoje em diante não quero amar senão a Vós. Esta minha promessa, porém, de nada servirá, se não me auxiliardes. Pelo amor de Jesus Cristo, dai-me a santa perseverança e o vosso amor; dai-me luz e força para em todas as coisas cumprir a vossa santa vontade. Confiado nos merecimentos de Jesus Cristo, espero que me atendereis.

— Maria, Mãe e esperança minha, rogo-vos também, pelo amor de Jesus Cristo, que me alcanceis estas graças. Minha Mãe, atendei-me.

Referências:
(1) Rm 8, 32

 Sexta-feira da quarta semana depois da Epifania

Jesus quis sofrer a fim de ganhar os nossos corações

Dilexit nos, et lavit nos a peccatis nostris in sanguine suo – “(Jesus) nos amou e nos lavou de nossos pecados em seu sangue” (Ap 1, 5)

Sumário. Os santos tinham bastante razão de chorar, considerando a ingratidão dos homens para com o amor excessivo que Jesus lhes mostrou. Coisa assombrosa! Ver um Deus sofrer tantas penas, derramar lágrimas numa lapa, viver pobre numa oficina, morrer exangue na cruz, ver, enfim, um Deus aflito e atribulado durante a sua vida toda, para ganhar o amor dos homens, e ver depois os homens ingratos responderem-Lhe com injúrias e ofensas! Meu irmão, se tu também no passado foste um desses ingratos, procura agora reparar o malfeito e amar a Jesus Cristo com mais fervor.

I. Considera como Jesus sofreu desde o primeiro instante de sua vida e sofreu tudo por nosso amor. Durante toda a sua vida não teve em mira outra coisa, depois da glória de Deus, senão a nossa salvação. Jesus, sendo Filho de Deus, não havia mister sofrer para merecer o céu. Toda a pena, pobreza, ignomínia que Jesus padeceu, foi destinada a merecer para nós a salvação eterna. Mais; embora pudesse Jesus salvar-nos sem sofrimento, quis todavia levar uma vida de dores, de pobreza, de desprezos, de privação de qualquer alívio, terminá-la com uma morte mais desolada e amargosa do que jamais algum mártir ou penitente sofreu, com o único intuito de fazer-nos compreender a grandeza do amor que nos tinha e para ganhar o nosso afeto.

Viveu trinta e três anos sempre suspirando que chegasse afinal a hora do sacrifício de sua vida, que desejava oferecer para nos alcançar a graça divina e a glória eterna, e ver-nos sempre consigo no paraíso. Baptismo habeo baptizari, et quomodo coarctor usquedum perficiatur? (1) — “Tenho de ser batizado com um batismo, e quão grande não é a minha ansiedade até que ele se cumpra?” Desejava ser batizado com o seu próprio sangue, não para lavar pecados pessoais, porquanto era inocente, senão os dos homens que Ele tanto amava. Ó amor excessivo de um Deus, que todos os homens e todos os anjos nunca chegarão a compreender e a louvar bastantemente.

Lamenta-se São Boaventura por ver tão grande ingratidão dos homens em troca de tamanho amor. Causa pasmo, diz o Santo, o ver um Deus sofrer tantas penas, chorar numa lapa, viver pobre numa oficina, morrer exangue sobre uma cruz, numa palavra, um Deus aflito e atribulado durante a sua vida toda por amor dos homens, e ver depois os homens que não ardem de amor para com esse Deus tão amante; que ainda têm a triste coragem de desprezar o seu amor e a sua graça. Como se compreende que Deus se tenha sujeitado a tanto sofrimento por amor dos homens e que ainda há homens que ofendem e não amam esse Deus!

II. Ó meu amado Redentor, eu também sou um desses ingratos que pagaram o vosso imenso amor, as vossas dores e morte com desgostos e desprezos. Meu querido Jesus, como pudestes amar-me tanto e resolver-Vos a sofrer tantos desprezos e trabalhos por mim, vendo as ingratidões de que eu havia de usar, para convosco? Não quero, porém, desesperar. O mal está feito. Concedei-me agora, Senhor, essa dor que com as vossas lágrimas me tendes merecido; peço-Vos uma dor proporcionada à minha iniquidade. Ó Coração amoroso de meu Salvador, em outros tempos tão aflito e desolado por meu amor e agora todo abrasado em meu amor, ah! transformai o meu coração; dai-me um coração que saiba compensar os desgostos que Vos tenho causado e um amor proporcionado à minha ingratidão.

Já sinto em mim um grande desejo de Vos amar. Dou-Vos graças por isso, pois vejo que a vossa misericórdia já me transformou o coração. Detesto, mais que todos os outros males, as injúrias que Vos tenho feito, aborreço-as e abomino-as. Estimo mais a vossa amizade do que todas as riquezas e todos os reinos. Desejo agradar-Vos o mais possível. Amo-Vos, ó Deus infinitamente amável! † Jesus, meu Deus, amo-Vos sobre todas as coisas (1). Mas vejo que meu amor é por demais limitado. Aumentai-lhe o ardor, dai-me mais amor. O vosso amor deve ser pago com amor muito mais intenso da minha parte, porque Vos ofendi tão gravemente, e em vez de castigo, recebi de Vós tantos favores especiais. Ó Bem supremo, não permitais que ainda Vos seja ingrato depois de tantas graças que me haveis concedido. Moriar amore amoris tui (Vos direi com São Francisco), qui amore amoris mei dignatus es mori

— Ó Jesus, morra eu pelo amor de vosso amor, visto que Vos dignastes morrer pelo amor de meu amor. — Maria, esperança minha, valei-me, rogai a Jesus por mim.

Referências:
(1) Lc 12, 50 / Indulg. de 50 dias cada vez

 Sábado da quarta semana depois da Epifania

Maria Santíssima, modelo de esperança

Mihi autem adhaerere Deo bonum est; ponere in Domino meo spem meam – “Para mim é bom unir-me a Deus; pôr no Senhor Deus a minha esperança” (Sl 72, 28)

Sumário. Se da fé nasce a esperança, Maria Santíssima, que teve uma fé singular, possuiu também uma esperança exímia. Disso deu contínuas provas em todo o curso de sua vida moral, porquanto viveu sempre em desapego completo de qualquer criatura e em inteiro abandono à divina Providência, que dela dispunha à vontade. Se quisermos ser filhos dignos de tão excelsa Mãe, esforcemo-nos por imitá-la, esperando tudo da bondade divina. E, depois de Deus, ponhamos a nossa confiança em Maria, que é chamada Mãe da santa esperança.

I. Da fé nasce a esperança, porquanto para nenhum outro fim Deus nos fez conhecer pela fé a sua bondade e as suas promessas, senão para que depois pela esperança nos elevemos ao desejo de o possuir. Sendo, pois, certo que Maria teve a virtude de uma fé excelente, teve igualmente a virtude de uma excelente esperança, que a fazia dizer com Davi:

Mihi autem adhaerere Deo bonum est; ponere in Domino Deo spem meam ― “Para mim é bom unir-me a Deus; pôr no Senhor Deus a minha esperança”

E bem demonstrou a Santíssima Virgem quanto era grande esta sua confiança em Deus, quando pressentiu que seu esposo, por ignorar o modo de sua prodigiosa gravidez, estava agitado e com ideia de a deixar. Parecia então necessário que ela descobrisse a seu esposo o oculto mistério. Mas não, ela não quis manifestar a graça recebida; preferiu entregar-se à divina Providência, confiando, como diz Cornélio a Lapide, que Deus mesmo defenderia a sua inocência e reputação. ― Demonstrou, além disso, a confiança em Deus, quando, próxima ao parto, se viu expulsa em Belém, também dos hospícios dos pobres, e reduzida a dar à luz em uma gruta. A divina Mãe fez igualmente conhecer quanto confiava na Providência de Deus, quando, avisada por São José que devia fugir para o Egito, na mesma noite se pôs a caminho para tão longa viagem a um país estrangeiro e desconhecido, sem provisão, sem dinheiro, sem outro acompanhamento além do Menino Jesus e de seu pobre esposo.

Muito mais Maria demonstrou esta sua confiança, quando pediu ao Filho a graça do vinho para os esposos de Caná; porque, depois da resposta de Jesus Cristo, pela qual parecia claro que o pedido lhe seria recusado, ela confiada na divina bondade ordenou à gente da casa que fizessem o que lhes dissesse o Filho, visto que a graça era certa: Quodcunque dixerit vobis, facite (1). De fato, Jesus Cristo fez encher os vasos de água e depois a converteu em vinho.

II. Maria foi aquela fiel Esposa do divino Espírito, da qual se disse:

Quae est ista, quae ascendit de deserto, deliciis afluens, innixa super dilectum suum (2) ― “Quem é esta, que sobe do deserto, inundada de delícias, apoiada sobre o seu amado?”

Pois que ela, sempre toda desapegada dos afetos do mundo, que reputava um deserto, e por isso nada confiando nem nas criaturas nem nos próprios merecimentos, e apoiando-se toda na graça divina, se adiantou sempre no amor do seu Deus.

Se, pois, quisermos ser dignos filhos de Maria, aprendamos dela a confiar como se deve, principalmente no grande negócio da salvação eterna. Para esta, posto que seja necessária também a nossa cooperação, contudo, só de Deus devemos esperar a graça para a conseguir, desconfiando absolutamente das nossas próprias forças e dizendo cada um com o Apóstolo:

Omnia possum in eo qui me confortat (3) ― “Tudo posso naquele que me fortalece”

― Dignas de ponderação são a este respeito as exortações de São Francisco de Sales: “Em todas as vossas necessidades e empresas, ponde toda a vossa confiança em Deus, e persuadi-vos de que o êxito será sempre o que for melhor para vós. Quanto mais verdadeira e perfeita for a nossa confiança em Deus, tanto mais fará brilhar a sua providência sobre nós. Muitos há”, acrescenta o santo Doutor, “que aspiram à perfeição, e poucos são os que a ela chegam. Mas sabeis por quê? Porque não praticam a plena confiança no Senhor e o perfeito abandono à sua bondade paterna”.

À imitação dos santos, ponhamos toda a nossa esperança, depois de Deus, na Bem-aventurada Virgem, que no livro do Eclesiástico é chamada Mãe da santa esperança; e repitamos muitas vezes a saudação da Igreja Católica: Spes nostra salve! ― Esperança nossa, salve!

“Salve Rainha, Mãe de misericórdia; vida, doçura e esperança nossa, salve! A vós bradamos os degradados filhos de Eva. A vós suspiramos, gemendo e chorando neste vale de lágrimas. Eia, pois, Advogada nossa, esses vossos olhos misericordiosos a nós volvei. E depois deste desterro nos mostrai a Jesus, bendito fruto de vosso ventre. Ó clemente, ó piedosa, ó doce Virgem Maria.”

Referências:
(1) Jo 2, 5
(2) Ct 8, 5
(3) Fl 4, 13
5ª parte

 Quinta Semana depois da Epifania

Quinta Semana do Tempo Comum (Calendário Litúrgico) ou se faltam 3 semanas para o Primeiro Domingo da Quaresma, ir para as Meditações da Semana da Septuagésima.

Domingo: A parábola do joio e a conduta de Deus para com os pecadores

Segunda-feira: Sejamos peregrinos sobre a terra

Terça-feira: Loucura dos pecadores

Quarta-feira: O pecador abandonado por Deus

Quinta-feira: Amor que Deus mostrou aos homens no mistério da Encarnação

Sexta-feira: A pena mais grave do Menino Jesus

Sábado: Quanto os religiosos devem confiar no patrocínio de Maria

 Quinto Domingo depois da Epifania

A parábola do joio e a conduta de Deus para com os pecadores

Colligite primum zizania, et alligate ea in fasciculos ad comburendum – “Colhei primeiro o joio, e atai-o em feixes para o queimar” (Mt 13, 30)

Sumário. O joio que cresce no meio do bom trigo é figura dos pecadores, que pela benignidade divina vivem juntamente com os justos no campo da Igreja Católica. Mais ai daqueles, se continuarem obstinados no pecado e deixarem passar o tempo de misericórdia! Chegará o dia da colheita, isso é, do juízo, e então os anjos separarão os maus dos bons, para levarem a estes ao paraíso e lançarem aqueles no fogo do inferno, onde serão atormentados por toda a eternidade.

I. “O reino dos céus”, diz Jesus Cristo no Evangelho deste dia, “é semelhante a um homem que semeou boa semente no seu campo. Mas, quando dormiam os homens, veio o seu inimigo e sobressemeou o joio no meio do trigo, e foi-se. Tendo, porém, crescido a erva e dado fruto, então apareceu também o joio. E chegando-se os servos do pai de família, disseram-lhe: Senhor, não semeaste boa semente no teu campo? Donde, pois, lhe veio o joio? Disse-lhes ele: Um homem inimigo fez isso. E os servos disseram-lhe: Queres que vamos e o apanhemos? Ele disse: Não! Não seja que apanhando o joio arranqueis juntamente com ele o trigo. Deixai crescer um e outro até a ceifa, e no tempo direi aos ceifeiros: Apanhai primeiro o joio, e ataio em molhos para o fogo; mas o trigo recolhei-o no meu celeiro.”

Nesta parábola vê-se de um lado a paciência do Senhor para com os pecadores, e por outro o seu rigor para com os obstinados. Diz Santo Tomás que todas as criaturas, por natural instinto, quereriam castigar o pecador e assim vingar as injúrias feitas ao Criador.

Visimus et colligimus ea? — “Queres que vamos e o apanhemos?”

Deus, porém, pela sua misericórdia, as impede. E assim faz, não só pelo amor dos justos, aos quais não quer tirar a ocasião para praticarem a virtude, suportando os maus; senão também, e muito mais, pela sua longanimidade para com os próprios pecadores, a quem quer dar tempo para se converterem:

Propterea expectat deus, ut misereatur vestri (1) — “Por isso o Senhor espera, para ter misericórdia de vós”.

Mais ai deles se continuarem obstinados em seu pecado e deixarem passar o tempo da divina misericórdia. Chegará o dia da colheita, isso é, assim como Jesus mesmo explica, o fim do mundo e o juízo universal. Então ordenará aos ceifeiros, a saber, aos anjos, que separem os maus dos justos a fim de fazerem estes entrar no eterno gozo do paraíso e lançarem aqueles no fogo do inferno, onde serão atormentados por toda a eternidade.

II. Eis aí, cristão, aonde irão parar aqueles pecadores que se obstinam em seus pecados e que abusam do tempo de penitência, que Deu lhes concede, para se tornarem mais soberbos (2) — irão queimar para sempre, alma e corpo, no fogo do inferno, sem esperança de saírem em tempo algum:

Et mittent eos in caminum ignis (3) — “E lança-los-ão na fornalha de fogo”

Com razão; porquanto não merece mais a misericórdia divina aquele que, enormemente ingrato, se prevalece da mesma misericórdia para ofender o Senhor mais gravemente. O que ofende a justiça, diz Afonso Tostato, pode recorrer à misericórdia, mas a quem poderá recorrer o que ofende a própria misericórdia?

Ó meu amabilíssimo Jesus! Eis-me aqui; eu fui um daqueles que continuaram a ofender-Vos, porque éreis bom para mim. Esperai, Senhor; não me abandoneis agora, já que pela vossa graça espero nunca mais dar-Vos motivo para que me abandoneis. Peza-me, ó Bondade infinita, ter-Vos ofendido, e ter abusado tanto de vossa paciência. Agradeço-Vos por me terdes esperado até agora. De hoje em diante não Vos quero mais trair, como no passado tenho feito.

Vós, ó Senhor, me aturastes tão longo tempo, a fim de me verdes um dia cativo amante da vossa bondade. † Jesus, meu Deus, amo-Vos sobre todas as coisas; e estimo a vossa graça mais que todos os reinos do mundo; antes quero perder mil vezes a vida que perder a vossa afeição. Vós, porém, ó Redentor meu, dai-me a santa perseverança. Pelo sangue que por mim derramastes, Vos rogo: “guardai-me, ó Senhor, com vosso auxílio contínuo, para que, esperando só na graça celeste, seja sempre munido com a vossa proteção.”(4) † Doce Coração de Maria, sede a minha salvação.

Referências:
(1) Is 30, 18
(2) Jó 24, 23
(3) Mt 13, 42
(4) Or. Dom. curr.

 Segunda-feira da quinta semana depois da Epifania

Sejamos peregrinos sobre a terra

Dum sumus in corpore, peregrinamur a Domino – “Enquanto estamos no corpo, vivemos ausentes do Senhor” (2 Cor 5, 6)

Sumário. Enquanto estivermos sobre esta terra, sejamos como uns peregrinos, que vão errando longe de sua pátria, o paraíso onde Deus nos espera para gozarmos eternamente de sua beleza divina. Se, pois, amamos a Deus e a nossa alma, devemos suspirar continuamente por sairmos deste nosso exílio e separarmo-nos do corpo, a fim de entrarmos na posse de Deus. Quando nos sentirmos oprimidos pelos trabalhos, levantemos os olhos ao céu e consolemo-nos com a lembrança do reino da bem-aventurança.

I. Enquanto estivermos na vida presente, sejamos como que uns peregrinos, porque andamos errando por este mundo, longe da nossa pátria, o céu; onde o Senhor nos espera a fim de gozarmos eternamente de sua visão beatifica.

Dum sumus in corpore, peregrinamur a Domino — “Enquanto estamos no corpo, vivemos ausentes do Senhor”

Se, pois, amamos a Deus, devemos suspirar continuamente por sairmos deste exílio, deixando o nosso corpo, a fim de entrarmos na posse de Deus

Antes da Redenção, o caminho para chegar a Deus estava interdito para nós, míseros filhos de Adão. Mas Jesus Cristo obteve-nos com a sua morte o poder de nos fazermos filhos de Deus (1) e assim nos abriu a porta pela qual temos acesso junto a nosso Pai celestial (2) . — Desta sorte, se estamos na graça de Deus, já ficamos sendo concidadãos dos santos e membros da família de Deus (3). Diz Santo Agostinho: A nossa natureza nos fez nascer cidadãos da terra e vasos de ira; mas a graça do Redentor, livrando-nos do pecado, nos fez nascer cidadãos do céu e vasos de misericórdia.

Não é para admirar que os maus queiram ficar sempre neste mundo, porque justamente temem que das penas da vida presente vão passar para as penas eternas e muito mais terríveis do inferno. Mas quem possui o amor de Deus e tem certeza moral de estar em graça, como pode desejar viver mais tempo neste vale de lágrimas, no meio de contínuas amarguras, angústias da consciência e perigos de condenação? Como não suspirará, ao contrário, por chegar em breve à união com Deus na eterna bem-aventurança, onde não haverá mais perigo de perdê-Lo? Ah! As almas abrasadas no amor de Deus, na vida terrestre gemem continuamente e exclamam com o Profeta:

Heu mihi, quia incolatus meus prolongatus est! (4) — “Ai de mim, que o meu desterro se prolongou!”

II. Apressemo-nos, pois, como nos exorta o Apóstolo, a entrar nessa pátria, onde acharemos perfeita paz e contentamento: Festinemus ingredi in illam requiem (5). Apressemo-nos (digo) pelo desejo e não paremos no caminho, enquanto não lançarmos a âncora no porto bem-aventurado que Deus preparou para os que O amam. Quem corre no estádio, diz São João Crisóstomo, não olha para os expectadores, senão para o prêmio que almeja; e não para; antes, quanto mais se aproxima da meta, tanto mais corre. Donde o Santo conclui que, à medida que já se foram os anos de nossa vida, tanto mais devemos apressar-nos, por meio de boas obras, para alcançarmos o prêmio.

Para acharmos alívio nas angústias e amarguras que tenhamos de sofrer na vida presente, a nossa, única oração deve ser esta:

Adveniat regnum tuum (6) —“Venha a nós o vosso reino”

Senhor, venha em breve o vosso reino, onde, unidos convosco, contemplando-Vos face a face, e amando-Vos com todas as nossas forças, não estaremos mais sujeitos ao temor, nem aos perigos de perder-Vos. — E quando nos oprimirem os trabalhos ou desprezos do mundo, consolemo-nos com a lembrança da grande recompensa que Deus preparou para aquele que padece por seu amor.

Eis aqui, ó meu Deus, paratum cor meum (7) — “aparelhado está o meu coração”. Eis que estou disposto a aceitar qualquer cruz que me queirais pôr a carregar. Nesta vida não quero delícias e prazeres; não os merece quem Vos ofendeu e mereceu o inferno. Estou disposto a sofrer todas as enfermidades e contrariedades que me mandeis; disposto estou a abraçar toda a sorte de desprezos da parte dos homens. Se for de vosso agrado, de boa mente aceito que me priveis de todo o alívio corporal e espiritual; basta que não me priveis de Vós mesmo e da ventura de sempre Vos amar. Não o mereço, mas espero-o pelo sangue que derramastes por mim. Amo-Vos, meu Bem, meu Amor, meu tudo. † Jesus, meu Deus, amo-Vos sobre todas as coisas. Viverei eternamente, e eternamente Vos amarei, como espero; o meu paraíso será regozijar-me pela vossa felicidade infinita, de que sois digno pela vossa infinita bondade.

— Ó Maria, minha Mãe, alcançai-me tão grande bem pela vossa poderosa intercessão.

Referências:
(1) Jo 1, 12
(2) Ef 2, 18
(3) Ef 2, 19
(4) Sl 119, 5
(5) Hb 4, 11
(6) Sl 56, 8

 Terça-feira da quinta semana depois da Epifania

Loucura dos pecadores

Sapientia enin huius mundi stultitia est apud Deum – “A sabedoria deste mundo é loucura diante de Deus” (1 Cor 3, 19)

Sumário. Quem crê na vida futura e apesar disso vive no pecado e longe de Deus, merece ser metido num hospício de doidos. Com efeito, que loucura, renunciar ao paraíso e merecer o inferno por um vil interesse, por um pouco de fumo, por um prazer vergonhoso! O pior porém, é que o número de semelhantes loucos é infinito, e no mesmo tempo que são tão loucos, eles se têm por homens sábios e prudentes. Irmão meu, serás tu por ventura do número desses infelizes?

I. O Bem-aventurado João de Ávila quisera dividir o mundo em duas prisões, uma para os que não creem na vida futura, e outra para os que creem, mas vivem no pecado e longe de Deus. Acrescentava que estes deviam ser metidos num hospital de doidos. A maior miséria e desgraça destes infelizes é que se julgam sábios e prudentes e são os mais cegos e loucos que pode haver. E o pior é que o seu número é infinito: Et stultorum infinitus est numerus (1). São loucos, uns pelas honras, outros pelos prazeres, outros pelas criaturas abjetas desta terra.

Atrevem-se a apodar de doidos os santos que desprezam os bens do mundo para obter a salvação eterna e o verdadeiro bem, que é Deus. Chamam loucura sofrer os desprezos e perdoar as injúrias: loucura o privar-se dos prazeres dos sentidos, o praticar as mortificações; loucura renunciar às honras e riquezas; amar a solidão, a vida humilde e oculta. Mas não veem que Deus chama a sabedoria deles loucura:

Sapientia enin huius mundi stultitia est apud Deum — “A sabedoria deste mundo é loucura diante de Deus”

Ah! Um dia reconhecerão evidentemente a sua loucura. Quando, porém? Quando já não houver mais tempo e então exclamarão com desespero: Nos insensati! (2) Ah! Como havemos sido insensatos! Considerávamos loucura a vida dos santos, mas hoje reconhecemos que fomos nós os insensatos. Ecce quomodo computati sunt inter filios Dei — Vede como são agora admitidos no número dos felizes filhos de Deus, e têm a sua felicidade entre os santos, felicidade que será eterna e que os tornará para sempre bem-aventurados; ao passo que nós ficamos no número dos escravos do demônio, a arder neste abismo de tormentos por toda a eternidade. Ergo erravimus — “Enganamo-nos”: tal será a conclusão de seus lamentos. Enganamo-nos, querendo fechar os olhos à luz divina, e o que nos faz ainda mais infelizes, é sabermos que nosso erro é e será sempre sem remédio, enquanto Deus for Deus!

II. Que loucura não é perder a graça de Deus por um vil interesse, por um pouco de fumo, por um prazer efêmero. O que não faz um vassalo para ganhar as boas graças de seu soberano? E então por uma miserável satisfação perderemos o bem supremo que é Deus, perderemos o paraíso, perderemos até a paz neste mundo deixando entrar na alma o pecado, que a atormentará incessantemente com os remorsos, e condenar-nos-emos voluntariamente a uma desgraça eterna? — Provarias qualquer prazer proibido, se houvesses de ficar com a mão queimada ou encerrado num túmulo por um ano? Cometerias tal pecado, se houvesses de perder por ele cem escudos? Não há dúvida que crês e sabes que pecando perdes o paraíso e a Deus e que para sempre serás condenado ao fogo, e apesar de tudo te atreves a pecar?

Ó Deus de minha alma, que seria de mim nesta hora, se não me tivésseis feito tão contínuas misericórdias? Estaria no inferno entre os insensatos, do número dos quais tenho sido. Agradeço-Vos, Senhor, e rogo-Vos que não me abandoneis na minha cegueira. Merecia ser privado de vossa luz, mas vejo que a vossa graça ainda não me abandonou. Ouço que ela me chama com ternura, e me convida a pedir-Vos perdão e a esperar de Vós grandes coisas, apesar das graves ofensas que Vos fiz.

Sim, meu Salvador, espero que me recebereis por filho. Não sou digno de ser chamado assim, porque Vos ultrajei tantas vezes na vossa presença. Pater, peccavi in coelum et coram te; non sum dignus vocari filius tuus (3) — “Pai, pequei contra o céu e diante de ti; já não sou digno de ser chamado teu filho”. Sei, porém, que andais em procura das ovelhas tresmalhadas, e que é para Vós uma consolação abraçar os filhos perdidos. Meu querido Pai, arrependo-me de Vos ter ofendido: prostro-me diante de Vós, abraço os vossos pés, e não me levantarei, enquanto não me concederdes o perdão e a vossa bênção: Non dimittam te, nisi benedixeris mihi (4). Abençoai-me, meu Pai, e que a vossa bênção me inspire uma grande dor de meus pecados e um grande amor por Vós.

— Ó Maria, se Deus é meu Pai, sois vós minha Mãe. Abençoai-me também vós e obtende-me a santa perseverança.

Referências:
(1) Ecle 1, 15
(2) Sb 5, 4
(3) Lc 15, 18
(4) Gn 32, 26

 Quarta-feira da quinta semana depois da Epifania

O pecador abandonado por Deus

Curavimus Babylonem, et non est sanata; derelinquamus eam – “Medicamos a Babilônia, e ela não sarou; deixemo-la” (Jr 51, 9)

Sumário. Não há maior castigo do que Deus fingir que não vê a iniquidade. Permite que os pecadores prosperem e amontoem pecados sobre pecados. É sinal de que Deus os reserva para os entregar à sua justiça na vida eterna, onde terão tantos infernos a padecer, quantos foram os pecados cometidos. Desgraçados dos pecadores que prosperam nesta vida. Tal misericórdia é mais terrível do que qualquer castigo.

I. Deus espera o pecador, a fim de que se corrija. Quando vê, porém, que o tempo que lhe é dado para chorar os pecados, só serve para os multiplicar, esse mesmo tempo será chamado a depor contra ele (1): isso é, o tempo concedido e as misericórdias recebidas servirão para fazer castigar o pecador com mais rigor e para o entregar mais cedo ao abandono.

Curavimus Babyloniam, et non est sanata; derelinquamus eam — “Medicamos a Babilônia, e ela não sarou; deixemo-la”

— E como é que Deus o abandona? Ou lhe envia a morte e o faz morrer no pecado, ou o priva das graças abundantes e só lhe deixa a graça suficiente, com que o pecador se poderia salvar, mas não se salvará. O espírito obcecado, o coração endurecido, o mau hábito contraído, tornar-lhe-ão a salvação moralmente impossível, e assim ficará, senão absolutamente, ao menos moralmente abandonado.

Auferam sepem eius, et erit in direptionem (2) — “Arrancar-lhe-ei a sebe e ficará exposta a ser roubada”

Que castigo! Quando o dono de uma vinha arranca a sebe e deixa entrar nela a todos os homens e animais, que significa isto? Significa que a abandona. Pois, é o que faz Deus quando abandona uma alma: tira-lhe a sebe do temor de Deus, dos remorsos da consciência e deixa-a nas trevas. Então entram na alma todos os monstros dos vícios. E o pecador, entregue a esta escuridão, desprezará tudo, graça de Deus, paraíso, exortações, censuras, e até escarnecerá da sua própria condenação.

Impius, cum in profundum venerit peccatorum, contemnet (3) — “O ímpio, depois de haver chegado ao profundo dos pecados, desprezará tudo”

Numa palavra, Deus deixá-lo-á nesta vida sem castigo; mas esta condescendência será para ele o maior dos castigos:

Misereamur impio, et non discet iustitiam (4) — “Compadeçamo-nos do ímpio, e ele não aprenderá a justiça”

— Ah! Senhor, assim Vos direi com São Bernardo, não quero semelhante misericórdia, porque é mais terrível do que qualquer castigo.

II. Desgraçados dos pecadores que prosperam nesta vida! É sinal de que Deus os reserva para os entregar como vítimas à sua justiça na vida eterna. Pergunta o profeta Jeremias:

Quare via impiorum prosperatur? (5) — “Porque é prosperado o caminho dos ímpios?”

E responde:

Congregas eos quasi gregem ad victimam — “Ajunta-os como rebanho para o matadouro”

Não há maior castigo do que deixar Deus ao pecador amontoar pecados sobre pecados. Fora melhor para o desgraçado que o Senhor o tivesse feito morrer em seguida ao primeiro pecado; porque, morrendo mais tarde, terá tantos infernos a padecer, quantos foram os pecados cometidos.

Meu Deus, no miserável estado em que me acho, reconheço que mereci ser privado da vossa graça e da vossa luz; mas vendo as luzes que agora me concedeis e ouvindo que me chamais à penitência, estou certo que não me abandonastes ainda. Já que não me haveis abandonado, Senhor, multiplicai as vossas misericórdias sobre a minha alma, aumentai a luz e aumentai em mim o desejo de Vos servir e amar. Transformai-me, ó Deus onipotente, e de traidor e rebelde, como tenho sido, fazei de mim um verdadeiro amante da vossa bondade, a fim de que chegue um dia ao céu a louvar eternamente as vossas misericórdias. Vós quereis perdoar-me e eu nada mais desejo senão o perdão e o vosso amor.

Arrependo-me, ó Bondade infinita, de Vos ter causado tantos desgostos. Amo-Vos, soberano Bem, porque mo ordenais; amo-Vos, porque sois digno de todo o amor. Suplico-Vos, meu Redentor, pelos méritos do vosso Sangue, que Vos façais amar por um pecador, que tanto tendes amado e que tantos anos sofrestes com paciência. Tudo espero da vossa misericórdia. Espero amar-vos sempre no futuro, até à morte e por toda a eternidade: Misericordias Domini in aeternum cantabo (6). Eternamente louvarei a vossa bondade, ó Jesus meu. Eternamente louvarei também a vossa misericórdia, ó Maria, que tantas graças me haveis alcançado; reconheço que as devo todas à vossa intercessão. Continuai a assistir-me, ó Senhora minha, e obtende-me a santa perseverança.

Referências:
(1) Lm 1, 15
(2) Is 5, 5
(3) Pv 18, 3
(4) Is 26, 10
(5) Jr 12, 1
(6) Sl 88, 2

 Quinta-feira da quinta semana depois da Epifania

Amor que Deus mostrou aos homens no mistério da Encarnação

Apparuit gratia Dei Salvatoris nostri omnibus hominibus – “A graça de Deus nosso Salvador apareceu a todos os homens” (Tt 2, 11)

Sumário. Embora a graça, isto é, o amor de Deus para com os homens, tenha sempre sido o mesmo, todavia não se manifestou sempre de igual maneira. Apareceu em toda a sua grandeza na obra da Encarnação, quando o Verbo Eterno se fez criança, gemendo e tremendo de frio, começando assim a satisfazer pelas penas que nós tínhamos merecido. Mas se este amor tão excessivo do Filho de Deus se manifestou a todos os homens, como é que nem todos o querem reconhecer e preferem as trevas do pecado à luz da graça celeste?

I. Considera que pela graça, da qual aqui se diz que apareceu, se entende o amor excessivo de Jesus Cristo para com os homens: amor imerecido da nossa parte e por isso chamado graça. Em Deus este amor foi sempre o mesmo, mas não se manifestou sempre de igual maneira. Primeiro foi prometido em diversas profecias e debuxado em muitas figuras. Mas bem apareceu e se manifestou o amor divino no nascimento do Redentor, quando o Verbo Eterno se mostrou aos homens feito criança sobre um pouco de palha, chorando e tremendo de frio, começando desde então a satisfazer pelas penas que nós tínhamos merecido, e patenteando o afeto que nos tinha, pelo sacrifício de sua vida:

In hoc cognovimus caritatem Dei, quoniam ille animam suam pro nobis posuit (1) — “Nisto conhecemos o amor de Deus, em que Ele deu a sua vida por nós”

Apareceu, pois, o amor de nosso Deus, e apareceu a todos os homens: omnibus hominibus. Mas porque é que nem todos conheceram, e ainda hoje em dia há tantos que não o conhecem? Eis aqui a razão: Lux venit in mundum, et dilexerunt homines magis tenebras quam lucem (2). Não o conheceram nem o conhecem, porque não o querem conhecer: amam mais as trevas do pecado do que a luz da graça.

Não sejamos nós do número daqueles infelizes. Se antigamente fechamos os olhos à luz, pensando pouco no amor de Jesus Cristo, esforcemo-nos nos dias de vida que ainda nos restam, por termos continuamente diante dos olhos os sofrimentos e a morte de nosso Redentor, a fim de amarmos àqueles que tanto nos amou. Desta forma teremos, segundo as promessas divinas, direito de esperarmos o paraíso que Jesus Cristo nos adquiriu com o seu sangue. Nesta sua primeira vinda, veio Jesus como criança pobre e desprezada, envolta em pobres mantilhas e deitada sobre a palha; mas na segunda vinda virá sobre um trono de majestade.

Videbunt Filium hominis venientem in nubibus, cum virtute multa et maiestate (3) — “Eles verão ao Filho do homem que virá sobre as nuvens com grande poder e majestade”

Feliz então de quem tiver amado a Jesus, e ai de quem não o tiver amado!

II. Ó meu santo Menino, agora Vos vejo sobre a palha pobre, aflito e abandonado; mas sei que um dia haveis de vir a julgar-me, sobre um trono de luz e acompanhado dos anjos. Rogo-Vos que me perdoeis antes de virdes como juiz. Então deverei ser um juiz justo; mas agora sois para mim um Redentor e um Pai de misericórdia. Por minha ingratidão fui um daqueles que não Vos conheceram, porque não Vos quis conhecer. Por isso, em vez de pensar em amar-Vos, considerando o amor que me haveis tido, só pensei em minhas próprias satisfações com desprezo da vossa graça e do vosso amor. Deposito agora em vossas santas mãos a minha alma, que eu por culpa minha tinha perdido; salvai-a e guardai-a: In manus tuas comendo spiritum meum (4). Em Vós ponho toda a minha esperança; porquanto sei que para resgatá-la do inferno, destes o vosso sangue e a vossa vida: Redemisti-me, Domine, Deus veritatis.

Ó Senhor, não me deixastes morrer quando estava em pecado e me aguardastes com tanta paciência, a fim de que, vindo à resipiscência, me arrependa de Vos ter ofendido e comece a amar-Vos, e assim possa ser por Vós perdoado e salvado. Sim, ó meu Jesus, quero agradar-Vos; arrependo-me, acima de tudo, dos desgostos que Vos causei; arrependo-me e Vos amo. † Jesus, meu Deus, amo-Vos sobre todas as coisas. Salvai-me pela vossa misericórdia, e consista a minha salvação em amar-Vos sempre nesta vida e na eternidade. — Minha amada Mãe Maria, recomendai-me a vosso Filho. Dizei-Lhe que sou vosso servo e que em vós eu pus a minha esperança. Ele vos atende e não vos nega nada.

Referências:
(1) 1 Jo 3, 16
(2) Jo 3, 19
(3) Mt 24, 30

 Sexta-feira da quinta semana depois da Epifania

A pena mais grave do Menino Jesus

Quae utilitas in saguine meo, dum descendo in corruptionem? – “Que proveito há no meu sangue, se desço à corrupção?” (Sl 29, 10)

Sumário. Quando Jesus estava ainda no seio de Maria Santíssima, já previa a dureza de coração dos homens, que pela maior parte havia de pisar o seu sangue aos pés e de desprezar a graça que com seu sangue lhes havia merecido. Foi esta a pena que mais O afligiu. Se nós também temos sido do número desses ingratos, não desesperemos, contanto que estejamos resolvidos a converter-nos; porque o divino Menino veio a oferecer a paz a todos os homens de boa vontade. Arrependamo-nos, pois, de nossos pecados e façamos o propósito de amar doravante o nosso bom Deus, e estejamos certos de que acharemos a paz, isso é, a amizade divina.

I. Revelou Jesus Cristo à Venerável Águeda da Cruz, que, quando estava no seio de Maria, o que entre todas as penas mais o afligia, foi a previsão da dureza do coração dos homens, que, depois da Redenção feita haviam de desprezar as graças que ele viera derramar sobre a terra. Jesus exprimiu o mesmo sentimento já pela boca de Davi nas palavras citadas, na explicação comum dos Santos Padres: Quae utilitas in sanguine meo, dum descendo in corruptionem? Interpreta Santo Isidoro as palavras: “se desço na corrupção”, assim: se desço a tomar a natureza humana toda corrompida pelos vícios e pecados.

— “Meu Pai” (assim parece dizer o Verbo divino), “eu vou tomar um corpo humano e depois derramarei todo o meu sangue pelos homens; mas quae utilitas in sanguine meo? — que proveito terá o meu sangue? A maior parte dos homens nem sequer se lembrarão deste meu sangue e continuarão a ofender-me, como se nada por amor deles tivesse feito.”

Esta pena foi o cálice de amargura, do qual Jesus pediu que o Pai Eterno O livrasse, dizendo:

Transeat a me calix iste (1) — “Meu Pai, passe este cálice longe de mim”

Que cálice? A vista de tamanho desprezo de seu amor. Foi ela que ainda na cruz O fez exclamar: Deus meu, Deus meu, porque me abandonastes? (2) Revelou o Senhor a Santa Catarina de Sena, que o abandono de que se queixou foi exatamente o ver que seu Pai permitiria que a sua paixão e o seu amor fossem em seguida desprezados por tantos homens, pelos quais devia morrer. — Ora, esta mesma pena atormentou ao Menino Jesus no seio de Maria: o ver desde então tanto empenho de dores, de ignomínias, de sangue e de uma morte cruel e ignominiosa, e tão pouco fruto. Desde então o santo Menino viu como, no dizer do Apóstolo, muitos (quiçá a maior parte) pisariam o seu sangue aos pés e desprezariam a graça que com seu sangue lhes havia merecido: Filium Dei conculcantes, et spiritui gratiae contumeliam facientes (3).

II. Se nós também temos sido do número daqueles ingratos que sempre afligiram o Senhor com as suas culpas, não desesperemos. No seu nascimento Jesus veio oferecer a paz aos homens de boa vontade, como os anjos cantaram:

Et in terra pax hominibus bonae voluntatis (4) — “E na terra paz aos homens de boa vontade”

Mudemos a nossa vontade, arrependamo-nos de nossos pecados, tomemos a resolução de amar o nosso bom Deus, e acharemos a paz, isto é, a amizade divina.

Ó meu amabilíssimo Jesus, quanto Vos tenho feito sofrer durante a vossa vida! Vós derramastes por mim o vosso sangue com tantos sofrimentos e com tamanho amor, e quais são os frutos que até agora Vos tenho produzido? Só desprezos, desgostos e injúrias! Mas, ó meu Redentor, espero que no futuro a vossa paixão há de produzir frutos pela vossa graça, que ainda não me desamparou. Sofrestes e morrestes por meu amor, para serdes amado por mim. Quero amar-Vos sobre todas as coisas, e se for de vosso agrado, pronto estou a dar mil vezes a vida.

Ó Padre Eterno, eu não devia animar-me a comparecer em vossa presença, a fim de Vos pedir perdão e graças; mas vosso Filho me diz que, qualquer que seja a graça que Vos pedir em seu nome, Vós ma concedereis: Si quid petieritis Patrem in nomine meo, dabit vobis (5). Ofereço-Vos, pois, os merecimentos de Jesus Cristo e em nome de Jesus Cristo peço-Vos primeiro o perdão completo de todos os meus pecados, peço-Vos a santa perseverança até a morte e sobretudo Vos peço o dom do vosso santo amor, que me faça viver sempre em obediência à vossa santa vontade. — Quanto à minha vontade, antes prefiro mil vezes a morte do que ofender-Vos, e quero amar-Vos de todo o meu coração procurando em tudo o vosso agrado. Para isso, porém, Vos peço a graça de o executar e espero obtê-la de Vós. — Maria, minha Mãe, se vós rogais por mim, estou seguro. Rogai, rogai, e não deixeis de rogar enquanto não me virdes mudado e transformado como Deus quer que eu seja.

Referências:
(1) Mt 26, 39
(2) Mt 27, 46
(3) Hb 10, 29
(4) Lc 2, 14
(5) Jo 16, 23

 Sábado da quinta semana depois da Epifania

Quanto os religiosos devem confiar no patrocínio de Maria

Ego diligentes me diligo: et qui mane vigilante ad me, invenient me – “Eu amo os que me amam: e os que vigiam desde a manhã por me buscarem, achar-me-ão” (Pr 8, 17)

Sumário. Se a divina Mãe ama todos os homens com tão grande afeto, que nenhum outro lhe seja superior, ou mesmo igual, quanto mais não amará os religiosos, que sacrificaram a liberdade, a vida e tudo ao amor de Jesus Cristo? Ponhamos, pois, toda a nossa confiança em tão boa Mãe. Provemos-lhe a nossa devoção, honrando-a fervorosamente e fazendo com que os outros também a honrem. Um religioso que não tem para com nossa Senhora uma devoção especial, perseverará dificilmente.

I. Se é certo, como é certíssimo, no dizer de São Pedro Damião, que a divina Mãe Maria ama todos os homens com tamanho afeto, que, depois de Deus, não há nem pode haver quem a exceda ou iguale no amor: amat nos amore invincibili — “ama-nos com amor inexcedível”, quanto devemos pensar que a grande Rainha ama os religiosos, que consagraram a sua liberdade, a sua vida, tudo ao amor de Jesus Cristo? Ela bem vê que a vida deles é mais semelhante à sua e à do seu divino Filho. Vê-os empregados continuamente em louvá-la e em honrá-la com novenas, visitas, rosários, jejuns e outras práticas de devoção. Vê-os muitas vezes a seus pés a invocá-la e a pedir-lhe graças, graças essas todas conformes aos seus santos desejos, como sejam: a perseverança no serviço divino, a força contra as tentações, o desapego da terra, o amor para com Deus.

Ah! Como poderemos duvidar que ela deixe de empenhar todo o seu poder e misericórdia em benefício dos religiosos, especialmente de nós, que vivemos nesta santa Congregação (1), na qual, como se sabe, se faz profissão especial de honrar a Virgem Mãe com visitas, jejum no sábado, mortificações particulares nas suas novenas, etc., e com promover por toda a parte a sua devoção, por meio de pregações e novenas em sua honra?

A nossa excelsa Senhora é grata, e tão grata, que, como diz Santo André Cretense, costuma dar grandes coisas em retribuição a quem lhe oferece o mais pequeno obséquio: Solet maxima pro minimis reddere. A quem a honra e procura fazê-la honrar dos outros, ela promete, na sua benevolência, livrá-lo do pecado: Qui operantur in me, non peccabunt; promete-lhe também o paraíso: Qui elucidant me, vitam aeternam habebunt (2).

Por esta razão devemos nós especialmente dar graças a Deus por nos haver chamado a esta Congregação, onde, pelos costumes da comunidade e pelos exemplos dos companheiros, somos frequentemente advertidos e como que constrangidos a recorrer a Maria e a honrar continuamente esta nossa Mãe amantíssima, que se chama e é a alegria, a esperança, a vida e a salvação de quem a invoca e honra.

II. Grande é a confiança que os religiosos devem ter no patrocínio de Maria Santíssima; e grande deve ser a sua devoção, porque, aliás, perseverarão dificilmente. — São Francisco de Borgia perguntou certa vez a uns noviços, de que Santo eram mais devotos, e achou que alguns deles não tinham devoção especial a Nossa Senhora. Advertiu por isso ao Mestre dos noviços que olhasse com mais atenção para aqueles desgraçados; e aconteceu que todos eles perderam miseravelmente a vocação e saíram da religião.

Minha Mãe amabilíssima e amantíssima, pelo amor de Jesus Cristo vos suplico, não permitais que tão grande desgraça venha sobre mim. Agradeço sempre ao meu Senhor e a vós, que além de me haverdes arrancado do mundo, me chamastes para viver nesta Congregação, onde se pratica uma particular devoção para convosco. Aceitai-me, portanto, minha Mãe, para vos servir, e não tomeis por mal que entre tantos vossos diletos filhos vos sirva também este miserável. Vós, depois de Deus, haveis de ser sempre a minha esperança, o meu amor. Em todas as minhas necessidades, em todas as tribulações e tentações, sempre recorrerei a vós, que haveis de ser o meu refúgio, a minha consolação. Não quero outro conforto nos combates, nas tristezas e nos aborrecimentos desta vida, senão Deus e a vós.

Minha amabilíssima Mãe, para vos servir, renuncio a todos os reinos do mundo; o meu reino nesta terra será servir, bendizer e amar a minha dulcíssima Senhora: cui servire, regnare est — “a quem servir, é reinar”, como diz Santo Anselmo. Visto que sois a Mãe da perseverança, obtende que eu vos seja fiel até à morte.

— Fazendo assim, espero, e espero com segurança, ir um dia louvar-vos e bendizer-vos eternamente e nunca mais apartar-me de vossos pés. Iesus et Maria — assim protesto com vosso amante servo Santo Afonso Rodrigues — amores mei dulcissimi, pro vobis patiar, pro vobis moriar; sim totus vester, sim nihil meus — “Jesus e Maria, amores meus dulcíssimos, padeça por Vós, morra por Vós, seja todo vosso e nada meu”.

Referências:
(1) Santo Afonso escreveu esta meditação para os noviços da Congregação do Santíssimo Redentor por ele fundada
(2) Eclo 24, 30-31
6ª parte

 Sexta Semana depois da Epifania

Sexta Semana do Tempo Comum (Calendário Litúrgico) ou se faltam 3 semanas para o Primeiro Domingo da Quaresma, ir para as Meditações da Semana da Septuagésima.

Domingo: A parábola do fermento e os efeitos da graça santificante

Segunda-feira: Necessidade da oração mental

Terça-feira: Paciência de Deus em esperar que o pecador faça penitência

Quarta-feira: Momento da morte

Quinta-feira: Amor de Deus em fazer-se homem

Sexta-feira: Amor de Deus em fazer-se criança

Sábado: Vantagens das Congregações de Maria Santíssima

 Sexto Domingo depois da Epifania

A parábola do fermento e os efeitos da graça santificante

Simile est regnum coelorum fermento – “O reino dos céus é semelhante ao fermento” (Mt 13, 33)

Sumário. Nesta parábola do fermento os santos Padres veem uma figura da caridade, isto é, da graça santificante. Assim como a levedura penetra toda a massa, levanta-a e lhe dá sabor; assim a graça divina tira da alma a friúra do pecado e, excitando nela santos afetos, torna-a digna de amizade de Deus. Mais: faz com que a alma seja a morada do Espírito Santo, sua filha, sua esposa. Lancemos um olhar sobre nossas almas: estão elas ornadas da graça santificante?

I. Na parábola do fermento Santo Agostinho, o Bem-aventurado Alberto Magno e outros veem uma figura da caridade, isto é, da graça santificante. Porquanto, como a levedura penetra toda a massa, levanta-a e lhe dá sabor, assim a graça santificante tira da alma a friúra áspera do pecado, e inflamando-a no amor celeste eleva-a a um estado sobrenatural, torna-a digna da amizade de Deus.

– Por isso é que o Espírito Santo chama a graça um tesouro infinito:

Infinitus enim thesaurus est hominbus (1) – “É um tesouro infinito para os homens”

Esse tesouro, porém, acrescenta o santo homem Job, é um tesouro oculto, pois, se os homens conhecessem o valor da graça divina, não a trocariam por uma fumaça, um punhado de terra, um vil prazer:

Nescit homo pretium eius (2) – “O homem não conhece o seu preço”

Privados da luz da fé, os pagãos julgavam impossível que uma criatura pudesse ser amiga de Deus. E seguindo unicamente a luz natural, tinham razão, pois a amizade, segundo observa São Jerônimo, torna os amigos iguais. Deus, contudo, em muitos lugares nos declarou que, em virtude da sua graça, nos tornamos seus amigos, observando a sua lei:

Vos amici mei estis, si feceritis quae praccipio vobis (1) – “Vós sois meus amigos, se fizerdes o que eu vos mando”

“Ó bondade de Deus”, exclama São Gregório, “não lhe merecemos o nome de servos, e digna-se chamar-nos seus amigos!”. Como se julgaria feliz quem fosse honrado com a amizade de seu rei! Mas seria temeridade para um vassalo o pretender travar amizade com o seu príncipe. No entanto uma alma pode sem temeridade aspirar a amizade do seu Deus.

Conta Santo Agostinho que, estando dois validos do paço num convento, um deles pôs-se a ler a vida de Santo Antônio abade. A medida que ia lendo, o seu coração desprendia-se dos afetos mundanos. Voltando-se depois para o companheiro: Amigo, disse-lhe, que é que procuramos? Servindo o imperador, podemos esperar mais do que ser amigos? Chegando a isso, poremos em maior perigo a nossa salvação eterna. Além disso, com que dificuldade chegaremos a ser amigos do imperador! Ao contrário, assim conclui, desde já posso ser amigo de Deus, se o quiser.

II. Quem está na graça de Deus, torna-se, pois, amigo de Deus. Mais ainda, torna-se seu filho:

Dii estis, et filii Excelsi omnes (2) – “Sois deuses, e todos filhos do Excelso”

É esta a grande prerrogativa que o amor divino nos alcançou por meio de Jesus Cristo. Além disso, a alma em estado de graça torna-se esposa de Deus:

Sponsabo te mihi in fide (3) – “Desposar-me-ei contigo com fidelidade”

Por isso o pai do filho pródigo, ao restituir-lhe as boas graças, ordenou que lhe dessem o anel, sinal dos esponsais.

– Finalmente, como diz São Paulo, quem está na graça de Deus, torna-se templo do Espírito Santo:

Templum Dei estis, et Spiritus Dei habitat in vobis (4) – “Sois o templo de Deus e o Espírito de Deus habita em vós”

Soror Maria de Oignies viu um dia o demônio sair do corpo de uma criança que estavam batizando, e o Espírito Santo entrar com um cortejo de anjos.

Ó meu Deus, eis que minha alma, quando estava em vossa graça, era vossa amiga, vossa filha, vossa esposa e vosso templo. Mas depois perdeu tudo pelo pecado, e tornou-se vossa inimiga e escrava do inferno. Graças Vos dou por me haverdes ainda dado o tempo para reparar o mal que fiz, para reentrar em vossa graça e aumentá-la mais e mais. Ó Bondade infinita, arrependo-me sobre todos os males de Vos ter ofendido, e amo-Vos sobre todas as coisas. Dignai-Vos receber-me de novo em vossa amizade. Por piedade, não me desprezeis. Bem sei que merecia ser repelido de Vós; mas Jesus Cristo merece por mim que me aceiteis de novo, visto estar arrependido, em consideração do sacrifício que de si mesmo fez no Calvário.

– Adveniat regnum tuum – “Venha o vosso reino”. Meu Pai (é assim que vosso Filho me ensinou a chamar-Vos), meu Pai, vinde reinar no meu coração pela vossa graça, fazei com que só Vos sirva, que viva só para Vós e que só Vos ame. Numa palavra, “fazei com que ocupando-me sempre com pensamentos santos e racionáveis, eu execute com palavras e obras o que é de vosso agrado divino” (5).

Peço esta graça também a vós, ó grande Mãe de Deus, e minha Mãe Maria.

Referências:
(1) Jo 15, 14
(2) Sl 81, 6
(3) Os 2, 20
(4) 1Cor 3, 16
(5) Or. Dom. curr.

 Segunda-feira da sexta semana depois da Epifania

Necessidade da oração mental

Desolatione desolata est omnis terra; quia nullus est qui rerogitet corde – “Toda a terra está inteiramente desolada, porque não há nenhum que considere no seu coração” (Jer 12, 11)

Sumário. Afeiçoemo-nos à oração mental e nunca a deixemos de fazer. É ela necessária, para que tenhamos luz na viagem que estamos fazendo para a eternidade e também para que conheçamos os nossos defeitos e os emendemos. Assim como sem a oração mental, não faremos bem a vocal, à qual estão ligadas as graças, assim igualmente nos faltará a força para vencer as tentações e praticar as virtudes. Infeliz, portanto, da alma que não faz oração mental; ela não precisa de demônios para lançá-la no inferno, visto que de si mesma nele se precipita.

I. A oração mental é, em primeiro lugar, necessária, para que tenhamos luz na viagem que estamos fazendo para a eternidade. As verdades eternas são coisas espirituais, que não são vistas pelos olhos do corpo, senão somente pela consideração do espírito. Quem não faz oração, não as vê, e assim andará com dificuldade no caminho da salvação. — Além disso, quem não faz oração, não conhece os seus defeitos, e assim, como diz São Bernardo, não os aborrece. Tampouco vê os perigos em que se acha a sua salvação e não pensa em evitá-los. Mas quem faz oração logo descobre os seus defeitos e os perigos de perder-se; e vendo-os, pensará em aplicar-lhes o remédio. Por isso o mesmo São Bernardo afirma que “a meditação regula os afetos, endireita as ações e corrige os defeitos”.

Em segundo lugar, sem a oração não haverá força para vencer as tentações e praticar as virtudes. Dizia Santa Teresa que quem omite a oração, não precisa de demônios para levá-lo ao inferno, visto que de si mesmo nele se precipita.

— A razão disso é que sem a oração mental não haverá oração vocal. Deus quer dispensar-nos as suas graças; porém, diz São Gregório que para no-las dispensar quer ser rogado e como que coagido pelas nossas petições: Vult Deus rogari, vult cogi, vult quadam importunitate vinci. Sem a oração faltará a força para resistir aos inimigos e tampouco se obterá a perseverança no bem. Escreve monsenhor Palafox:

“Como é que o Senhor nos dará a perseverança, se nós não lha pedirmos? E como lha pediremos sem a oração mental?”

Ao contrário, quem faz oração, é como que uma árvore que está plantada junto às correntes das águas, que sempre cresce e está sempre virosa. Erit tamquam lignum secus decursus aquarum (1).

II. A oração mental é a feliz fornalha na qual as almas se abrasam no amor divino; é qual laço de ouro que prende a alma a Deus. Dizia a sagrada Esposa:

Introduxit me rex in cellam vinariam (2) — “O rei me introduziu na sua adega”

Esta adega é a oração, na qual a alma se embriaga de tal modo pelo amor divino, que perde quase inteiramente o gosto das coisas da terra. Não vê mais senão o que agrada a seu amado, não fala senão no amado, nem quer ouvir falar senão nele e toda outra conversação a aborrece e aflige.

Na oração, a alma recolhe-se para tratar a sós com Deus e assim se eleva acima de si mesma. Sedebit solitarius et tacetib, quia levavit super se (3). Diz o profeta Sedebit: assentar-se-á, isto é: a alma em seu repouso, contemplando na oração quanto Deus é amável e quão grande é o amor que lhe tem, começará a saborear as coisas de Deus; o espírito se lhe encherá de santos pensamentos; ela se desprenderá dos afetos terrestres, conceberá grande desejo de se fazer santa e finalmente resolverá dar-se toda a Deus. Onde é que os santos formaram as resoluções generosas, que os sublimaram a um alto grau de perfeição, a não ser na meditação? Por isso São Luiz de Gonzaga dizia que nunca chegará a alto grau de perfeição quem não chega a fazer muita oração mental.

— Afeiçoemo-nos, pois, à meditação e não a omitamos, seja qual for o aborrecimento que nela achemos. Deus remunerará abundantemente o aborrecimento sofrido pelo seu amor.

Ó meu Deus, perdoai-me a minha preguiça. Que tesouros de graças perdi por ter deixado tantas vezes a oração! Para o futuro dai-me força a fim de que seja fiel a conversar sempre convosco nesta terra, visto que espero conversar eternamente convosco no céu. Não aspiro aos regalos das vossas consolações; não as mereço. Basta-me que me permitais ficar a vossos pés para Vos recomendar a minha pobre alma, que tão pobre se acha por se ter afastado de Vós. Ó meu Jesus crucificado, na oração só a lembrança de vossa Paixão me desprenderá da terra e me unirá convosco.

— Santíssima Virgem Maria, assisti-me na minha meditação.

Referências:
(1) Sl 1, 3
(2) Ct 2, 4
(3) Lm 3, 28

 Terça-feira da sexta semana depois da Epifania

Paciência de Deus em esperar que o pecador faça penitência

Propterea, expectat Dominus, ut misereatur vestri – “Por isso o Senhor espera, para ter misericórdia de vós” (Is 30, 18)

Sumário. A paciência de que o Senhor usa para com os pecadores, esperando que façam penitência, é tão grande, que, no dizer de Santo Agostinho, se não fosse Deus, pareceria que falta à justiça. A misericórdia de Deus impede continuamente as criaturas, que por natural instinto quiseram vingar as injúrias feitas ao Criador; e ao mesmo tempo dispensa-lhe toda sorte de graças, a fim de conduzi-los à resipiscência. Parece que teimosamente lutamos com Deus: nós provocando os seus castigos; Deus oferecendo-nos o perdão. Mas continuará sempre assim? A paciência irritada afinal torna-se furor!

I. A paciência de que Deus usa para com os pecadores é tão grande, que uma alma santa desejava que se construísse uma igreja e se lhe desse por título: Paciência de Deus. Meu irmão, quando ofendias a Deus, podia fazer-te morrer; mas Deus esperava, conservava-te a vida e acudia-te em todas as necessidades. Fingia não ver os teus pecados, a fim de que viesses à resipiscência:

Dissimulas peccata hominum propter poenitentiam (1) — “Dissimulas os pecados dos homens, para que façam penitência”.

Mas como é isto, Senhor, exclama o profeta Habacuc: os vossos olhos são puros, não podeis sofrer a vista de um só pecado, e tantos vedes e Vos calais? (2) Vedes o impudico, o vingativo, o blasfemador, que dia a dia amontoam os pecados, e não os punis? Porque usais de tamanha paciência? Propterea expectat Dominus, ut misereatur vestri. Deus espera pelo pecador, para que se corrija, a fim de assim lhe poder perdoar e salvá-lo.

Diz Santo Tomás que todas as criaturas, o fogo, a terra, o ar, a água, por natural instinto quiseram castigar o pecador e vingar as injúrias feitas ao seu Criador. Deus, porém, pela sua misericórdia os impede. — Mas, Senhor, Vós esperais pelos ímpios a ver se se convertem, e não vedes que esses ingratos se servem da vossa misericórdia para mais Vos ofenderem? “Vós, ó Senhor”, diz Isaías, “favorecestes este povo, e usastes para com ele de misericórdia; porventura fostes glorificado?” (3) Para que então tamanha paciência? Porque Deus não quer a morte do pecador, mas, sim, que se converta e se salve: Nolo mortem impii, sed ut convertatur et vivat (4). Ó paciência infinita de Deus!

II. Santo Agostinho chega a dizer que Deus, se não fosse Deus, pareceria injusto pela demasiada paciência para com os pecadores. Sim, porque esperar assim por quem abusa desta paciência até tornar-se insolente, parece que é faltar à honra que Deus a si próprio se deve. “Nós pecamos”, prossegue o Santo, “ficamos fixos no pecado” — Alguns há que se familiarizam com o pecado, vivem em paz com ele e dormem no pecado meses e anos. “Nós nos alegramos pelo pecado” — Outro há que até chegam a gabar-se dos seus crimes.

“E Vós permaneceis quieto. Nós provocamos a vossa indignação, e Vós nos provocais a que peçamos misericórdia”

Numa palavra, parece que teimosamente lutamos com Deus; nós provocando os seus castigos, Deus oferecendo-nos o perdão. Mas há de ser sempre assim? A paciência irritada afinal torna-se furor.

Ah! Meu Senhor, reconheço que deveria agora estar no inferno:

Infernus domus mea est (5) — “O inferno é a minha morada”

Graças, porém, à vossa misericórdia, eis-me, não no inferno, mas neste lugar a vossos pés, e ouço que me dais a suave ordem que quereis ser amado por mim:

Diliges Dominum Deum tuum (6) — “Amarás ao Senhor teu Deus”

Dizeis que me quereis perdoar, se detestar as ofensas que Vos fiz. Sim, meu Deus, pois que ainda quereis ser amado por mim, miserável rebelde de vossa majestade, de todo o coração Vos amo. Estou arrependido de Vos ter ultrajado, e isso mais me aflige que todos os males que pudera ter merecido. Iluminai-me, ó Bondade infinita, fazei-me conhecer o mal que Vos fiz.

Não, não quero outra vez resistir à vossos chamamentos. Não quero mais desagradar a um Deus que tanto me amou e tantas vezes me perdoou com tamanho amor. Nunca Vos tivesse ofendido, ó meu Jesus! Perdoai-me e fazei que no futuro só Vos ame; que só viva para quem morreu por mim; que sofra por vosso amor, já que pelo meu tanto sofrestes. Vós me haveis amado em toda a eternidade: fazei que durante toda a eternidade arda no vosso amor. Pelos vossos merecimentos espero tudo, meu Salvador.

— Em vós também, ó Maria, confio; com a vossa intercessão haveis de salvar-me.

Referências:
(1) Sb 11, 24
(2) Hsb 1, 13
(3) Is 26, 15
(4) Ez 33, 11
(5) Jó 17, 13
(6) Mt 22, 37

 Quarta-feira da sexta semana depois da Epifania

Momento da morte

Si ceciderit lignum ad austrum aut ad aquilonem, in quocumque loco ceciderit, ibi erit – “Se a árvore cair para o sul ou para o norte, em qualquer lugar onde cair, aí ficará” (Ecle 11, 3)

Sumário. É uma verdade da fé que a morte é um momento de que depende a eternidade. Quem a errar então, tê-la-á errado para sempre, sem esperança de remédio. Se cremos nesta verdade, porque não tomamos a resolução de nos afastarmos de todo o perigo e de tomar todas as providências para nos assegurarmos uma boa morte? Nenhuma cautela será demasiada para nos assegurarmos a vida eterna! Lembremo-nos de que os dias da nossa vida são outras tantas graças que Deus nos concede para o ajuste das contas, antes que venha o momento terrível.

I. Considera que a morte é o momento do qual depende a eternidade. Já está o homem nos extremos da vida e, portanto, próximo a uma das duas eternidades. A sua sorte depende do último suspiro, depois do qual, no mesmo instante, a alma ou está salva ou condenada para sempre. Ó momento, ó suspiro, de que depende uma eternidade, ou de glória ou de tormentos; uma eternidade, ou sempre feliz ou sempre desgraçada; ou de prazeres, ou de angústias; uma eternidade de todo o bem ou de todo o mal; uma eternidade no paraíso ou no inferno. — Numa palavra, se naquele momento te salvas, nada mais terás a sofrer; estarás sempre contente e feliz. Se, ao contrário, erras o passo e te condenas, viverás sempre aflito e desesperado, enquanto Deus for Deus. Na morte conhecerás o que quer dizer paraíso, inferno, pecado, Deus ofendido, lei de Deus desprezada, pecados calados na confissão, restituição omitida.

Desgraçado de mim! Dirá então o moribundo, daqui há poucos instantes tenho de comparecer à presença de Deus! Qual será a sentença que vai ser pronunciada sobre mim? Para onde irei? Para o paraíso ou para o inferno? Irei gozar entre os anjos ou arder entre os condenados? Dentro em pouco, ai de mim! O saberei. Onde chegar no primeiro momento, ali ficarei sempre. Ah! Dentro de poucas horas, de poucos instantes, que será de mim? Que será de mim se não reparo aquele escândalo? Se não restituo tal objeto, aquela fama? Se não perdoo de coração ao meu inimigo? Se não me confesso bem? — Então detestarás mil vezes o dia em que pecaste; aquele deleite, aquela vingança que tomaste. Porém, será tarde e sem fruto, porque só o farás por temor do castigo e não por amor de Deus.

— Ah Senhor! Eis que desde este momento me converto a Vós, não quero esperar até a hora da morte; desde hoje eu Vos amo, Vos abraço e abraçado convosco quero morrer.

II. Meu irmão, nós cremos ou não cremos. Se cremos que há uma eternidade, que se tem de morrer, e que se morre uma só vez, de sorte que, se então errarmos, o erro será eterno, sem esperança de o podermos remediar, porque não tomamos a resolução de nos afastar de todo o perigo de perdição e de tomar todas as providências para nos assegurar uma boa morte? Nenhuma cautela será demasiada para nos garantir a vida eterna. Os dias da nossa vida são outras tantas graças que Deus nos concede a fim de ajustarmos as nossas contas para a hora da morte. Apressemo-nos, pois não há tempo a perder.

Eis-me aqui, meu Deus; dizei-me o que tenho de fazer para me salvar; estou pronto a fazer tudo. Eu Vos virei as costas, mas estou sumamente arrependido, e quisera morrer de dor. Senhor, perdoai-me, e não permitais que ainda me separe de Vós. Se jamais houvesse de me suceder tamanha desgraça, fazei-me antes morrer nesta hora, da morte mais dura que quiserdes. Aceito-a e Vo-la peço. Mas livrai-me do castigo de me ver privado da vossa graça. Amo-Vos, † Jesus, meu Deus, amo-Vos sobre todas as coisas, de todo o meu coração, e protesto que quero morrer fazendo um ato perfeito de amor, para assim continuar a amar-Vos eternamente no paraíso.

Santíssima Virgem e minha Mãe Maria, não me abandoneis nessa hora. Vinde então receber a minha alma e apresentá-la ao vosso Filho. Desde agora Vos espero e quero morrer debaixo de vosso manto, abraçando os vossos pés e dizendo: † Jesus, José e Maria, expire a minha alma em paz na vossa companhia (1).

Referências:
(1) Indulgência de 100 dias cada vez

 Quinta-feira da sexta semana depois da Epifania

Amor de Deus em fazer-se homem

Verbum caro factum est, et habitavit in nobis – “O Verbo se fez carne, e habitou entre nós” (Jo 1, 14)

Sumário. Que se havia de dizer, se um príncipe, por compaixão de um verme morto, quisesse tornar-se verme, e fazendo um banho de seu sangue, morresse para restituir o verme à vida? Mais porém do que isso fez por nós o Verbo Eterno, que, sendo Deus, quis fazer-se homem como nós e morrer por nós, a fim de nos merecer a vida da graça divina que tínhamos perdido. Apesar disso, quão poucos são os que se Lhe mostram gratos! Do número destes poucos sejamos também nós.

I. Consideremos o amor imenso que Deus nos mostrou fazendo-se homem, para nos adquirir a salvação eterna. Adão, nosso primeiro pai, peca, e por se ter rebelado contra Deus, é expulso do paraíso e condenado, com todos os seus descendentes, à morte eterna. Eis, porém, que o Filho de Deus, vendo o homem perdido e querendo livrá-lo da morte, se oferece a tomar a natureza humana e morrer justiçado sobre uma cruz. Mas — assim se me afigura que Lhe dissesse então o Pai — mas, meu Filho, reflete que na terra terás de levar uma vida humilde e penosa. Deverás nascer numa gruta fria e serás posto numa manjedoura. Ainda criança, terás de fugir par ao Egito a fim de te livrares das mãos de Herodes. De volta do Egito terás de viver numa oficina como humilde aprendiz, pobre e desprezado. Finalmente, perderás a vida sobre uma cruz, à força de dores, coberto de opróbrios e abandonado de todos. — Meu Pai, responde o Filho, não importa, aceito tudo, com tanto que o homem seja salvo.

Que se havia de dizer, se jamais um príncipe, por compaixão de um verme morto, quisesse fazer-se verme, e fazendo um banho de seu sangue, morresse a fim de restituir a vida ao verme? — Pois, mais do que isso fez por nós o Verbo Eterno, que, sendo Deus, quis fazer-se verme como nós e morrer por nós, a fim de nos fazer recuperar a vida da divina graça que tínhamos perdido. — Vendo que os muitos dons a nós concedidos não bastaram para Lhe granjear o nosso amor, que fez? Ele se fez homem e se deu todo a nós.

Verbum caro factum est, et tradidit semetipsum pro nobis — “O Verbo se fez carne, e se entregou a si mesmo por nós”

O homem, diz São Fulgêncio, afastou-se de Deus, porque o desprezou; mas Deus, pelo amor que tem ao homem, desceu do céu para procurá-lo. E para que desceu? Para que o homem conhecesse quanto Deus o amava, e assim se resolvesse a amá-Lo ao menos por gratidão. Os irracionais que se chegam a nós, se fazem amar; e porque somos tão ingratos para com Deus que do céu baixou à terra, para se fazer amar?

II. Quando certo dia um sacerdote dizia esta palavra da Missa: Et Verbum caro factum est — “E o Verbo se fez carne”, um dos assistentes deixou de fazer ato de reverência, pelo que o demônio lhe deu uma forte bofetada, dizendo:

“Ah ingrato! Se Deus tivera feito por mim o que fez por ti, estaria continuamente com o rosto em terra para lhe dar graças”

Ó grande Filho de Deus, Vós Vos fizestes homem para Vos fazer amar pelos homens; mas qual é o amor que os homens Vos têm? Vós sacrificastes o vosso sangue e a vossa vida pela salvação das nossas almas: porque é que Vos somos tão pouco reconhecidos, que, em vez de Vos amar, Vos desprezamos com tamanha ingratidão? — E eu, Senhor, quiçá mais do que os outros, Vos ofendi assim. A vossa Paixão é a minha esperança. Suplico-Vos pelo amor que Vos fez tomar a natureza humana e morrer por mim sobre a cruz, que me perdoeis todas as ofensas que Vos fiz. Amo-Vos, ó Verbo encarnado, amo-Vos, ó Bondade infinita. † Jesus, meu Deus, amo-Vos sobre todas as coisas. Arrependo-me de todos os desgostos que Vos causei, e quisera morrer de dor. Ó meu Jesus, dai-me o vosso amor, não permitais que ainda viva ingrato ao afeto que me haveis mostrado. Quero amar-Vos sempre. Dai-me a santa perseverança.

— Ó Maria, Mãe de Deus e minha Mãe, alcançai-me do vosso Filho a graça de amá-Lo sempre até à morte.

 Sexta-feira da sexta semana depois da Epifania

Amor de Deus em fazer-se criança

Parvulus natus est nobis, et filius datus est nobis – “Nasceu-nos uma criança, e foi-nos dado um filho” (Is 9, 6)

Sumário. Querendo o Filho de Deus fazer-se homem, podia aparecer no mundo como homem perfeito, assim como foi criado Adão. Como, porém, as crianças atraem mais facilmente o amor dos que as veem, Jesus Cristo quis aparecer na terra como criança, e como a criança mais pobre e humilde que jamais tenha nascido. Como é então possível, ó meu Jesus, que sejam tão poucos os que Vos amam? Do número destes poucos eu também quero ser. Sim, ó Bondade infinita, amo-Vos de todo o coração e sobre todas as coisas.

I. Querendo o Filho de Deus fazer-se homem por nosso amor, podia fazer sua entrada no mundo na idade de homem já perfeito, assim como foi criado Adão. Como, porém, as crianças soem atrair mais facilmente o amor dos que as veem, quis Ele aparecer na terra como criança, e como a criança mais pobre e humilde que jamais tenha nascido. “É assim que quis nascer nosso Deus”, escreve São Pedro Crisólogo, “porque quis ser amado”. Já o profeta Isaías predissera que o Filho de Deus devia nascer criança e dar-se assim todo inteiro a nós, pelo amor que nos tinha:

Parvulus natus est nobis, et filius datus est nobis (1) — “Nasceu-nos uma criança, e nos foi dado um filho”

Ah, meu Jesus, meu supremo e verdadeiro Deus! Quem Vos forçou a deixar o céu e a nascer numa gruta, a não ser o amor que tendes aos homens? Quem Vos obrigou a deixar o seio de vosso Pai e ser deitado numa manjedoura? Quem Vos fez deixar o vosso reino acima das estrelas, para serdes colocado sobre a palha? Quem Vos constrangeu a deixar os coros dos anjos e estar entre dois animais? Vós abrasais os serafins no santo fogo do amor, e estais tremendo de frio nessa gruta. Vós dais o movimento aos céus e ao sol, e agora, para Vos mover, haveis mister que alguém Vos tome nos braços. Vós dais alimento aos homens e aos animais, e estais precisando de um pouco de leite para sustentar a vossa vida. Vós sois a alegria do céu, e ouço que estais chorando e gemendo. Dizei-me, quem é que Vos reduziu a tão extrema miséria? “Quis hoc fecit? Fecit amor”, diz São Bernardo, – Fê-lo o amor que tendes aos homens.

II. Ó doce Menino Jesus, dizei-me, que viestes fazer sobre a terra? Dizei-me, que vindes aqui buscar? Ah! Já Vos entendo: viestes morrer por mim, para me livrar do inferno. Viestes buscar-me, a ovelha perdida, para que no futuro nunca mais fuja de Vós, e Vos ame. Ó meu Jesus, meu tesouro, minha vida, meu amor, meu tudo, se não Vos amo, a quem hei de amar? Onde posso achar um pai, um amigo, um esposo mais amável que Vós, e que mais do que Vós me queira bem? Amo-Vos, meu Deus, amo-Vos, meu único Bem. — Lastimo ter vivido tantos anos para o mundo, não somente sem Vos amar, mas ofendendo-Vos e desprezando-Vos. Perdoai-me, ó meu amado Redentor, já que me arrependo de Vos ter tratado assim, e me arrependo de toda a minha alma. Perdoai-me e dai-me a graça de não me separar mais de Vós, e de Vos amar sempre no tempo de vida que ainda me resta. Meu Amor, a Vós me consagro todo; aceitai-me e não me rejeiteis como tinha merecido.

— Maria, vós sois a minha advogada; com as vossas súplicas obtendes de vosso Filho tudo o que pedirdes: pedi-Lhe que me perdoe e me conceda a santa perseverança até à morte.

Referências:
(1) Is 9, 6

 Sábado da sexta semana depois da Epifania

Vantagens das Congregações de Maria Santíssima

Ingredere tu et omnis domus tua in arcam – “Entra na arca tu e toda a tua casa” (Gn 7, 1)

Sumário. As Congregações Marianas são como outras tantas arcas de Noé, onde os seculares acham a salvação no naufrágio comum. Não somente por causa da proteção especial com que Maria cuida dos seus congregados, senão também por causa dos meios de salvação que nelas se encontram. Se quiseres, pois, o mais possível assegurar a salvação de tua alma, deixa-te alistar em alguma destas Congregações. Lembra-te, porém, que para seres congregado, não é bastante que dês teu nome, mister é que guardes também as regras.

I. As Congregações, especialmente as de Nossa Senhora, são como tantas arcas de Noé, em que acham refúgio os pobres seculares no dilúvio das tentações e dos pecados que inundam o mundo. Regularmente falando, encontram-se mais pecados num homem que não frequenta a Congregação do que em vinte que a frequentam. Sim, porque nela adquirem os congregados muitas defesas contra o inferno e praticam, para conservar-se na divina graça, diversos meios, de que fora dela os seculares dificilmente usam.

Em primeiro lugar, um dos meios para salvar-se é pensar nas máximas eternas, como diz o Espírito Santo (1); e muitos se perdem porque não meditam nelas. Ora, aqueles que vão à Congregação, frequentemente pensam nelas em tantas meditações, leituras e sermões que ali se fazem:

Oves meae vocem meam audiunt (2) — “As minhas ovelhas ouvem a minha voz”

— Em segundo lugar, para salvar-se é preciso recomendar-se a Deus: Pedi e recebereis (3). Na Congregação, os irmãos fazem isto continuamente, e Deus os atende mais, pois que Ele mesmo disse que muito voluntariamente concede as suas graças quando as orações são feitas em comum (4); pela razão, como diz Santo Ambrósio, que as orações, de muito fracas cada uma por si, se tornam fortes quando unidas.

— Em terceiro lugar, na Congregação, tanto em virtude das regras como dos exemplos dos outros irmãos, se fazem muitos exercícios de mortificações, de humildade, de caridade para com os irmãos enfermos e pobres. O que mais é, nela se frequentam mais facilmente os sacramentos, que são meios eficacíssimos para a perseverança na divina graça, como declarou o Concílio de Trento (5).

— Finalmente, todos sabem quanto aproveita, para salvar-se, o servir a Mãe de Deus; e que fazem os irmãos senão servi-la na Congregação? Ali se consagram desde o princípio ao serviço dela, elegendo-a de modo especial por sua Senhora e Mãe. Alistam-se no livro dos filhos de Maria: portanto, assim como eles são servos e filhos distintos da Virgem, assim como esta os trata com distinção e protege-os na vida e na morte. De modo que um congregado de Maria pode dizer que com a Congregação recebeu todos os bens: Venerunt mihi omnia bona pariter cum illa (6).

II. Tinha razão São Francisco de Sales quando exortava calorosamente os seculares a entrarem nas Congregações. Que não fez igualmente São Carlos Borromeu para estabelecer e multiplicar as Congregações Marianas? E nos seus Sínodos adverte aos confessores que façam nelas entrar os seus penitentes. — Imagina, pois, leitor meu, que o Senhor te diz o que disse a Noé:

Ingredere tu et omnis domus tua in arcam — “Entra na arca tu e toda a tua casa”

Se quiseres salvar-te, entra tu e toda a tua família nesta arca salutar da Congregação de Maria.

Não te contentes, porém, com a inscrição de teu nome no registro, o que pouco ou nada adianta. Guarda também com exatidão as regras e atende sobretudo a duas cosias: Primeira, ao fim da Congregação, na qual não deves entrar por outro motivo senão para servir a Deus e sua santa Mãe e salvar a própria alma. Segunda, a não perder a Congregação nos dias marcados, por negócios do mundo, pois que ali deves ir para tratar do negócio mais importante que tens neste mundo, que é a salvação eterna. Procura também conduzir quantos puderes à Congregação e especialmente procura fazer voltar a ela os irmãos que a tenham deixado. Oh, com que terríveis castigos o Senhor tem punido àqueles que abandonaram a Congregação de Nossa Senhora! Ao contrário, os Congregados perseverantes são por Maria providos de bens temporais e espirituais: Omnes domestici eius vestiti sunt duplicibus (7).

Ó Virgem bendita e imaculada, nossa Rainha e Mãe, refúgio e consolação de todos os desgraçados, prostrado ante o vosso trono com toda a minha família, vos escolho por minha Soberana, minha Mãe, e Advogada junto de Deus. Consagro-me para sempre ao vosso serviço, com todos os que me pertencem; e peço-vos, ó Mãe de Deus, que nos recebais no número dos vossos servos, tomando-nos sob a vossa proteção, socorrendo-nos durante a nossa vida e mais ainda no momento da nossa morte.

Ó Mãe de misericórdia, eu vos constituo Senhora e Governadora de toda a minha casa, dos meus parentes, dos meus interesses e de todos os meus negócios. Não vos negueis a tomar cuidado deles; de tudo disponde segundo o vosso agrado. Abençoai-me, pois, com toda a minha família, e não permitais que algum de nós ofenda no futuro a vosso divino Filho. Defendei-nos nas tentações, livrai-nos dos perigos, provede às nossas necessidades, aconselhai-nos nas dúvidas, consolai-nos nas aflições e enfermidades, e principalmente nas angústias da morte. Não permitais que o demônio se glorie jamais de nos ter sob a sua escravidão, já que vos somos consagrados, mas fazei com que vamos ao céu para vos agradecer e todos juntos convosco louvar e amar a nosso Redentor Jesus em toda a eternidade. Amém. (8)

Referências:
(1) Eclo 7, 40
(2) Jo 10, 16
(3) Jo 16, 24
(4) Mt 18, 19
(5) Sess. 13, c. 2
(6) Sb 7, 11
(7) Pr 31, 21
(8) Onde não existe uma Congregação Mariana com exercícios comuns, procurem os fiéis ao menos entrar em alguma Confraria de Nossa Senhora, como sejam as do Carmo, da Imaculada Conceição, de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, enriquecidas com muitas indulgências plenárias e parciais. O Papa Leão XIII recomendou particularmente a Ordem Terceira de São Francisco.
7ª parte

 Semana da Septuagésima

Inicia a Semana da Septuagésima 3 semanas antes do Primeiro Domingo da Quaresma.

Domingo: A parábola dos operários e a recompensa divina

Segunda-feira: Para ser santo é preciso desejá-lo muito

Terça-feira: Comemoração da agonia e oração de Jesus no Horto

Quarta-feira: O pecador não quer obedecer a Deus

Quinta-feira: A santa Missa dá a Deus uma honra infinita

Sexta-feira: Coração de Jesus, aflito pelo pecado de escândalo

Sábado: Da gratidão para com as dores de Maria Santíssima

 Domingo da Septuagésima

A parábola dos operários e a recompensa divina

Voca operarios et redde illis mercedem, incipiens a novissimis usque ad primus – “Chama os operários e paga-lhes o jornal, a começar dos últimos até os primeiros” (Mt 20, 8)

Sumário. A vinha do Senhor são as nossas almas; e Jesus Cristo, que é o grande Pai de família, nos chama em qualquer hora do dia e da maneira mais variada, para as cultivarmos. Irmão meu, examina-te sobre como até agora respondeste à voz de Deus. Se achares que foste negligente, recupera os anos perdidos, trabalhando com zelo dobrado, pensando que Deus mede a recompensa de seus servos, não tanto pelo tempo durante o qual, mas pelo modo como foi servido.

I. “O reino dos Céus” diz Jesus Cristo, “é semelhante a um pai de família que ao romper da manhã saiu a contratar operários para a sua vinha. E, feito com eles o ajuste de um dinheiro por dia, mandou-os para a sua vinha. E, saindo perto da hora terceira, viu que estavam outros na praça ociosos, e disse-lhes: Ide vós também para a minha vinha, e dar-vos-ei o que for justo. E eles foram. Saiu novamente perto da sexta e da nona hora, e fez o mesmo. E quase à undécima hora saiu ainda e achou outros que lá estavam, e lhes disse: Porque estais aqui todo o dia ociosos? Eles responderam: Porque ninguém nos assalariou. Ele lhes disse: Ide vós também para a minha vinha: Ite et vos in vineam meam”.

Consideremos a significação desta parábola. A vinha do Senhor são as nossas almas. Jesus Cristo, o pai de família, depois de as ter resgatado da escravidão do demônio com o preço de seu divino sangue, no-las deu com o fim de as cultivarmos, por meio das boas obras, para poderem um dia ser admitidas na glória eterna, à qual nos convida continuamente. — Vocati nos undique Deus, diz São Gregório. O Senhor nos chama da maneira mais variada; chama-nos por meio dos anjos da guarda e por meio dos seus ministros, e chama-nos ainda hoje pela presente meditação.

Coisa estranha, porém! Deus nada tem poupado e nada poupa para a salvação das nossas almas, e os cristãos, que creem tudo isso pela fé, vivem como se não cressem. Mas põem toda a sua atenção nos negócios da terra, e na alma nem sequer pensam, como se o negócio da salvação da alma não fosse o mais importante de todos. Ó infelizes! Bem reconhecerão a sua loucura quando não houver mais tempo para a remediar. Perdida a alma uma vez, perdeu-se para sempre.

II. No fim da tarde, assim continua o Evangelho, “o senhor da vinha disse ao seu mordomo: Chama os operários, e paga-lhes o jornal, a começar dos últimos até os primeiros”. Assim se fez, sendo preferidos os operários que vieram em último lugar, aos que vieram primeiro e trabalharam mais tempo. — Com isso o Senhor nos quer dar a entender que na recompensa a dar a seus servos não olha para o tempo ou anos, mas tão somente para a diligência com que o serviram. Daí é que frequentes vezes os que foram os primeiros no serviço de Deus, ficam sendo os últimos, e que os últimos ficam sendo os primeiros.

Animemo-nos, meu irmão, e se no passado temos sido negligentes no cultivo da vinha que o Senhor nos confiou, redimamos o tempo perdido servindo a Deus com dobrado fervor: Tempus redimentes, exhorta-nos São Paulo, quoniam dies mali sunt — “Recobrando o tempo, porque os dias são maus” (1). Imitemos este Apóstolo, que, como observa São Jerônimo, embora fosse o último no apostolado, foi contudo o primeiro em merecimento, porque trabalhou mais do que os outros.

Ó meu Redentor, não quero mais perder o tempo que me concedeis em vossa misericórdia. Quero empregá-lo em chorar as ofensas que Vos fiz, a servir-Vos com fervor dobrado, a fim de Vos desagravar de minhas ingratidões. Jesus meu, perdoai-me, já que estou resolvido a Vos amar de hoje em diante sobre todas as coisas, e a perder antes tudo, mesmo a vida, do que a vossa amizade. Ajudai-me, Senhor; para que esta minha resolução não tenha a sorte dos meus propósitos anteriores, que não foram senão perfeitas traições. Deixai-me antes morrer, do que tornar a ofender-Vos e perder o vosso amor.

— E Vós, ó Eterno pai, “ouvi clemente as minhas preces, a fim de que, sendo justamente punido por meus pecados, deles me livreis piedoso, para glória do vosso nome” (2).

Fazei-o pelo amor de Jesus Cristo, vosso Filho, e de minha amada mãe Maria.

Referências:
(1) Ef 5, 16
(2) Or. Dom. curr.

 Segunda-feira da Septuagésima

Para ser santo é preciso desejá-lo muito

Beati qui esuriunt et sitiunt iustitiam; quoniam ipsi saturabuntur – “Bem-aventurados os que têm fome e se de justiça; porque eles serão fartos” (Mt 5, 6)

Sumário. Quem quiser ser santo, deve desprender-se das criaturas, vencer as paixões, vencer-se a si próprio, amar as cruzes e sofrer muito. Ora, o santo desejo, ao passo que nos dá força para praticar tudo isso, torna-nos a pena mais leve. Pode-se dizer que já é quase vencedor quem possui um grande desejo de vencer. Irmão meu, lança um olhar sobre a tua alma, vê se tens grande desejo da perfeição, e roga a Jesus e Maria que o façam sempre mais crescer em ti.

I. Nenhum santo alcançou a perfeição sem um grande desejo de chegar à santidade. Assim como os pássaros precisam de asas para voar, assim às almas são necessários os santos desejos para caminharem à perfeição. Quem quer ser santo deve desprender-se das criaturas, vencer as paixões, vencer-se a si próprio, amar as cruzes, e para fazer tudo isso, requer-se grande força e é mister sofrer muito. Ora, o que faz o santo desejo? Responde São Lourenço Justiniano: “Subministra forças e faz julgar a pena mais leve.” Razão porque o mesmo Santo acrescenta que já é quase vencedor quem possui grande desejo de vencer: Magna victoriae pars est vincendi desiderium. Quem pretende subir ao cume de um alto monte, nunca chegará ali sem um grande desejo de chegar. Este dar-lhe-á coragem e força para aguentar as fadigas da subida; sem ele ficará prostrado na encosta desgostoso e desanimado.

São Bernardo afirma que cada um progredirá na perfeição à proporção do desejo que tiver. E Santa Teresa diz que Deus ama as almas generosas que têm grandes desejos. Por isso a Santa dava a todos esta exortação: “Os nossos pensamentos devem ser grandes, porque deles virá o nosso bem. Não convém abaixar os desejos, mas confiar em Deus, que, esforçando-nos, pouco a pouco poderemos chegar até aonde, com a divina graça, chegaram os santos.” É assim que os santos em breve tempo atingiram um alto grau de perfeição e fizeram grandes coisas para Deus: Consummatus in brevi, explevit tempora multa (1) – “Tendo vivido pouco tempo, encheu a carreira de uma larga vida”. Assim São Luiz de Gonzaga chegou em poucos anos a tão alto grau de santidade, que Santa Maria Magdalena de Pazzi, vendo-o num êxtase, no paraíso, disse se lhe afigurava de certo modo que não havia no céu outro santo que gozasse de mais glória do que São Luiz. Ao mesmo tempo a Santa compreendeu que São Luiz subiu tão alto pelo grande desejo de amar a Deus tanto como o merece, e que o santo jovem, vendo que nunca poderia chegar a este ponto, sofreu na terra um martírio de amor.

II. São Bernardo, sendo já religioso, para afervorar-se, costumava perguntar a si mesmo: Bernardo, para que vieste? – Bernarde, ad quid venisti? A mesma pergunta te dirijo a ti: Que vieste fazer na casa de Deus? Para que deixaste o mundo? Para te fazeres santo?… E agora que fazes? Para que perdes o tempo? Dize-me: desejas fazer-te santo? Se não o desejas, é certo que nunca o serás. Se não tens este desejo, pede-o a Jesus Cristo, pede-o a Maria. E se o tens, reveste-te de coragem, diz o mesmo São Bernardo, porque muitos não se fazem santos por falta de coragem. Para que temeremos? De quem deveremos desconfiar? O mesmo Senhor que nos deu força para deixarmos o mundo, dar-nos-á também força para abraçarmos uma vida santa.

Eis-me aqui, meu Deus, eis-me aqui pronto para executar quanto de mim quiserdes. Domine, quid me vis facere? (2) – “Senhor, que quereis que eu faça? Dizei-me, Senhor, o que de mim desejais, que em tudo Vos quero obedecer. Sinto ter perdido tanto tempo em que podia agradar-Vos e não o fiz. Agradeço-Vos que ainda me dais tempo para fazê-lo. Não o quero mais perder. Quero e desejo ser santo; não para receber de Vós mais glória, ou gozar mais: quero ser santo para mais Vos amar e dar-Vos mais gosto nesta vida e na outra. Fazei, Senhor, que eu Vos ame e Vos compraza quanto Vós o desejais. Eis tudo o que Vos peço, ó meu Deus: quero amar-Vos, quero amar-Vos, e para Vos amar ofereço-me a sofrer qualquer desgosto, qualquer enfermidade, qualquer pena.

Senhor meu, aumentai sempre em mim este desejo e dai-me a graça de o por em obra, por mim mesmo nada posso; mas ajudado por Vós posso tudo. Ó Eterno Padre, por amor de Jesus Cristo, atendei-me. Jesus meu, pelos méritos da vossa Paixão, socorrei-me. Maria, minha esperança, por amor de Jesus, protegei-me.

Referências:
(1) Sb 4, 13
(2) At 9, 6

 Terça-feira da Septuagésima

Comemoração da agonia e oração de Jesus no Horto

Et factus in agonia prolixius orabat – “E, posto em agonia, orava (Jesus) com maior instância” (Lc 22, 43)

Sumário. Imaginemos ver a Jesus, que, pela previsão dos tormentos e ignomínias que o esperavam, e muito mais da ingratidão com que os homens lhe haviam de pagar, cai em agonia no Horto e sua sangue; mas nem assim deixa de rogar a seu eterno Pai. É este o exemplo que devemos seguir, quando nos achamos em aflição e desolação. Unamos então as nossas penas às de Jesus; mas não deixemos de orar e de repetir com Ele: Pai, seja feita a vossa vontade.

I. O nosso amante Redentor, aproximando-se a hora da sua morte, dirigiu-se para o horto de Getsêmani, onde, por si mesmo, deu princípio à sua amargosíssima Paixão, permitindo que o temor, o tédio e a tristeza viessem atormentá-Lo. Coepit pavere et taedere… contristari et moestus esse (1). Mas como! Não era o mesmo Jesus que tanto tinha desejado sofrer e morrer pelos homens? E como teme agora tanto as penas e a morte? Porque está triste e aflito até ao ponto que a tristeza parece tirar-lhe a vida? (2) Ah! Bem desejava Jesus morrer por nós; mas, para que não pensássemos que por virtude da sua divindade morria sem sofrer, suplicou a seu Pai que o livrasse, assim nos quis fazer conhecer que morria de morte tão angustiosa, que grandemente o aterrava.

Porém, o que propriamente afligiu o Coração de Jesus no horto, não foi tanto a previsão dos tormentos que teria de sofrer, como a previsão de nossos pecados. Jesus tinha vindo ao mundo para tirar os pecados. Mas vendo que apesar de sua Paixão se cometeriam no mundo tantos crimes, sofreu uma dor tão intensa, que antes de morrer o reduziu à agonia e o fez suar sangue vivo em tanta abundância, que chegou a ensopar a terra: Et factus est sudor eius sicut guttae sanguinis decurrentis in terram (3). Sim, porque Jesus viu então diante de si todos os pecados que os homens tinham de cometer depois da sua morte, todos os ódios, desonestidades, furtos, blasfêmias e sacrilégios. — Jesus então disse: É assim, ó homens, que recompensais o meu amor? Ah, se eu vos visse gratos para comigo, como iria contente morrer por vós. Mas, ver, depois de tantos sofrimentos meus, tantos pecados, depois de tanto amor meu, tamanha ingratidão, eis o que me faz suar sangue.

II. No meio de sua penosíssima agonia, que faz o Senhor? Dobra os joelhos, prostra-se com o rosto no chão, e roga a seu divino Pai, dizendo: Pater, si possibile est, transeat a me cálix iste; verumtamen non sicut ego volo, sed sicut tu — “Pai meu, se é possível, passe de mim este cálice; todavia não seja como eu quero, mas sim como tu” (4). Como se dissesse: Meu Pai, Vós vedes que os tomentos que se me chegam a sofrer são horríveis; sabeis como o horror natural me impele a fugir deles e que por isso é grande a tristeza que me oprime. Vós sabeis tudo isso. Sendo, pois possível que, sem embargo do decreto de vossa justiça, passe de mim este cálice amargoso, sem que eu o beba, rogo-Vos que me atendais o pedido. Mas, de nenhum modo se faça o que eu quero, senão o que Vós quereis; porquanto em todas as coisas prefiro a vossa santíssima vontade à minha. — Ó oração sublime! Ó perfeitíssima resignação!

Eis aí o que nós também devemos fazer; pois que, como diz São Cipriano, Jesus quis, não somente com palavras, senão também com suas obras, ensinar-nos o verdadeiro modo de orar. Em nossas aflições e desolações, unamos a nossa pena com a do Coração de Jesus no horto e digamos com Ele:

Meu Pai, se é possível, passe de mim este cálice; faça-se, porém, não a minha vontade, senão a vossa. — Se apesar disso, se prolongar a desolação, conformemo-nos com a vontade divina, e longe de nos relaxarmos em nossas orações, prolonguemo-las à imitação de Jesus Cristo mesmo, que posto em agonia orou com mais instância: Factus in agonia, prolixius orabat.

É assim, ó Senhor, que proponho fazer; Vós, porém, dai-me a graça de Vos ser fiel. “Ó meu Jesus, Vós que no horto, com palavras e exemplo nos ensinastes a orar, para vencermos os perigos das tentações, concedei-me propício, que sempre aplicado à oração, mereça tirar dela fruto copioso.” (5) Fazei-o pelo amor de vossa e minha amada Mãe Maria.

Referências:
(1) Mc 14, 33. Mt 26, 37
(2) Mt 26, 38
(3) Lc 22, 44
(4) Mt 26, 39
(5) Or. Eccl.

 Quarta-feira da Septuagésima

O pecador não quer obedecer a Deus

A saeculo confregisti iugum meum, rupisti vincula mea, et dixisti: non serviam – “Quebraste desde o princípio o meu jugo, rompeste os meus laços, e disseste: não servirei” (Jr 2, 20)

Sumário. Grande Deus! Todas as criaturas obedecem a Deus, como a seu supremo Senhor; os céus, a terra, o mar, os elementos obedecem-lhe de pronto ao menor sinal. E o homem, mais amado e privilegiado de Deus do que todas essas criaturas, não quer obedecer-lhe, e cada vez que peca, diz por suas obras com inaudita temeridade a Deus: Senhor, não Vos quero servir ― Confregisti iugum meum, dixisti: non serviam. Irmão meu, é isso o que tu também fizeste, se tiveste a desgraça de pecar.

I. Grande Deus! Todas as criaturas obedecem a Deus como ao seu soberano Senhor; os céus, a terra, o mar, os elementos obedecem-lhe de pronto ao menor sinal. E o homem, mais amado e privilegiado de Deus do que todas essas criaturas, não lhe quer obedecer, e cada vez que peca, diz, por suas obras, com inaudita temeridade a Deus: Senhor, não Vos quero servir. Confregisti iugum meum, dixisti: non serviam ― “Quebraste o meu jugo e disseste: não servirei”.

O Senhor lhe diz: não te vingues, e o homem responde: quero vingar-me; ― não te aposses dos bens alheios: quero apossar-me deles; ― abstém-te desse prazer desonesto: não quero abster-me. O pecador fala a Deus do mesmo modo que Faraó, quando Moisés lhe levou da parte de Deus a ordem de restituir o seu povo à liberdade. Aquele temerário respondeu: Quem é esse Senhor, para que eu ouça a sua voz? Não conheço o Senhor (Ex. 5, 2). O pecador diz a mesma coisa: Senhor, não Vos conheço, quero fazer o que me agrada. Numa palavra, ultraja-o face a face, e volta-lhe as costas. No dizer de Santo Tomás, é isso exatamente o pecado mortal: o voltar as costas a Deus, o Bem incomutável. É disso também de que o Senhor se queixa: Tu reliquiesti me, dicit Dominus; retrorsum abiisti (III Re 12, 28). Foste ingrato, assim fala Deus, porque me abandonaste ao passo que eu nunca te teria abandonado: retrorsum abiisti, voltaste-me as costas.

Deus declarou que odeia o pecado; portanto não pode deixar de odiar igualmente a quem o comete. E o homem, quando peca, ousa declarar-se inimigo de Deus e resiste-lhe na face: Contra Omnipotentem roboratus est ― “ele se fez forte contra o Todo-poderoso”, diz Jó (Jó 15, 25). O mesmo santo varão acrescenta que levanta o colo: isto é o orgulho, e corre para insultar a Deus: arma-se com uma testa dura, isto é, com ignorância, e diz: Quid feci? Que é que fiz? Onde está o grande mal que fiz pecando? Deus é misericordioso; perdoa aos pecadores. Que injúria! que temeridade! que insensatez!

II. Irmão meu, se nós também no passado quebramos o jugo suave do Senhor, e recusando-lhe a obediência tornamo-nos escravos do demônio, peçamos agora, humilhados e contritos, o perdão de nossos pecados; esforcemo-nos, com o nosso arrependimento, e com os nossos obséquios, em reparar um pouco as muitas ofensas que, particularmente nestes dias de carnaval, são feitas a nosso Pai celestial.

Eis aqui a vossos pés, meu Deus, o rebelde, o temerário, que tantas vezes teve a audácia de Vos injuriar no rosto e de Vos voltar as costas, mas que agora Vos pede misericórdia. Vós dissestes: Clama ad me, et axaudiam te (Jer 33, 3) ― “Clama a mim e eu te atenderei”. Um inferno ainda é pouco para mim: confesso-o; mas sabeis que tenho mais dor por Vos haver ofendido, ó Bondade infinita, do que se houvesse perdido todos os meus bens e a vida. Ah! Meu Senhor; perdoai-me e não permitais que Vos torne a ofender. Vós por mim esperastes, a fim de que bendiga para sempre a vossa misericórdia, e Vos ame. Sim, bendigo-Vos, amo-Vos e espero pelos merecimentos de Jesus Cristo, nunca mais separar-me do vosso amor. Foi o vosso amor que me livrou do inferno, esse mesmo amor deve livrar-me do pecado no futuro.

Agradeço-Vos, meu Senhor, estas luzes e o desejo que me inspirais de sempre Vos amar. Peço-Vos que tomeis plena posse de mim, de minha alma, de meu corpo, das minhas faculdades, dos meus sentidos, de minha vontade e da minha liberdade: Tuus sum ego, salvum me fac (Sl 118, 94) ― “Eu sou vosso; salvai-me”. Vós que sois o único bem, o único amável, sede também o meu único amor. Dai-me fervor em Vos amar. Já Vos ofendi muito; portanto não me posso contentar com amar-Vos simplesmente; quero amar-Vos muito para compensar as injúrias que Vos fiz. De Vós espero esta graça porque sois todo-poderoso; espero-a também, ó Maria, das vossas orações, que são todo-poderosas para com Deus.

 Quinta-feira da Septuagésima

A santa Missa dá a Deus uma honra infinita

Laudate eum secundum multitudinem magnitudinis eius – “Louvai (a Deus) segundo a multidão da sua grandeza” (Sl 150, 2)

Sumário. Todas as honras que foram tributadas a Deus, e Lhe serão ainda tributadas por todas as criaturas, sem excetuar a divina Mãe, nunca poderão igualar a honra que Lhe é dado por uma única Missa, porquanto nesta é sacrificada a Deus uma vítima de valor infinito, que Lhe dá uma honra infinita. Que honra, pois, para nós, que se nos permite assistirmos cada dia e até mais de uma vez a este divino sacrifício! Ouçamos quantas Missas possamos, particularmente neste tempo do carnaval, para desagravar o Senhor dos ultrajes que recebe.

I. Nunca um sacerdote celebrará a santa Missa com a necessária devoção, nem nunca o cristão lhe assistirá com o devido respeito, se não tiverem de tamanho sacrifício a estimação que merece. “É certo”, diz o Concílio de Trento, “que o homem não faz ação mais sublime e mais santa do que a celebração da Missa” (1); mais, Deus mesmo não pode fazer que se cometa no mundo ação mais sublime do que esta. — A Missa não é somente uma recordação do sacrifício da Cruz, senão o mesmo sacrifício, porque em ambos o oferente é o mesmo, a mesma é a vítima, a saber: o Verbo encarnado. A diferença está unicamente no modo de se oferecer; porquanto o sacrifício da Cruz foi feito com derramamento de sangue, e o sacrifício da Missa é incruento. No primeiro Jesus Cristo morreu verdadeiramente, no segundo morre de morte mística.

Por isso todos os sacrifícios antigos, apesar da grande glória que deram a Deus, não foram senão uma sombra e figura de nosso sacrifício do altar. Todas as honras que jamais têm dado e darão a Deus os anjos com os seus louvores, os homens com as suas boas obras, penitências e martírios, e mesmo a divina Mãe com a prática das mais sublimes virtudes, nunca chegaram nem poderão chegar a glorificar o Senhor tanto como uma só Missa. A razão é que todas as honras das criaturas são honras finitas, mas a glória que Deus recebe no sacrifício do altar, no qual se Lhe oferece uma vítima de valor infinito, é uma glória igualmente infinita. — Numa palavra, a Missa é uma ação pela qual se tributa a Deus a maior honra que Lhe pode ser tributada. Pela Missa cumprimos o nosso dever primário, sublime e essencial, o de louvarmos a Deus segundo a sua grandeza: Laudate eum secundum multitudinem magnitudinis eius.

II. Se tu, que fazes a presente meditação, tens a grande dita de ser padre, emprega toda a diligência para celebrar este divino sacrifício com a maior pureza e devoção possíveis. Lembra-te de que a maldição fulminada contra aqueles que exercem as funções sagradas negligentemente, diz exatamente respeito aos sacerdotes que celebram a Missa de modo irreverente: Maledictus homo, qui facit opus Domini fraudulenter (2) — “Maldito o que faz a obra de Deus com negligência”.

Se não és padre, esforça-te por ouvir ao menos cada dia devotamente a Missa, mesmo à custa de algum incômodo; especialmente nestes dias de carnaval, para desagravar Jesus dos ultrajes que Lhe são feitos. — Santa Margarida de Cortona desejava ter para amar e louvar a Deus tantos corações e tantas línguas, quantas são as estrelas dos céus, as folhas das árvores, as gotas de água do mar. Mas o Senhor dignou-se dizer-lhe: “Consola-te; se ouvires devotamente uma única Missa, tributar-me-ás toda a glória que possas desejar e infinitamente mais”

Meu Deus, adoro a vossa majestade e grandeza infinita; comprazo-me com as vossas infinitas perfeições e quisera honrar-Vos, tanto quanto mereceis. Que honra Vos posso tributar eu, miserável pecador digno de mil infernos? “Eterno Pai, ofereço-Vos o sacrifício que o vosso dileto Filho fez de si mesmo sobre a cruz, e agora renova sobre o altar. Eu Vo-lo ofereço em nome de todas as criaturas em união com as Missas que já foram celebradas e ainda serão celebradas em todo o mundo, para Vos adorar e louvar como mereceis; para agradecer os vossos inúmeros benefícios; para aplacar a vossa ira, excitada por tantos pecados nossos; e dar-Vos uma satisfação digna, para Vos suplicar por mim, pelo mundo universo e pelas almas do purgatório.” (3)

— Ó Maria, minha Mãe, em vós repousou o Deus que se sacrifica sobre os nossos altares, ajudai-me a ouvir sempre (e celebrar) a Missa com a devida devoção.

Referências:
(1) Sess. 22, Decr. de obser. in celebr. Missae
(2) Jer 48, 10
(3) Indulg. de 3 anos uma vez por dia

 Sexta-feira da Septuagésima

Coração de Jesus, aflito pelo pecado de escândalo

Videte ne contemnatis unum ex his pusillis – “Vede, que não desprezeis um só destes pequeninos” (Mt 18, 10)

Sumário. O Filho de Deus baixou do céu à terra por amor das almas, levou durante trinta e três anos uma vida de privações, e de trabalhos, e afinal chegou a derramar por elas o seu preciosíssimo sangue. Julgai, por estas razões, quão amargo é o desgosto que os escandalosos causam a Jesus Cristo; por Lhe roubarem e mesmo matarem tantas filhas tão diletas. Para não amargurarmos mais esse Coração amabilíssimo, guardemo-nos de dar mau exemplo ao nosso próximo, ainda que seja em coisas leves.

I. Uma das coisas que mais afligiram o Coração de Jesus, durante a sua vida terrestre, e que haviam de afligi-Lo ainda no céu, se ali houvesse tristeza, é o pecado de escândalo. Para compreender isso, devemos considerar quão cara é a Deus cada alma de nossos próximos. Criou-as Ele à sua imagem e semelhança (1), e amando-as desde a eternidade, criou-as para que fossem rainhas no paraíso, onde há de torná-las participantes de sua própria felicidade e dar-se-lhes a si mesmo em galardão: Ego ero merces tua magna nimis (2) — “Eu serei o teu galardão infinitamente grande”.

Depois, o que não tem feito, o que não tem padecido o Verbo encarnado por amor dessas almas, para remi-las da escravidão do demônio, na qual caíram pelo pecado? Chegou a nada menos do que a dar por elas o seu sangue e a sua vida. Se, em vez de uma só morte, seu Pai lhe tivera exigido mil; se, em vez de ficar três horas na cruz, tivera de ficar nela até o dia do juízo; se afinal tivera de sofrer para salvação de cada um, o que padeceu para salvação de todos os homens juntos, Jesus Cristo não teria hesitado em fazer tanto. Tão grande é o amor que lhe fazem perder tantas almas. — Julgai por aí quão amargo desgosto causam ao Coração de Jesus os escandalosos, que Lhe fazem perder tantas almas, roubam-Lhe e assassinam tantas filhas tão diletas. Diz São Bernardo, que a perseguição que o Senhor sofre da parte daqueles pérfidos algozes é mais cruel do que a que sofreu da parte dos que o crucificaram.

Tendo os filhos de Jacob vendido a José, apresentaram ao pai a túnica deste tingida no sangue de um cabrito, dizendo-lhe: Vide utrum tunica filii tui sit (3) — “Vê se é ou não a túnica do teu filho”. Do mesmo modo, nos podemos figurar que, quando uma pessoa peca, induzida ao pecado por um escandaloso, os demônios apresentam a Deus o vestido daquela pessoa tingida do sangue de Jesus Cristo, isto é, a graça perdida por aquela alma escandalizada. Se Deus pudesse chorar, choraria então mais amargamente do que Jacó, dizendo: Fera pessima devoravit eum — “Uma fera péssima a devorou”.

II. A fim de não afligirmos mais o Coração de Jesus, guardemo-nos, especialmente nestes dias, de darmos ao próximo qualquer escândalo ou mau exemplo, não somente em coisas graves, senão também nas leves. Abstenhamo-nos sobretudo e sempre de toda palavra que possa ofender a bela virtude, lembrando-nos que uma palavra indecente, muito embora dita de gracejo, pode ser causa de mil pecados. — Se no passado tivemos a desgraça de dar, de qualquer modo, ao próximo ocasião de pecado, saibamos que o Coração aflito de Jesus exige de nós uma rigorosa satisfação, reparando ao menos pelo bom exemplo o mal que fizemos.

Meu amabilíssimo Jesus, eu também sou um daqueles desgraçados cujo mau exemplo encheu de amargura o vosso divino Coração. Ah Senhor! Como pudestes sofrer tanto por mim, prevendo as injúrias que Vos havia de fazer? Mas já que me suportastes até este momento, e quereis a minha salvação, dai-me uma grande dor de meus pecados, uma dor que iguale à minha ingratidão.

Senhor, odeio e detesto sumamente os desgostos que Vos causei. Se no passado desprezei a vossa graça, agora estimo-a mais do que todos os reinos da terra. Amo-Vos, † Jesus, meu Deus, amo-Vos sobre todas as coisas, e de todo o meu coração. Não quero mais viver senão para Vos amar e fazer que os outros também Vos amem. Vós mesmo abrasai-me cada vez mais em vosso amor, lembrando-me sempre, quanto fizestes e padecestes por mim. — A mesma graça, peço a vós, ó Maria! Suplico-vos que ma alcanceis, pela dor que o vosso divino Filho sentiu e que vós mesma sentistes pela previsão dos escândalos do mundo.

Referências:
(1) Gn 1, 26
(2) Gn 15, 1
(3) Gn 37, 32
(3) Gn 37, 33

 Sábado da Septuagésima

Da gratidão para com as dores de Maria Santíssima

Honora patrem tuum: et gemitus matris tuae ne obliviscaris – “Honra a teu pai e não te esqueças dos gemidos de tua mãe” (Ecle 7, 29)

Sumário. Posto que a morte de Jesus Cristo fosse suficiente para remir uma infinidade de mundos, quis todavia a Santíssima Virgem, pelo amor que nos tem, cooperar para a nossa salvação, preferindo sofrer toda espécie de dores a ver nossas almas sem redenção e na antiga perdição. É nosso dever respondermos a tamanho amor da Rainha dos Mártires, ao menos pela compaixão de suas dores e pela imitação de seus exemplos.

I. São Boaventura, contemplando a divina Mãe ao pé da Cruz para assistir à morte de seu Filho, volve-se para ela e lhe diz: Senhora, porque quisestes vós também sacrificar-vos sobre o Calvário? Não bastava, por ventura, para nossa redenção um Deus crucificado, que quisésseis ser crucificada também vós sua Mãe? Non sufficiebat Filii passio, nisi crucifigeretur et Mater? — Ah certamente bastava a morte de Jesus para salvar o mundo e ainda infinitos mundos; mas, pelo amor que nos tem nossa boa Mãe quis também concorrer para a nossa salvação, pelos merecimentos de suas dores, que ofereceu por nós no Calvário.

Por isso diz o Bem-aventurado Alberto Magno, que, assim como somos obrigados a Jesus pela Paixão que quis sofrer por nosso amor, assim também somos obrigados a Maria pelo martírio, que na morte do Filho quis espontaneamente padecer pela nossa salvação. — Acrescento espontaneamente, porque, como revelou o Anjo a Santa Brígida, esta nossa tão piedosa e benigna Mãe antes quis sofrer todas as penas do que ver as almas privadas da redenção e deixadas na antiga miséria.

A bem dizer, foi este o único alívio de Maria, no meio de sua grande dor pela paixão do Filho: o ver com a sua morte remido o mundo perdido e reconciliados com Deus os homens seus inimigos. Mas, infelizmente, esse único alívio da Santíssima Virgem foi-lhe amargurado pela previsão que, se a morte de Jesus havia de ser para muitos a causa de ressurreição e de vida, para muitos outros seria por própria culpa causa de maior ruína e de morte eterna: Ecce positus est hic in ruinam et in resurrectionem multorum in Israel (2) — “Eis que este está posto para ruína e para ressurreição de muitos em Israel”.

II. Tão grande amor de Maria em unir ao sacrifício da vida do Filho o de seu próprio coração, bem merece a nossa gratidão; e a nossa gratidão consista em meditarmos e nos compadecermos das suas dores. Mas disto exatamente queixou-se ela com Santa Brígida: “Minha filha”, disse-lhe, “quando considero os cristãos que vivem no mundo, para ver se há quem se compadeça de mim e se lembre de minhas dores, acho bem poucos, ao passo que a maior parte deles se esquecem por completo. Por isso quero que tu ao menos delas te lembres e nelas medites muitas vezes, e compadecendo-te de mim, procures, quanto for possível, imitar a minha resignação em padecê-las: Vide dolorem meum, et imitare quantum potes et dole” — Meu irmão, imaginemos que a divina Mãe nos fala da mesma maneira, particularmente nestes dias do carnaval, em que os pecadores renovam tantas vezes a crucifixão de Jesus e por conseguinte também as dores de Maria.

Ó minha dolorosa Mãe, vós tanto chorastes o vosso filho, morto pela minha salvação; mas que me aproveitarão as vossas lágrimas, se eu me condeno? Pelos merecimentos, pois, das vossas dores, alcançai-me uma verdadeira dor dos meus pecados, uma verdadeira emenda de vida, com uma perpétua e tenra compaixão da Paixão de Jesus e das vossas dores. Se Jesus e vós, sendo tão inocentes, tanto tendes padecido por mim, alcançai-me que eu, réu do inferno, padeça também alguma coisa por vosso amor.

Finalmente, ó minha Mãe, pela aflição que experimentastes, vendo diante de vossos olhos os vosso Filho, entre tantas penas, inclinar a cabeça e expirar sobre a Cruz, vos suplico que me alcanceis uma boa morte. Ah, advogada dos pecadores, não deixeis de assistir à minha alma aflita e combatida, na grande passagem que terá de fazer para a eternidade. E porque é fácil ter eu então perdido a fala e a voz para invocar o vosso nome e o de Jesus, em que ponho todas as minhas esperanças, rogo desde agora a vosso Filho, vosso Esposo e a vós, que me socorrais naquele último momento, e digo: † Jesus, Maria e José, expire a minha alma em paz em vossa companhia (3).

Referências:
(1) Se entre a Epifania e a Septuagésima só houve três semanas, os devotos de Maria Santíssima poderão tomar hoje a meditação sobre Maria Santíssima modelo da esperança
(2) Lc 2, 34
(3) Indulg. de 100 dias, cada vez
8ª parte

 Semana da Sexagésima

Inicia a Semana da Sexagésima 2 semanas antes do Primeiro Domingo da Quaresma.

Domingo: A parábola do semeador e a palavra divina

Segunda-feira: O pecador aflige o Coração de Deus

Terça-feira: O pecado renova a Paixão de Jesus Cristo

Quarta-feira: Do número dos pecados

Quinta-feira: O Carnaval Santificado e as Divinas Beneficências

Sexta-feira: Amor de Jesus em querer satisfazer por nós

Sábado: Frutos da meditação das dores de Maria Santíssima

 Domingo da Sexagésima

A parábola do semeador e a palavra divina

Exiit qui seminat seminare semen suum – “Saiu o que semeia a semear a sua semente” (Lc 8, 5)

Sumário. Irmão meu, o Senhor semeia continuamente em tua alma a boa semente de sua palavra. Se não produzir o seu fruto, examina se por ventura há em ti algum dos impedimentos indicados no Evangelho. Examina sobretudo se há em ti apego às riquezas, às dignidades, aos prazeres, ou à outra criatura qualquer; pois que são estes os espinhos que não somente fazem perder o fruto da palavra de Deus, mas afinal muitas vezes impedem que Deus ainda fale à alma.

I. Refere São Lucas que, estando certo dia numerosa multidão de povo reunida ao redor de Jesus, este propôs a parábola do semeador, cuja semente caiu parte junto ao caminho, outra sobre pedregulho, outra entre espinhos, outra finalmente em terra boa. Perguntado depois pelos discípulos, o divino Redentor mesmo deu a seguinte interpretação:

“A semente”, disse, “é a palavra de Deus. Os que estão à borda do caminho, são aqueles que a ouvem, mas depois vem o diabo e tira a palavra do coração deles, para que não se salvem crendo. Quanto aos que estão sobre pedra, são os que recebem com gosto a palavra, quando a ouviram; mas eles não têm raízes, porque até certo ponto creem, e no tempo da tentação voltam atrás. A semente que caiu entre espinhos, estes são os que a ouviram, porém, indo por diante, ficam sufocados pelos cuidados e pelas riquezas e deleites desta vida, e não dão fruto: Suffocantur, et non referunt fructum”

Observa São Gregório que, sendo o Evangelho de hoje interpretado por Jesus mesmo, não precisa de outra explicação; mas é digno de nossa mais atenta consideração. — Considera, pois, aos pés de Jesus Cristo, se porventura se ache em ti algum dos três impedimentos notados na parábola que te possa privar do fruto da palavra divina: Aliud cecidit secus viam — “Parte caiu junto ao caminho”. Tens porventura o espírito dissipado e qual caminho público aberto a todos os pensamentos?… Aliud cecidit supra petram — “Outra parte caiu sobre o pedregulho”. Estará por ventura o teu coração endurecido como uma pedra em consequência de algum vício ou tibieza habitual?… Aliud cecidit inter spinas — “Outra parte caiu entre espinhos”. Examina sobretudo se tens apego às riquezas, às dignidades e aos prazeres terrestres, que são como espinhos, que fazem perder o fruto da palavra de Deus e muitas vezes são a causa de Deus não falar mais às almas, porque vê que suas palavras se perdem.

II. Continuando o Senhor a interpretar a última parte da sua parábola, acrescenta:

“A semente que caiu em boa terra, estes são os que, ouvindo a palavra com coração bom e perfeito, a retém, e dão fruto pela paciência”

Nota aqui estas últimas palavras: Fructum offerunt in patientia — “Eles dão fruto pela paciência”. Elas significam que não nos devemos deixar enganar pelo demônio, com a pretensão de fazer tudo ao mesmo tempo, porquanto, como avisava São Filipe Neri:

“A obra da santificação não é obra de um só dia”

Numa palavra, para não nos apartar da parábola, quem quiser colher frutos maduros, deve, como o lavrador, esperar pacientemente o tempo da colheita.

Ó meu amabilíssimo Jesus, estou envergonhado de comparecer à vossa presença, vendo que a semente da vossa palavra, semeada tão frequentemente e abundantemente em meu coração, até agora, por minha culpa produziu tão pouco fruto. Consolo-me, porém, porque sinto que apesar das minhas negligências, ainda continuais a me falar. Loquere, Domine, quia audit servus tuus (1) — “Fala, Senhor, porque o seu servo escuta”. Eis-me aqui, ó Senhor, não quero mais resistir quando me chamais; dizei-me o que desejais; estou pronto a obedecer-Vos: quero deixar tudo para ser todo vosso. É por demais que me obrigastes a amar-Vos! Se porém desejais que Vos seja fiel, transformai o meu coração e fazei que de hoje em diante seja uma terra boa, na qual a vossa divina palavra possa deitar raízes, crescer e dar frutos de vida eterna.

Rogo-Vos também, ó meu Deus, “já que vedes que de nenhuma sorte confio em minhas obras: rogo-Vos que contra todas as adversidades sejamos munidos com a proteção do Doutor das gentes.” (2) † Doce Coração de Maria, sede a minha salvação.

Referências:
(1) 1 Rs 3, 9
(2) Or. Dom. curr.

 Segunda-feira da Sexagésima

O pecador aflige o Coração de Deus

Exacerbavit Dominum peccator: secundum multitudinem irae suae non quaeret – “O pecador irritou ao Senhor: não se importa da grandeza de sua indignação” (Sl 9, 24)

Sumário. Não há dissabor maior do que ver-se pago com ingratidão por uma pessoa amada e beneficiada. Daí infere quanto deve estar amargurado o Coração sensibilíssimo de Jesus, que, não obstante os imensos e contínuos benefícios concedidos aos homens, é tão vilmente ultrajado pela maior parte deles, especialmente neste tempo de carnaval. Jesus não pode morrer; mas, se o pudesse, havia de morrer só de tristeza. Procuremos nós ao menos desagravá-Lo um pouco com os nossos obséquios.

I. O pecador injuria a Deus, desonra-O e por isso amargura-O sumamente. Não há dissabor mais sensível do que ver-se pago com ingratidão por uma pessoa amada e beneficiada. A quem ofende o pecador? Injuria um Deus, que o criou e amou a ponto de dar por amor dele o sangue e a vida. Cometendo um pecado mortal, bane esse Deus de seu coração.

Que mágoa não sentirias, se recebesses injúria grave de uma pessoa a quem tivesses feito bem? É esta a mágoa que causaste a teu Deus, que quis morrer para te salvar. Com razão o Senhor convida o céu e a terra, para de alguma sorte compartilharem com ele a dor que lhe causa a ingratidão dos pecadores: Ouvi, céus, e tu, ó terra, escuta: Criei uns filhos e engrandeci-os; porém, eles me desprezaram. ― Ipsi autem spreverunt me (1). ― Numa palavra, os pecadores, com o pecado, afligem o coração de Deus: Exacerbavit Dominum peccator. Deus não está sujeito à dor, mas, se a pudesse sofrer, um só pecado mortal bastaria para O fazer morrer de tristeza, porque Lhe causaria uma tristeza infinita. Assim, o pecado, no dizer de São Bernardo, por sua natureza é o destruidor de Deus: Peccatum, quantum in se est, Deum perimit.

Quando o homem comete um pecado mortal, dá, por assim dizer, veneno a Deus, faz o que está em si, para tirar-lhe a vida. Segundo a expressão de São Paulo, renova de certo modo a crucifixão e as ignomínias de Jesus e calca-O aos pés, pois que despreza tudo o que Jesus Cristo fez e sofreu para tirar o pecado do mundo: Qui filium Dei conculcaverit (2). Eis porque a vida do Redentor foi tão amargurada e penosa: tinha sempre diante dos olhos os nossos pecados.

II. Se um só pecado basta para afligir o coração de Deus, considera quanto deverá ficar amargurado particularmente no tempo de carnaval, quando se comete um sem-número de pecados. ― Santa Margarida Alacoque, para consolar um pouco o seu divino Esposo de tantas amarguras, alcançara de Deus que cada ano no carnaval lhe sobreviessem dores acerbíssimas, que soíam* durar até a quarta-feira de Cinzas, dia em que parecia reduzida aos extremos. Dando conta desta graça assinalada a seu diretor, a Santa exprime-se assim: “Esses dias são para mim um tempo de tamanho sofrimento, que não posso contemplar senão o meu Jesus sofredor, compadecendo-me das aflições de seu sacratíssimo Coração”.

Meu irmão, se não tens suficiente ânimo para imitar aquela amantíssima esposa de Jesus, ao menos, já que agora consideraste a malícia do pecado, afasta-te no futuro bem longe dele. E nestes dias de desenfreada libertinagem, não percas de vista as seguintes belas palavras de Santo Agostinho: “Os gentios“, diz ele (e o mesmo fazem os maus cristãos), “regozijam-se com gritos de alegria, mas vós alegrai-vos com a palavra de Deus; eles correm aos espetáculos, vós procurai apressadamente as igrejas; eles embriagam-se, mas vós, sede sóbrios e temperantes“.

Se porventura em outros tempos cometeste alguma culpa grave e assim afligiste o teu Deus tão amável, dize-Lhe agora com coração contrito e amoroso: † “Meu amável Jesus, para mostrar-Vos minha gratidão e para reparar as minhas infidelidades, dou-Vos o meu coração e consagro-me inteiramente a Vós, e com Vosso auxílio proponho não pecar mais” (3). † Ó doce Coração de Maria, sede a minha salvação.

Referências:
(1) Is 1, 2
(2) Hb 10, 29
(3) Indulg. de 100 dias
*soíam: do verbo soer = costumar

 Terça-feira da Sexagésima

O pecado renova a Paixão de Jesus Cristo

Rursum crucifigentes sibimet ipsis Filium Dei, et ostentui habentes – “Eles outra vez crucificam o Filho de Deus para si próprios e o expõem à ignomínia” (Hb 6, 6)

Sumário. Quem comete o pecado, contraria todos os desígnios amorosos de Jesus Cristo, inutiliza para si os frutos da Redenção, e, como diz São Paulo, pisa o Filho de Deus aos pés, despreza e profana seu sangue e renova a sua paixão e morte. Portanto, especialmente neste tempo de carnaval o Senhor é cada dia crucificado milhares de vezes. Imagina que são tantos os Calvários quantos são os antros do pecado. Ai, meu pobre Senhor!

I. Considera a grandíssima injúria que o pecado mortal faz à Paixão de Jesus Cristo. O intuito do Filho de Deus, em fazer-se homem, foi tirar o pecado do mundo; a este fim, como diz Isaías, colimavam todos os seus pensamentos, palavras, obras e sofrimentos: Et iste omnis fructus, ut auferatur peccatum (1) ― “Este é todo o seu fruto, que seja tirado o pecado”. Pois bem, quem peca, inutiliza para si este grande fruto da Redenção e contraria assim todos os desígnios e intentos amorosos do Redentor. ― Se o pecado é acompanhado de escândalo, contraria-os também para os outros, fechando, por assim dizer, em despeito de Cristo, para si e para o próximo, as portas do céu e abrindo as do inferno.

Mais, o pecador, como diz São Paulo, pisa aos pés o Filho de Deus, despreza e profana o seu preciosíssimo Sangue, chega até ao excesso de renovar a sua crucifixão e morte: Rursum crucifigentes sibimet ipsis Filium Dei ― “Crucificando outra vez o Filho de Deus para si próprios”. Isto, na interpretação de Santo Tomás, se verifica de duas maneiras. Primeiro, pecando se faz aquilo pelo que Jesus Cristo foi crucificado, a saber, o pecado. Portanto, se a morte do Senhor não houvera sido suficiente para expiar os pecados todos, fora conveniente, pelo encargo de Redentor, que tomou sobre si, que se deixasse crucificar tantas vezes quantos são os pecados cometidos. Em segundo lugar, pelo pecado comete-se uma ação mais abominável aos olhos de Jesus e mais dolorosa para seu Coração do que todos os opróbrios e penas padecidas na Sua Paixão e por isso de boa vontade quisera tornar a sofrê-las a fim de impedir um só pecado mortal.

É assim que, especialmente neste tempo de carnaval, o Senhor é crucificado pelos pecadores milhares de vezes cada dia. Imagina, pois, que são tantos os Calvários, quantos são os antros do pecado, ou melhor, quantas são as almas pecadoras. Ah, meu pobre Redentor!

II. Na vida de Santa Margarida Alacoque se lê que num dos dias que antes de principiar a Quaresma são consagrados ao prazer, Jesus Cristo se lhe mostrou todo rasgado de feridas e coberto de sangue. Tinha a cruz nos ombros e com voz triste e queixosa disse:

“Não haverá ninguém que tenha compaixão de mim e queira compartilhar comigo as dores que sofro por causa dos pecadores, especialmente nestes dias?”

Ouvindo isso, a Bem-aventurada lançou-se aos pés de seu divino Esposo e ofereceu-se a sofrer em união com Ele, pelo que o Senhor a carregou de uma cruz pesadíssima.

Imitemos na medida de nossas forças à Santa Margarida, desagravando o Coração de Jesus. Nestes oito dias ouçamos com devoção uma missa, façamos ao menos uma comunhão reparadora, e, não só com o nosso exemplo, mas também com palavras, excitemos os outros a fazerem o mesmo. No correr do dia, digamos muitas vezes: † Meu Jesus, misericórdia (2). Enquanto os outros só pensam em distrair-se com divertimentos mundanos, procuremos, mais do que de ordinário, fazer companhia a Jesus sacramentado, ou recolhidos em nossa casa aos pés de Jesus Cristo, compadecer-nos dele pelas muitas ofensas que Lhe são feitas.

Tenhamos por certo que estes obséquios são muito agradáveis ao Coração divino, mas, para que Lhe sejam mais agradáveis ainda, formemos a intenção de os unirmos com os merecimentos do Redentor e de toda a corte celestial, dizendo muitas vezes: † “Eterno Pai, nós Vos oferecemos o sangue, a paixão e a morte de Jesus Cristo, as dores de Maria Santíssima e de São José, para satisfação de nossos pecados, em sufrágio das almas do purgatório, pelas necessidades da santa Madre Igreja e pela conversão dos pecadores”(3).

Referências:
(1) Is 27, 9
(2) Indulg. de 300 dias cada vez
(3) Indulg. de 100 dias. ― Aos obséquios indicados podem acrescentar-se os seguintes:
1º. Percorrer cada dia as estações da Via Sacra, ou sufragar de outra forma aquelas almas do purgatório que em vida mais se esforçaram por desagravar a Jesus Cristo, no tempo de carnaval.

2º. Em todo este tempo, fazer com mais perfeição e fervor as ações ordinárias, em particular as que se referem diretamente ao serviço de Deus.

3º. Finalmente, visto que Deus é ofendido especialmente pelos excessos no beber e comer e pelos pecados de impureza, mortificar mais do que em outros tempos o apetite, tanto na qualidade como na quantidade da comida, e, com licença do Diretor, alguma penitência corporal.

 Quarta-feira da Sexagésima

Do número dos pecados

Omnia in mensura et numero et pondere disposuisti – “Dispuseste tudo com medida e conta e peso” (Sb 11, 21)

Sumário. É sentimento de muitos Santos Padres, que Deus, assim como determinou para cada homem o número dos dias de vida que lhe quer dar, do mesmo modo fixou para cada um deles o número dos pecados que lhe quer perdoar e completado esse número não perdoa mais. Quem sabe, meu irmão, se depois dessa primeira satisfação indigna, depois do primeiro pensamento consentido, depois do primeiro pecado cometido, não quererá o Senhor castigar-te com uma morte repentina? O que então seria de ti por toda a eternidade?

I. Se Deus castigasse desde logo a quem O ofende, de certo não se veria injuriado como o é atualmente; mas por isso mesmo que o Senhor não castiga logo e espera, os pecadores animam-se a ofenderem-No mais. É porém preciso atender bem, que se Deus espera e suporta, todavia não espera e suporta sempre.

É sentimento de muitos Santos Padres, de São Basílio, São Jerônimo, Santo Ambrósio, São Cirilo de Alexandria, São João Crisóstomo, Santo Agostinho e outros, que Deus, assim como determinou o número dos dias de vida, os grãos de saúde e de talento que quer dar a cada homem, assim fixou para cada qual o número dos pecados que lhe quer perdoar; cheio o qual, não perdoa mais: “Devemos ter por certo”, diz Santo Agostinho, “que Deus suporta o homem até certo ponto, depois do qual não há mais perdão para ele: Nullam illi veniam reservavi”.

E não foi ao acaso que estes Santos Padres assim falaram, senão baseados nas divinas Escrituras, que em vários lugares dizem claramente que, embora os pecadores não contem os pecados, Deus os enumera, para castigá-los, quando o número estiver completo: ut in plenitudine peccatorum puniat (1). De sorte que Deus espera até ao dia em que se complete a conta dos pecados, e então é que pune.

A Escritura oferece muitos exemplos de castigos semelhantes, principalmente o de Saul, que depois da última desobediência foi abandonado por Deus. Encontra-se também o exemplo de Baltazar, que estando à mesa profanou os vasos do templo e viu então uma mão escrevendo na parede: Mane, Thecel, Phares. Veio Daniel, e explicando estas palavras, disse-lhe entre outras coisas, que o peso de seus pecados já tinha feito baixar a balança da divina justiça, e com efeito, nessa mesma noite Baltazar foi morto… A quantos infelizes não sucede a mesma desgraça! Vivem muitos anos no pecado, mas quando completam o número que lhes foi fixado, são colhidos pela morte e precipitados no inferno. Ducunt in bonis dies suos, et in puncto ad infera descendunt (2) ― “Passam os seus dias em prazeres e num momento descem à sepultura”.

II. Há quem procure indagar o número das estrelas, dos anjos, dos anos que alguém terá; mas quem poderá jamais indagar o número dos pecados que Deus quer perdoar a cada homem? E por isso devemos tremer. Meu irmão, quem sabe se depois da primeira satisfação indigna, depois do primeiro pensamento consentido, depois do primeiro pecado cometido Deus ainda te quer perdoar? Quem sabe se não te sucederá o que sucedeu a tantos outros, que foram colhidos pela morte no mesmo instante em que estavam ofendendo o Senhor? E se tal acontecesse, que seria de ti durante toda a eternidade?

Graças, meu Deus! Quantos desgraçados, menos culpados que eu, estão agora no inferno, sem que haja para eles perdão ou esperança! E eu estou vivo ainda fora do inferno, com esperança do perdão e do paraíso, se eu quiser. Sim, meu Deus, quero o perdão. Arrependo-me de todo o coração de Vos ter ofendido, a Vós que sois a Bondade infinita.

Pai Eterno: respice in faciem Christi tui (3), olhai para vosso Filho morto por mim na cruz, e em consideração dos seus méritos, tende piedade de mim. Protesto que antes quero morrer que tornar a ofender-Vos. Em vista dos pecados que cometi e das graças que me haveis feito, tenho suficiente motivo para temer que um pecado mais encha a medida e me faça condenar. Ah! Ajudai-me com a vossa graça. De Vós espero luz e força para Vos ser fiel. Se prevedes que hei de tornar a ofender-Vos, fazei-me morrer neste instante, já que espero estar na vossa graça. Meu Deus, amo-Vos sobre todas as coisas e, mais que a morte, receio a desgraça de cair novamente em nossa inimizade. Por piedade, não o permitais.

― Maria, minha Mãe, tende compaixão de mim, ajudai-me, impetrai-me a santa perseverança.

Referências:
(1) 2 Mc 6, 14
(2) Jó 21, 13
(3) Sl 83, 10

Nota: Os devotos de Santo Afonso poderão hoje tomar a meditação sobre a sua confiança em Deus, se ainda não foi lida na terça-feira da 5ª. semana depois da Epifania. Para os seguintes meses do ano aconselha-se aos mesmos devotos que fixem um dia para fazerem a sua meditação sobre uma virtude do Santo correspondente a cada mês. Do Santo Doutor pode-se dizer como de Jesus Cristo, que começou a fazer e a ensinar.

 Quinta-feira da Sexagésima

O Carnaval Santificado e as Divinas Beneficências

Fidem posside cum amico in paupertate illius, ut et in bonis illius laeteris – “Guarda fé ao teu amigo na sua pobreza, para que também te alegres com ele nas suas riquezas” (Ecl 22, 28)

Sumário. Para desagravar o Senhor ao menos um pouco dos ultrajes que lhe são feitos, os Santos aplicavam-se nestes dias do carnaval, de modo especial, ao recolhimento, à oração, à penitência, e multiplicavam os atos de amor, de adoração e de louvor para com seu Bem-Amado. Procuremos imitar estes exemplos, e se mais não pudermos fazer, visitemos muitas vezes o Santíssimo Sacramento e fiquemos certos de que Jesus Cristo no-lo remunerará com as graças mais assinaladas.

I. Por este amigo, a quem o Espírito Santo nos exorta a sermos fiéis no tempo da sua pobreza, podemos entender que é Jesus Cristo, que especialmente nestes dias de carnaval é deixado sozinho pelos homens ingratos e como que reduzido à extrema penúria. Se um só pecado, como dizem as Escrituras, já desonra a Deus, o injuria e o despreza, imagina quanto o divino Redentor deve ficar aflito neste tempo em que são cometidos milhares de pecados de toda a espécie, por toda a condição de pessoas, e quiçá por pessoas que lhe estão consagradas. Jesus Cristo não é mais suscetível de dor; mas, se ainda pudesse sofrer, havia de morrer nestes dias desgraçados e havia de morrer tantas vezes quantas são as ofensas que lhe são feitas.

É por isso que os santos, a fim de desagravarem o Senhor de tantos ultrajes, aplicavam-se no tempo de carnaval, de modo especial, ao recolhimento, à penitência, à oração, e multiplicavam os atos de amor, de adoração e de louvor para com o seu Bem-Amado. No tempo do carnaval, Santa Maria Madalena de Pazzi passava as noites inteiras diante do Santíssimo Sacramento, oferecendo a Deus o sangue de Jesus Cristo pelos pobres pecadores. O Bem-aventurado Henrique Suso guardava um jejum rigoroso a fim de expiar as intemperanças cometidas. São Carlos Borromeu castigava o seu corpo com disciplinas e penitências extraordinárias. São Filipe Néri convocava o povo para visitar com ele os santuários e realizar exercícios de devoção. O mesmo praticava São Francisco de Sales, que, não contente com a vida mais recolhida que então levava, pregava ainda na igreja diante de um auditório numerosíssimo. Tendo conhecimento que algumas pessoas por ele dirigidas, que se relaxavam um pouco nos dias de carnaval, repreendia-as com brandura e exortava-as à comunhão frequente.

Numa palavra, todos os santos, porque amaram a Jesus Cristo, esforçaram-se por santificar o mais possível o tempo de carnaval. Meu irmão, se amas também este Redentor amabilíssimo, imita os santos. Se não podes fazer mais, procura ao menos ficar, mais do que em outros tempos, na presença de Jesus Sacramentado ou bem recolhido em tua casa, aos pés de Jesus crucificado, para chorar as muitas ofensas que lhe são feitas.

II. Ut et in bonis illius laeteris – “para que te alegres com ele nas suas riquezas”. O meio para adquirires um tesouro imenso de méritos e obteres do céu as graças mais assinaladas, é seres fiel a Jesus Cristo em sua pobreza e fazer-lhe companhia neste tempo em que é mais abandonado pelo mundo: Fidem posside cum amico in paupertate illius, ut et in bonis illius laeteris. Ó, como Jesus agradece e retribui as orações e os obséquios que nestes dias de carnaval lhe são oferecidos pelas suas almas prediletas!

Conta-se na vida de Santa Gertrudes, que certa vez ela viu num êxtase o divino Redentor que ordenava ao Apóstolo São João escrevesse com letras de ouro os atos de virtude feitos por ela no carnaval, a fim de a recompensar com graças especialíssimas. Foi exatamente neste mesmo tempo, enquanto Santa Catarina de Sena estava orando e chorando os pecados que se cometiam na quinta-feira gorda, que o Senhor a declarou sua esposa, em recompensa (como disse) dos obséquios praticados pela Santa no tempo de tantas ofensas.

Amabilíssimo Jesus, não é tanto para receber os vossos favores como para fazer coisa agradável ao vosso divino Coração, que quero nestes dias unir-me às almas que Vos amam, para Vos desagravar da ingratidão dos homens para convosco, ingratidão essa que foi também a minha, cada vez que pequei. Em compensação de cada ofensa que recebeis, quero oferecer-Vos todos os atos de virtude, todas as boas obras, que fizeram ou ainda farão todos os justos, que fez Maria Santíssima, que fizestes Vós mesmo, quanto estáveis na terra. Entendo renovar esta minha intenção todas as vezes que nestes dias disser: † Meu Jesus, misericórdia (1).

– Ó grande Mãe de Deus e minha Mãe Maria, apresentai vós este humilde ato de desagravo a vosso divino Filho, e por amor de seu sacratíssimo Coração obtende para a Igreja sacerdotes zelosos, que convertam grande número de pecadores.

Referências:
(1) Indulg. de 300 dias cada vez

 Sexta-feira da Sexagésima

Amor de Jesus em querer satisfazer por nós

Dilexit nos, et tradidit semet ipsum pro nobis oblationem et hostiam Deo – “(Jesus) amou-nos e se entregou a si mesmo por nós em oblação e como hóstia para Deus” (Ef 5, 2)

Sumário. Nunca se deu, nem se dará jamais, no mundo outro fato semelhante ao que está consignado nos Evangelhos. Estando o homem por sua própria culpa condenado à morte eterna, o Filho de Deus pediu e obteve de seu divino Pai, que o deixasse tomar a natureza humana e pagar com a própria morte as penas devidas ao homem. Que te parece, irmão meu, este amor do Filho e do Pai? Todavia, a maior parte dos homens, talvez tu também, não responderam a tamanho amor senão com ingratidão.

I. A história refere um fato de um amor tão prodigioso que será a admiração de todos os séculos. Um rei, senhor de muitos reinos, tinha um filho único, tão belo, tão santo, tão amável que era as delícias do pai, que o amava tanto como a si mesmo. Ora, este jovem príncipe tinha tão grande afeição a um de seus escravos, que tendo aquele escravo cometido um crime, pelo qual foi condenado à morte, o príncipe se ofereceu a morrer em seu lugar. E o pai, zeloso dos direitos da justiça, consentiu em condenar à morte seu filho bem-amado, a fim de que o escravo escapasse do suplício que havia merecido. A sentença foi executada: o filho morreu no patíbulo, e o escravo ficou salvo.

Este fato, que não teve e nunca terá outro semelhante no mundo, está consignado nos Evangelhos. Ali se lê que o Filho de Deus, o Senhor do universo, vendo o homem condenado, pelo seu pecado, à morte eterna, quis tomar a natureza humana, e pagar com a sua morte os castigos devidos ao homem: Oblatus est, quia ipse voluit (1) ― “Ele foi oferecido, porque o quis”. E o Pai Eterno deixou-o morrer sobre a cruz para nos salvar a nós, miseráveis pecadores: Proprio Filio non pepercit, sed pro nobis omnibus tradidit illum (2) ― “Não perdoou a seu próprio Filho, mas entregou-o por nós todos”. Que te parece, alma devota, este amor do Filho e do Pai?

Desta sorte, meu amável Redentor, morrendo quisestes sacrificar-Vos para me alcançar o perdão! E que Vos darei eu em reconhecimento? Vós me haveis obrigado demais a amar-Vos, e eu seria demais ingrato, se Vos não amasse de todo o meu coração. Vós me haveis dado a vossa vida divina, e eu, miserável pecador como sou, Vos dou a minha. Sim, ao menos tudo o que me resta de vida, quero empregá-lo unicamente em amar-Vos, obedecer-Vos e agradar-Vos.

II. O que abrasava mais São Paulo de amor para com Jesus era a lembrança de que ele quisera morrer, não só por todos os homens em geral, mas ainda por ele em particular. Dilexit me, et tradidit semetipsum pro me (3). ― Ele me amou, dizia, e se entregou por mim. Cada um de nós pode dizer outro tanto; porque São João Crisóstomo assegura que Deus ama tanto cada um de nós, como ama o mundo inteiro. Assim, cada cristão não está menos obrigado a Jesus Cristo, por ter padecido por todos, do que se houvera padecido só para ele.

Meu irmão, se Jesus Cristo tivesse morrido somente para te salvar, deixando os outros na sua perda original, que obrigação Lhe não devias tu? Deves, porém, saber que Lhe és ainda mais obrigado por ter morrido por todos. Se ele só por ti houvesse morrido, que dor não seria a tua, pensando que teus próximos, teu pai e mãe, teus irmãos e amigos, pereceriam eternamente e que depois desta vida seríeis separados para sempre? Se fosses feito escravo com toda a tua família e alguém viesse a resgatar-te a ti somente, quanto lhe não pedirias que resgatasse também teus pais e irmãos! E quanto lhe não agradecerias, se ele o fizesse para te agradar! Dize, pois, a Jesus:

Ah! Meu doce Redentor, Vós fizestes isso por mim, sem eu Vo-Lo ter pedido. Não somente me resgatastes da morte a preço de vosso sangue, também aos meus parentes e amigos, de sorte que me é permitido esperar que, reunidos todos, juntos gozaremos de Vós para sempre no paraíso. Senhor, eu Vos agradeço e Vos amo e espero agradecer-Vos e amar-Vos eternamente nessa bem-aventurada pátria.

― Ó Maria, ó minha Mãe das dores, obtende-me a santa perseverança. Fazei-o pelo amor de Jesus Cristo.

Referências:
(1) Is 53, 7
(2) Rm 8, 32
(3) Gl 2, 20

 Sábado da Sexagésima

Frutos da meditação das dores de Maria Santíssima

Sicut qui thesaurizat, ita et qui honorat matrem suam – “Como quem ajunta um tesouro, assim se porta o que honra sua mãe” (Eclo 3, 5)

Sumário. Por causa do imenso amor com que Jesus Cristo ama sua querida Mãe, são-Lhe muito agradáveis os que com devoção meditam nas dores de Maria Santíssima e inúmeras são as graças que lhes comunica. Mas infelizmente, quão poucos são os que praticam tão bela devoção! Muitos cristãos, em vez de se compadecerem das dores de Maria, lh’as renovam com seus pecados ou sua tibieza. Irmão meu, serás tu também um destes ingratos?

I. Para compreender quanto agrada à Bem-Aventurada Virgem que nos lembremos de suas dores, bastaria somente saber que ela, no ano de 1239, apareceu a sete devotos seus (que depois foram os fundadores da Ordem dos Servos de Maria), com um hábito negro na mão e ordenou-lhes que, desejando fazer-lhe causa agradável, meditassem com frequência em suas dores. Por isso queria que em memória delas trouxessem daí em diante aquele hábito lúgubre. Jesus Cristo mesmo revelou à Bem-aventurada Verônica de Binasco, que quase Lhe agrada mais ver compadecida sua Mãe que Ele mesmo, pois que lhe disse assim: Filha, são-me caras as lágrimas derramadas pela minha Paixão; mas como eu amo com amor imenso a minha Mãe, me é mais cara a meditação das dores que ela padeceu na minha morte.

Por isso são muito grandes as graças que Jesus prometeu aos devotos das dores de Maria. Refere o Padre Pelbarto ter sido revelado a Santa Isabel, que São João Evangelista, depois que a Santíssima Virgem foi assunta ao céu, desejava vê-la mais uma vez. Foi-lhe concedida a graça e apareceu-lhe sua cara Mãe e juntamente com ela também Jesus Cristo. Ouviu depois, que Maria pediu ao Filho alguma graça especial para os devotos das suas dores e que Jesus lhe prometeu para eles quatro graças especiais: 1º. Que o que invocar a divina Mãe pelos merecimentos de suas dores merecerá fazer, antes da morte, verdadeira penitência de todos os seus pecados. 2º. Que ele defenderá aqueles devotos nas tribulações em que se acharem, especialmente na hora da morte, 3º. Que imprimirá neles a memória de sua Paixão e que no céu lhes dará depois o competente prêmio. 4º. Que entregará os tais devotos nas mãos de Maria, a fim de que deles disponha à sua vontade e lhes obtenha todas as graças que quiser. Em comprovação de tudo isto encontram-se nos livros inúmeros exemplos.

II. Se é tão agradável a Maria Santíssima que nos lembremos das suas dores e se são tão grandes as graças que Jesus Cristo prometeu a quem pratica esta devoção, claro está que, juntamente com a devoção à Paixão do Redentor, devia ser a de todos os cristãos. Mas infelizmente, quantos não há que, especialmente nestes dias de carnaval, em vez de honrarem a Virgem dolorosa, ainda lhe aumentam as penas e pela sua tibieza e pelos seus pecados lhe traspassam o coração com novas espadas?

É isso que, como conta o Padre Roviglione, a divina Mãe quis ensinar a um jovem seu devoto. Tendo este caído em pecado mortal e ido na manhã seguinte visitar uma imagem da Virgem que tinha sete espadas no peito, viu não sete, mas oito espadas. Ouviu então uma voz que lhe disse que aquele seu pecado tinha acrescentado a oitava espada no coração de Maria.

Ah, minha bendita Mãe! Não só uma espada, mas tantas espadas quantos têm sido os meus pecados acrescentei ao vosso coração. Ah Senhora! Não a vós, que sois inocente, mas a mim, réu de tantos delitos, se devem as penas. Mas já que vós quisestes padecer tanto por mim, ah! pelos vossos merecimentos impetrai-me uma grande dor dos meus pecados e paciência para sofrer os trabalhos desta vida, que serão sempre leves em comparação com os meus deméritos, pois que tantas vezes tenho merecido o inferno. Impetrai-me também, ó minha Mãe, uma devoção constante e terna à Paixão de Jesus Cristo e às vossas dores, a fim de que, depois de Vos ter acompanhado na terra em vossas penas, mereça participar da vossa glória no céu.
9ª parte

 Semana da Quinquagésima

Inicia a Semana da Sexagésima 1 semana antes do Primeiro Domingo da Quaresma.

Domingo: A Paixão de Jesus Cristo e os divertimentos do carnaval

Segunda-feira: Da confiança em Jesus Cristo

Terça-feira: O pecador expulsa Deus do seu coração

Quarta-feira de Cinzas. A lembrança da morte e o jejum quaresmal

Quinta-feira depois das Cinzas: Amor de Jesus Cristo em dar-se a nós como alimento

Sexta-feira depois das Cinzas: Comemoração da Coroa de espinhos de Nosso Senhor Jesus Cristo

Sábado depois das Cinzas: Primeira dor de Maria Santíssima – Profecia de Simeão

 Domingo da Quinquagésima

A Paixão de Jesus Cristo e os divertimentos do carnaval

Consummabuntur omnia, quae scripta sunt per prophetas de filio hominis – “Será cumprido tudo o que está escrito pelos profetas, tocante ao Filho do homem” (Lc 18, 31)

Sumário. Não é sem uma razão mística que a Igreja propõe hoje à nossa meditação Jesus Cristo predizendo a sua dolorosa Paixão. A nossa boa Mãe deseja que nós, seus filhos, nos unamos a ela, para compadecermos do seu divino Esposo, e o consolarmos com os nossos obséquios, ao passo que os pecadores, nestes dias mais do que em outros tempos, lhe renovam todos os ultrajes descritos no Evangelho. Quer ela também que roguemos pela conversão de tantos infelizes, nossos irmãos. Não temos por ventura bastantes motivos para isso?

I. Não é sem razão mística que a Igreja propõe hoje à nossa meditação Jesus Cristo predizendo a sua dolorosa Paixão. Deseja a nossa boa Mãe que nós, seus filhos, nos unamos a ela na compaixão de seu divino Esposo, e o consolemos com os nossos obséquios; porquanto os pecadores, nestes dias mais do que em outros tempos, lhe renovam os ultrajes descritos no Evangelho.

Tradetur gentibus — “Ele vai ser entregue aos gentios”. Nestes tristes dias os cristãos, e quiçá entre eles alguns dos mais favorecidos, trairão, como Judas, o seu divino Mestre e o entregarão nas mãos do demônio. Eles o trairão, já não às ocultas, senão nas praças e vias públicas, fazendo ostentação de sua traição! Eles o trairão, não por trinta dinheiros, mas por coisas mais vis ainda: pela satisfação de uma paixão, por um torpe prazer, por um divertimento momentâneo!

Illudetur, flagellabitur et conspuetur — “Ele será mortejado, flagelado e coberto de escarros”. Uma das baixezas mais infames que Jesus Cristo sofreu em sua Paixão, foi que os soldados lhe vendaram os olhos e, como se ele nada visse, o cobriram de escarros, e lhe deram bofetadas, dizendo: Profetiza agora, Cristo, quem te bateu? Ah, meu Senhor! Quantas vezes esses mesmos ignominiosos tormentos não Vos são de novo infligidos nestes dias de extravagância diabólica? Pessoas que se cobrem o rosto com uma máscara, como se Deus assim não pudesse reconhecê-las, não têm pejo de vomitar em qualquer parte palavras obscenas, cantigas licenciosas, até blasfêmias execráveis contra Santo Nome de Deus! — Et postquam flagellaverint, occident eum — “Depois de o terem açoitado, o farão morrer”. Sim, pois se, segundo a palavra do Apóstolo, cada pecado é uma renovação da crucifixão do Filho de Deus, ah! Nestes dias Jesus será crucificado centenas e milhares de vezes.

É exatamente isto que Jesus Cristo quis dizer a Santa Gertrudes aparecendo-lhe num domingo de Quinquagésima, todo coberto de sangue, com as carnes rasgadas, na atitude do Ecce Homo, e com dois algozes ao lado, os quais lhe apertavam a coroa de espinhos e o batiam sem piedade. Ah! Meu pobre Senhor!

II. Refere o Evangelho em seguida, que, aproximando-se Jesus de Jericó, um cego estava sentado à beira da estrada e pedia esmolas. Ouvindo passar a multidão, perguntou o que era. Sabendo que passava Jesus de Nazaré, apesar de a gente o ralhar, a fim de que se calasse, não cessava de gritar: Jesus, Filho de Davi, tende piedade de mim (1). Por isso mereceu que, em recompensa de sua fé, o Senhor lhe restituísse a vista: Fides tua te salvum fecit — “A tua fé te valeu”.

Se quisermos agradar ao Senhor, eis aí o que também nós devemos fazer. Imitemos a fé daquele pobre cego, e neste tempo de desenfreada licença, enquanto os outros só pensam em se divertir com prazeres mundanos, procuremos estar, mais que de ordinário, diante do Santíssimo Sacramento. Não nos importemos com os escárnios do mundo, lembrando-nos do que diz São Pedro Crisólogo. Qui iocari voluerit cum diabolo, non poterit gaudere cum Christo — “Quem quiser brincar com o demônio, não poderá gozar com Cristo”. Quando nos acharmos em presença de Jesus no tabernáculo, peçamos-lhe luz para detestarmos as ofensas que o magoam tão profundamente. Peçamos-lhe não somente para nós mesmos, senão também para tantos irmãos nossos desviados: Domine, ut videam — “Senhor, fazei-me ver”.

Amabilíssimo Jesus, Vós que sobre a cruz perdoastes aos que Vos crucificaram, e desculpastes o seu horrendo pecado perante o vosso pai, tende piedade de tantos infelizes que, seduzidos pelo Espírito da mentira, e com o riso nos lábios, vão neste tempo de falso prazer e de dissipação escandalosa, correndo para a sua perdição. Ah! Pelos merecimentos de vosso divino sangue, não os abandoneis, assim como mereceriam, Reservai-lhes um dia de misericórdia, em que cheguem a reconhecer o mal que fazem e a converter-se. — Protegei-me sempre com a vossa poderosa mão, a fim de que não me deixe seduzir no meio de tantos escândalos e não venha a ofender-Vos novamente. Fazei que eu me aplique tanto mais aos exercícios de devoção, quanto estes são mais esquecidos pelos iludidos filhos do mundo. “Atendei, Senhor, benigno às minhas preces, e soltando-me das cadeias do pecado, preservai-me de toda a adversidade.”(2) † Doce Coração de Maria, sêde minha salvação.

Referências:

(1) Lc 18, 38
(2) Or. Dom. curr.

 Segunda-feira da Quinquagésima

Da confiança em Jesus Cristo

Nolite itaque amittere confidentiam vestram, quae magnam habet remunerationem – “Não queirais perder a vossa confiança, que tem grande remuneração” (Hb 10, 35)

Sumário. A misericórdia de Deus é como que uma fonte inexaurível, donde tirará mais graças quem trouxer um vaso mais amplo de confiança. Se, pois, quisermos enriquecer espiritualmente, confiemos muito nos méritos de Jesus Cristo e na intercessão de Maria. Avivemos frequentemente esta nossa confiança, lembrando-nos de que Deus é bom e nos quer ajudar; que é poderoso e nos pode ajudar; que é fiel e prometeu ajudar-nos. Não busquemos, porém, uma confiança sensível, que redunda nos sentidos; basta que tenhamos a vontade de confiar.

I. É nimiamente grande a misericórdia de Jesus Cristo para conosco; mas para nosso maior bem, Ele quer que obtenhamos a misericórdia por uma viva confiança baseada em seus merecimentos e em suas promessas. Por isso São Paulo nos exorta a que guardemos a confiança, dizendo que ela nos alcança de Deus uma grande recompensa: magnam habet remunerationem. ― Revelou o Senhor a Santa Gertrudes que a nossa confiança Lhe faz uma violência tão grande, que não pode deixar de atender-nos em tudo que Lhe pedirmos. No mesmo sentido escreve São Bernardo, que a divina misericórdia é como que uma fonte inexaurível, da qual tirará maior abundância de graças quem trouxer um vaso mais amplo de confiança, segundo o que disse o Salmista: Fiat misericordia tua, Domine, super nos, quemadmodum speravimos in te (1) ― “Venha, Senhor, sobre nós a vossa misericórdia, à proporção que em Vós temos esperado”.

Deus mesmo declarou que protege e salva todos os que nele confiam (2). Alegremo-nos, pois, dizia Davi, todos aqueles que esperam em Vós, meu Deus, porque serão eternamente bem-aventurados e Vós habitareis neles (3). E em outro lugar acrescenta que a misericórdia cerca e guarda àquele que confia no Senhor, e que estará ao abrigo dos perigos de perder-se (4).

Oh! quão grandes são as promessas que nas Sagradas Escrituras são feitas aos que esperam em Deus! Vemo-nos porventura perdidos por causa dos pecados cometidos? Eis que temos o remédio à mão: Vamos com confiança aos pés de Jesus, diz o Apóstolo, e ali acharemos o perdão: Adeamus cum fiducia ad thronum gratiae ― “Vamos com confiança ao trono da graça” (5). Não demoremos em nos aproximarmos de Jesus Cristo, até que esteja assentado como Juiz num trono de justiça; vamos agora, visto estar ainda num trono de graça e lembremo-nos sempre do que diz São João Crisóstomo: “O nosso Salvador tem mais desejo de nos perdoar do que nós desejamos ser perdoados”.

II. Quem por causa de sua fraqueza teme a recaída nos pecados antigos, confie em Deus, e não recairá mais, conforme nos assegura o profeta: Non delinquent omnes qui sperant in eo (6) ― “Todos os que esperam nele, não pecarão”. Escreve Isaías que os que esperam no Senhor, terão sempre novas forças (7). ― Não vacilemos, pois, nunca em nossa confiança, como diz São Paulo, porque Deus prometeu proteger a quem nele espera. Por isso, quando se nos antolham dificuldades que parecem insuperáveis, digamos: Eu posso tudo n’Ele (Deus) que me fortalece (8). E quem é que tendo confiado no Senhor se perdeu? Nullus speravit in Domino et confusus est (9) ― “Nenhum esperou no Senhor e foi confundido”.

Não queiramos, porém, sempre ter uma consolação perceptível que redunde nos sentidos; basta que tenhamos a vontade de confiar. É esta a confiança verdadeira, o querer confiar em Deus, porque é bom e nos quer ajudar, poderoso e nos pode ajudar, fiel e prometeu ajudar-nos. Apoiemo-nos sobretudo na promessa que Jesus Cristo nos fez: Em verdade, em verdade vos digo: tudo que pedirdes a meu Pai em meu nome, Ele vo-lo dará (10). Peçamos portanto a Deus as graças pelos merecimentos de Jesus Cristo, confiemos também na intercessão de Maria Santíssima e obteremos tudo o que quisermos.

Ó Pai Eterno, reconheço que sou pobre em tudo; nada posso e nada tenho que não me tenha vindo de vossas mãos. Não vos digo portanto nada senão: Senhor, tende piedade de mim! O pior é que à minha pobreza ajuntei o desmerecimento de responder às vossas graças pelas ofensas que Vos fiz. Não obstante isso, quero esperar de vossa bondade esta dupla misericórdia: a primeira, que me perdoeis os meus pecados; a segunda, que me deis a santa perseverança em vosso amor, com a graça de sempre, até à minha morte, pedir-Vos que me ajudeis. Tudo isto peço e espero pelos merecimentos de Jesus, vosso Filho, e pelos da Bem-Aventurada Virgem Maria. Ó minha grande Advogada, valei-me com os vossos rogos.

Referências:

(1) Sl 32, 32
(2) Sl 17, 31
(3) Sl 5, 12
(4) Sl 31, 10
(5) Hb 4, 16
(6) Sl 33, 23
(7) Is 40, 31
(8) Fl 4, 13
(9) Eclo 2, 11
(10) Jo 16, 23

 Terça-feira da Quinquagésima

O pecador expulsa Deus do seu coração

Qui dixerunt Deo: Recede a nobis, et scientiam viarum tuarum nolumus – “Disseram a Deus: Retira-te de nós, pois não queremos conhecer os teus caminhos” (Jó 21, 14)

Sumário. O pecador sabe que Deus não pode ficar com o pecado; vê que pecando obriga a Deus a afastar-se. Diz-Lhe portanto, não com palavras, mas de fato: Senhor, já não podeis ficar junto com o meu pecado e quereis partir, podeis ir-Vos embora. Expulsando assim Deus de sua alma, deixa entrar imediatamente o demônio, que dela toma posse. Que baixeza! Irmão meu, dize-me: praticaste tu também tão grande vilania para com Jesus Cristo?… Terás a triste coragem de a tornares a praticar no futuro?

I. Deus vem a morar numa alma que o ama; é o que Jesus Cristo mesmo nos assegura dizendo: “Se alguém me ama, guardará a minha palavra, e meu Pai o amará e viremos a ele e faremos nele morada: Ad eum veniemus, et mansionem apud eum faciemus” (1). Notemos as palavras: mansionem faciemus — “faremos morada”. Deus vem à alma a fim de nela permanecer sempre, de sorte que nunca a deixa, a não ser que a alma o faça sair, como diz o Concílio de Trento. — Mas, Senhor, Vós sabeis desde já que aquele ingrato Vos expulsará em qualquer momento: porque não partis agora? Quereis esperar que ele mesmo Vos expulse? Deixai-o e parti antes que ele Vos faça sofrer essa grande injúria. — Não, responde Deus, não quero retirar-me, enquanto ele mesmo não me repelir.

Assim, quando a alma consente no pecado, diz a Deus: Senhor, apartai-Vos de mim. Dixerunt Deo: recede a nobis (2). Não o diz vocalmente, mas de fato, como afirma São Gregório: Dicit: Recede, non verbis, sed moribus. — O pecador sabe antecipadamente que Deus não pode ficar com o pecado; vê que pecando obriga a Deus a afastar-se. É como se Lhe dissesse: Já que não podeis ficar junto com o meu pecado, já que quereis partir, podeis retirar-Vos. E expulsando Deus de sua alma, deixa entrar imediatamente o demônio, que dela toma posse. Pela mesma porta por onde sai Deus entra e vem estabelecer-se o seu inimigo: Et intrantes habitant ibi (3) — “Entrando habitam ali”.

Ao batizar-se uma criança, o padre ordena ao demônio: Sai desta alma, espírito imundo e sede o lugar ao Espírito Santo. Com efeito, aquela alma recebendo a graça converte-se em templo de Deus, como diz São Paulo (4). O contrário sucede inteiramente, quando o homem consente no pecado; então diz a Deus que reside em sua alma: Sai de mim, ó Senhor, e cede o lugar ao demônio. É disto exatamente que o Senhor se queixou a Santa Brígida, dizendo que é tratado pelos pecadores como um rei expulso de seu trono, no qual vai ser substituído por um salteador.

II. Não há mágoa mais sensível do que o ver-se pago com ingratidão por pessoas amadas e favorecidas. Consideremos portanto, como não deve ficar magoado o Coração sensibilíssimo de Jesus Cristo em ver-se posposto a um vil demônio e expulso brutalmente de uma alma pela qual derramou o seu preciosíssimo Sangue; tanto mais que semelhante baixeza se repete no mundo inteiro, em cada hora, milhares de vezes, especialmente nestes dias de carnaval.

— Meu irmão, tu ao menos compadece-te de teu aflito Senhor; dá-lhe desagravo por frequentes atos de amor e se no passado o tivesses magoado, pede-lhe humildemente perdão.

Assim, meu Redentor, todas as vezes que pequei, expulsei-Vos de minha alma e fiz tudo que Vos deveria tirar a vida, se ainda pudésseis morrer. Eu Vos ouço perguntar-me: Quid feci tibi, aut in quo contristavi te? responde mihi — Que mal te fiz, e em que te desagradei, para me causares tantos desgostos? — Perguntais-me, Senhor, que mal me fizestes? Destes-me o ser e morrestes por mim: é este o mal que me haveis feito. Que deverei, pois, responder? Confesso que mereço mil infernos; e é justo que a eles me condeneis. Lembrai-Vos, porém, do amor que Vos fez morrer por mim na cruz; lembrai-vos do sangue que por mim derramastes e tende piedade de mim.

Mas já o sei, não quereis que desespere; ou antes avisais-me de que Vos conservais à porta do meu coração, donde Vos bani e que nela estais batendo por meio das vossas inspirações, a fim de novamente entrar. Gritais-me que eu abra: Aperi mihi, soror mea (5).

Sim, meu Jesus, expulso o pecado; arrependo-me de todo o meu coração e amo-Vos sobre todas as coisas. Entrai, meu amor, está aberta a porta; entrai e nunca mais Vos afasteis de mim. Prendei-me com os laços do vosso amor e não consintais que me torne a separar de Vós. Não, meu Deus, não queremos mais separar-nos; abraço-Vos, aperto-Vos ao meu coração; dai-me a santa perseverança: Ne permittas me separari a te — “Não permitais que me separe de Vós”.

— Maria, minha Mãe, socorrei-me sempre, rogai a Jesus por mim; alcançai-me a felicidade de nunca mais perder a sua graça.

Referências:

(1) Jo 14, 23
(2) Jó 21, 14
(3) Mt 12, 45
(4) I Cor 3, 16
(5) Ct 5, 2

 Quarta-feira de Cinzas

A lembrança da morte e o jejum quaresmal

Memento homo, quia pulvis es et in pulverem reverteris – “Lembra-te, ó homem, que és pó e em pó te hás de tornar” (Gn 3, 19)

Sumário. Os insensatos que não creem na vida futura estimulam-se com o pensamento da morte a passarem bem a vida. De maneira bem diferente devemos nós proceder, os que sabemos pela fé que a alma sobrevive ao corpo. Nós, lembrando-nos de que em breve temos que morrer, devemos cuidar da nossa eternidade e por meio de oração e penitência aplacar a justiça divina. É com este intuito que a Igreja, depois de por as cinzas sobre a cabeça, nos ordena o jejum da Quaresma.

I. Para compreendermos em toda a sua extensão o sentido destas palavras, imaginemos ver uma pessoa que acaba de exalar o último suspiro. Ó Deus, a cada um que vê este corpo, inspira nojo e horror. Não passaram bem nem vinte e quatro horas depois que aquela pessoa morreu e já o mau cheiro se faz sentir. É preciso abrir as janelas e queimar bastante incenso, a fim de que o fedor não infeccione a casa toda. Os parentes com pressa mandam levar o defunto para fora da casa e entregar à terra.

Metido que foi o cadáver na sepultura, vai se tornando amarelo e depois preto. Em seguida, aparece em todos os membros uma lanugem branca e repelente, donde sai um pus infecto que corre pela terra e donde se gera uma multidão de vermes. Os ratos veem também procurar o pasto neste cadáver, roendo-o uns por fora, ao passo que outros entram na boca e nas entranhas. Despegam-se e caem as faces, os lábios, os cabelos; escarnam-se os braços e as pernas apodrecidas, e afinal os vermes, depois de consumidas todas as carnes, consomem-se a si próprios. E deste corpo só restará um esqueleto fétido, que com o tempo se divide, ficando reduzido a um punhado de pó.

Eis aí o que é o homem, considerado como criatura mortal. Eis aí o estado a que tu também, meu irmão, serás, talvez em breve, reduzido: um punhado de pó fedorento. Nada importa ser alguém moço ou velho, são ou enfermo: a todos caberá a mesma sorte, o que a Igreja recorda pondo as cinzas bentas indistintamente sobre a cabeça de todos: Memento homo, quia pulvis es et in pulverem reverteris — “Lembra-te, ó homem, que és pó e em pó te hás de tornar”.

II. Os insensatos que não creem na vida futura e têm as verdades eternas por fábulas, estimulam-se, com a lembrança da morte, a levar vida folgada e a gozarem. Comedamus et bibamus; cras enim moriemur (1) — “Comamos e bebamos, porque amanhã morreremos”. De maneira bem diferente, porém, diz Santo Agostinho, deve proceder o cristão, que pela fé sabe que a alma sobrevive ao corpo e que, depois da morte deste, terá de dar contas rigorosíssimas de tudo quanto tiver feito. — O cristão, que se lembra que em breve deverá deixar o mundo, cuidará da sua eternidade e procurará aplacar a justiça divina com penitências e orações. É por isso exatamente que a Igreja, depois de nos ter posto as cinzas sobre a cabeça, ordena a seus ministros que notifiquem aos fiéis o jejum quaresmal: Canite tuba in Sion: sanctificate ieiunium (2) — “Fazei soar a trombeta em Sião, santificai o jejum”.

Conformemo-nos, portanto, com as intenções de nossa boa Mãe; e como ela mesma o ordena, sejamos no santo tempo da Quaresma “mais sóbrios em palavras, na comida, na bebida, no sono, nos divertimentos” (3); e, o que é mais necessário, afastemo-nos mais de toda a culpa por meio de uma vida recolhida e consagrada à oração, porquanto, no dizer de São Leão, “sem proveito se subtrai o alimento ao corpo, se o espírito não se afasta mais da iniquidade”.

Ó meu amabilíssimo Redentor, consenti que eu una a minha salutar abstinência com a que Vós com tanto rigor por mim quisestes observar no deserto. Consenti também que nesta união eu a ofereça a vosso Pai Divino, como protestação de minha obediência à Igreja, em desconto de meus pecados, pela conversão dos pecadores e em sufrágio das almas santas do purgatório. Tenho intenção de renovar esta oferta todos os dias da Quaresma. “Vós, porém, ó Senhor, concedei-me a graça de começar este solene jejum com devida piedade e de continuá-lo com devoção constante” (4), a fim de que, chegada a Páscoa, depois de ter ressurgido convosco para a vida da graça, seja digno se ressuscitar também para a vida da glória. Fazei-o pelo amor de Maria Santíssima.

Referências:

(1) Is 22, 13
(2) Joel 2, 15
(3) Hymn. Quadr.
(4) Or. Fer. curr.

 Quinta-feira depois das Cinzas

Amor de Jesus Cristo em dar-se a nós como alimento

In funiculis Adam traham eas, in vinculis caritatis… et declinavi ad eum ut vescerentur – “Eu as atrairei com as cordas com que se atraem os homens, com as prisões da caridade… inclinei-me para ele, para que comesse” (Os 11, 4)

Sumário. Quanto se julgaria distinguido o súdito a quem o príncipe mandasse algumas iguarias da sua mesa? Jesus Cristo, porém, na santa comunhão, nos dá para sustento, não só uma parte da sua mesa, mas o seu próprio corpo, a sua alma e a sua divindade. Será porventura uma pretensão exagerada da parte do Senhor, se, em compensação de tão grande dom, nos pede o nosso pobre coração todo inteiro? Todavia quantos cristãos não há que Lho recusam completamente ou Lho querem dar, mas dividido entre Ele e as criaturas?

I. Jesus Cristo não satisfez o seu amor, sacrificando a sua vida por nós num oceano de ignomínias e dores, a fim de patentear o amor que nos tinha. Além disso, e para nos obrigar mais fortemente a amá-Lo, quis, na véspera da sua morte, deixar-se todo a nós como nosso alimento na santíssima Eucaristia. ― Deus é todo-poderoso, mas depois de dar-se a uma alma neste Sacramento de amor, não lhe pode dar mais. Diz o Concílio de Trento que Jesus, dando-se aos homens na santa comunhão, derramou (por assim dizer) neste único dom todas as riquezas de seu amor infinito: Divitias sui erga homines amoris velut effudit.

Como não se julgaria honrado, escreve São Francisco de Sales, o vassalo a quem o príncipe enviasse algumas iguarias da sua mesa! E que seria se lhe desse para sustento alguma coisa da sua própria substância? Jesus Cristo, porém, na santa comunhão, nos dá para sustento, não só uma parte de sua mesa, não só uma parte da sua carne sacrossanta, mas o seu corpo inteiro: Accipite et comedite: hoc est corpus meum (1) ― “Tomai e comei, isto é o meu corpo”. E com o corpo nos dá também a alma e a divindade. Numa palavra, diz São João Crisóstomo, Jesus Cristo dando-se a si próprio no Santíssimo Sacramento, dá tudo o que tem e não Lhe resta mais nada para dar: Totum tibi dedit, nihil sibi reliquit.

É pois com razão que este dom é chamado por Santo Tomás: sacramento e penhor de amor, e por São Bernardo: amor dos amores: amor amorum, porque Jesus Cristo reúne e completa neste sacramento todas as outras finezas do seu amor para conosco. Pelo mesmo motivo Santa Maria Madalena de Pazzi chamava o dia em que Jesus instituiu este sacramento, o dia do amor. Ó maravilha e prodígio do amor divino! Deus, o Senhor de todas as coisas, se faz todo nosso!

II. Praebe, fili mi, cor tuum mihi (2) ― “Meu filho, dá-me teu coração”. Eis o que Jesus Cristo nos diz lá de dentro do santo Tabernáculo: Meu filho, em compensação do amor que te mostrei, dando-te o dom inapreciável do Santíssimo Sacramento, dá-me o teu coração e ama-me de hoje em diante com todas as tuas forças, com toda a tua alma. ― Parece-te porventura, meu irmão, que o nosso Salvador é exigente demais, depois de se ter dado a si próprio sem reserva? Todavia, quantos cristãos não há que recusam por completo seu coração a Jesus, ou querem dividi-lo entre Ele e as criaturas!

Ó meu caro Jesus, que mais podeis executar para nos atrair a vosso amor? Ah! Dai-nos a conhecer por que excesso de amor Vos reduzistes a estado de alimento, para Vos unir a pobres e vis pecadores como somos? Ó meu Redentor, vossa ternura para comigo tem sido tão grande, que não recusastes dar-Vos muitas vezes todo a mim na santa comunhão; e eu, quantas vezes tive a ingratidão de Vos expulsar da minha alma! Mas não é possível que desprezeis um coração contrito e humilhado. Por mim Vos fizestes homem, por mim morrestes e chegastes a Vos fazer meu alimento; após isto, que Vos fica ainda por fazer no intuito de conquistardes meu amor? Ah! Não poder eu morrer de dor, cada vez que me lembro de ter assim desprezado vossa graça! Ó meu Amor, arrependo-me de todo o meu coração de Vos ter ofendido. Amo-Vos, ó Bondade infinita; amo-Vos, ó Amor infinito. Nada mais desejo senão amar-Vos, e nada mais temo senão viver sem Vos amar.

Meu amado Jesus, não recuseis vir à minha alma. Vinde, porque estou resolvido a morrer antes mil vezes, que repelir-Vos de novo, e quero fazer tudo para Vos agradar. Vinde e abrasai-me todo no vosso amor. Fazei com que me esqueça de todas as coisas, para não mais pensar senão em Vós, e só a Vós buscar, meu único e soberano Bem. ― Ó Maria, minha Mãe, rogai por mim, e, por vossas orações, tornai-me reconhecido para com Jesus Cristo, que tanto amor me tem.

Referências:

(1) I Cor 11, 24
(2) Pv 23, 26

 Sexta-feira depois das Cinzas

Comemoração da Coroa de espinhos de Nosso Senhor Jesus Cristo

Et milites plectentes coronam de spinis, imposuerunt capiti eius – “E os soldados tecendo de espinhos uma coroa, lha puseram sobre a cabeça” (Jo 19, 2)

Sumário. Os bárbaros algozes, não contentes com a horrível carnificina feita em Jesus com a flagelação, Lhe põem por escárnio uma coroa de espinhos na cabeça e apertam-na de modo que os espinhos penetraram até ao cérebro. Eis como o Senhor quis reparar a maldição fulminada contra a terra, isto é, contra Adão, em conseqüência da qual a natureza humana não pode produzir senão abrolhos e espinhos de culpas! Eis como Jesus quis expiar os nossos maus pensamentos!

I. Os bárbaros algozes ainda não contentes com a horrenda carnificina feita no corpo sacrossanto de Jesus Cristo com a flagelação, instigados pelos demônios e pelos judeus, querendo tratá-Lo de rei de comédia, Lhe põem aos ombros um farrapo de um vestido vermelho, à guisa de manto real; uma cana verde na mão à guisa de cetro, e na cabeça um feixe de espinhos entrelaçados em forma de coroa. E para que esta coroa não só Lhe servisse de ludibrio, mas também Lhe causasse grande dor, foi feita, na opinião comum dos escritores, em forma de capacete ou chapéu, de sorte que cobria toda a cabeça do Senhor, descia até sobre a testa.

Além disso, colhe-se do Evangelho de São Mateus, que os algozes com a mesma cana batiam nos espinhos compridos, a fim de entrarem mais dentro na cabeça. Com efeito, no dizer de São Pedro Damião, chegaram a penetrar até ao cérebro: spinae cerebrum perforantes. Se um só espinho encravado no pé de um leão o faz ressoar toda a floresta com seus dolorosos gemidos, imagina quão acerba deve ter sido a dor de Jesus Cristo que teve toda a sagrada cabeça perfurada, a parte mais sensível do corpo humano, ao qual se reúnem todos os nervos e sensações.

Tão atroz tormento não foi para Jesus de curta duração; bem ao contrário, foi o mais longo da sua Paixão, porquanto durou até à sua morte. Visto que os espinhos ficavam encravados na cabeça, todas as vezes que lhe tocavam na coroa ou na cabeça, sempre se lhe renovavam as dores. E o Cordeiro manso deixou-se atormentar à vontade dos algozes, sem proferir uma só palavra. ― Era tão grande a abundância de sangue que corria das feridas, que Lhe cobria o rosto, ensopava os cabelos e a barba, e Lhe enchia os olhos. São Boaventura chega a dizer que não era já o belo rosto de Senhor que se via, mas o rosto de um homem esfolado. Eis aí, exclama o Bem-aventurado Dionísio Cartusiano, como quis ser tratado o Filho de Deus, para obter para nós a coroa de glória no céu.

II. Maledicta terra in opere tuo… spinas et tribulos germinabit tibi (1) ― “A terra será maldita na tua obra… ela te produzirá espinhos e abrolhos”. Esta maldição foi lançada por Deus contra Adão e toda a sua descendência; pois que pela terra, não se entende tão somente a terra material, senão também a natureza humana, que estando infectada pelo pecado de Adão, não produz senão espinhos de culpas. ― Para cura desta infecção, diz Tertuliano, foi mister que Jesus Cristo oferecesse a Deus o sacrifício do seu longo tormento da coroação de espinhos. Por isso Santo Agostinho não hesita em dizer que os espinhos não foram senão instrumentos inocentes; mas que os espinhos criminosos, que propriamente atormentaram a cabeça de Jesus Cristo, foram os nossos pecados, e em particular, os nossos maus pensamentos: Spinae quid nisi peccatores? É isso exatamente o que Jesus Cristo mesmo deu a entender, quando apareceu certa vez a Santa Teresa, coroado de espinhos. Quando a Santa Lhe testemunhava a sua compaixão, disse-lhe o Senhor:

“Teresa, não te compadeças de mim pelas feridas que me abriram os espinhos dos judeus, mas antes pelas que me causam os pecados dos cristãos”

― Ó minha alma, tu também atormentaste então a cabeça de teu Redentor com o teu frequente consentimento no pecado. Por piedade! Abre ao menos agora os olhos, vê e chora amargamente o grande mal que fizeste.

Ah, meu Jesus, Vós não tínheis merecido ser tratado por mim como Vos tenho tratado. Reconheço a minha ingratidão; arrependo-me de todo o meu coração. Peço-Vos que não somente me perdoeis, mas que me deis tão grande dor, que durante a minha vida toda continue a chorar as injúrias que Vos fiz. Sim, Jesus meu, perdoai-me, visto que Vos quero amar sempre e sobre todas as coisas. “E Vós, ó Eterno Pai, concedei-me que, venerando na terra, em memória da Paixão de Jesus Cristo, a sua coroa de espinhos, mereça ser um dia por Ele coroado no céu com uma coroa de glória e honra” (2). Fazei-o pelo amor do mesmo Jesus Cristo e de Maria, sua Mãe.

Referências:

(1) Gn 3, 17
(2) Or. festi curr.
7x Sábado depois das Cinzas
Primeira dor de Maria Santíssima – Profecia de Simeão

Tuam ipsius animam pertransibit gladius – “Uma espada transpassará a tua alma” (Lc 2, 35)

Sumário. O Senhor usa esta compaixão conosco, de não nos deixar ver as cruzes que nos esperam, a fim de que as tenhamos de sofrer uma só vez. Maria Santíssima, ao contrário, depois da profecia de São Simeão, tinha sempre diante dos olhos e padecia continuamente todas as penas que a esperavam na Paixão do Filho. Mas se Jesus e Maria inocentes tanto padeceram por nosso amor, como ousaremos lamentar-nos, nós que somos pecadores, quando temos de padecer um pouco por amor deles?

I. Neste vale de lágrimas, cada homem nasce para chorar e cada um deve padecer sofrendo aqueles males que diariamente lhe acontecem. Mas quanto mais triste seria a vida, se cada um soubesse também os males futuros que o têm de afligir! O Senhor usa esta compaixão conosco, de não nos deixar ver as cruzes que nos esperam, a fim de que, se as temos de padecer, ao menos as padeçamos uma só vez. ― Mas Deus não usou semelhante compaixão para com Maria, a qual, porque Deus quis que fosse Rainha das dores e toda semelhante ao Filho, teve sempre de ver diante dos olhos e de padecer continuamente todas as penas que a esperavam; e estas foram as penas da paixão e morte de seu amado Jesus.

Eis que no templo de Jerusalém, Simeão, depois de ter recebido o divino Infante em seus braços, lhe prediz que aquele seu Filho devia ser alvo de todas as contradições e perseguições dos homens e que por isso a espada de dor devia traspassar-lhe a alma: Et tuam ipsius animam pertransibit gladius. ― Davi, no meio de todas as suas delícias e grandezas reais, quando ouviu que o Profeta Natan lhe anunciava a morte do filho, não tinha mais paz: chorava, jejuava, dormia à terra nua. Não é assim que fez Maria. Com suma paz recebeu ela a nova da morte do Filho e com a mesma paz continuou a sofrê-la; mas ainda assim, que dor não devia sentir o seu Coração!

Nem serviu para lha mitigar o conhecimento que já de antemão tinha do sacrifício a fazer, pois que, como foi revelado a Santa Teresa, a bendita Mãe conheceu então em particular e mais distintamente todas as circunstâncias dos sofrimentos, tanto exteriores como interiores, que haviam de atormentar o seu Jesus na sua Paixão. Numa palavra, a mesma Bem-Aventurada Virgem disse a Santa Matilde, que a este aviso de São Simeão toda a sua alegria se converteu em tristeza.

II. A dor de Maria não achou alívio com o correr do tempo; ao contrário, ia sempre aumentando, à medida que Jesus, crescendo em sabedoria, em idade e em graça, junto de Deus e junto dos homens (1), se tornava mais amável aos olhos de sua Mãe, e se avisinhava mais o tempo da sua amargosa Paixão. Eis o que a própria divina Mãe revelou a Santa Brígida:

“Cada vez que eu olhava para meu Filho, sentia o meu coração oprimido de nova dor e enchiam-se meus olhos de lágrimas”.

Ruperto abade contempla Maria dizendo ao Filho enquanto o alimentava:

“Fasciculus myrrhae dilectus meus mihi; inter ubera mea commorabitur (2). Ah, Filho meu, eu te aperto entre meus braços porque muito te amo; mas quanto mais te amo, tanto mais para mim te transformas em ramalhete de mirra e de dor, pensando em tuas penas. Tu és a fortaleza dos Santos, e um dia entrarás em agonia; és a beleza do paraíso, e um dia serás desfigurado; és o Senhor do mundo, mas um dia serás preso como um réu; és o Criador do universo, mas um dia te verei lívido pelas pancadas; numa palavra, tu és o Juiz de todos, a glória dos céus, o Rei dos reis, mas um dia serás sentenciado, desprezado, coroado de espinhos, tratado como rei de escárnio e pregado num infame patíbulo. E eu, que sou tua Mãe, eu, que te amo mais que a mim mesma, terei de ver-te morrer de dor, sem te poder dar o menor alívio: Fasciculus myrrhae dilectus meus mihi ― O meu amado é para mim um ramalhete de mirra”.

Se, pois, Jesus, nosso Rei, e Maria, nossa Mãe, bem que inocentes, não recusaram por nosso amor padecer durante toda a sua vida uma pena tão atroz, não é justo que nós nos lamentemos, se padecemos um pouco; nós que porventura muitas vezes temos merecido o inferno.

Referências:

(1) Lc 2, 52
(2) Ct 1, 12