UM BREVE COMENTÁRIO À ORAÇÃO DA AVE MARIA: SÚPLICA À SANTA MARIA, MÃE DE DEUS
Nos artigos anteriores dessa série sobre a oração da Ave Maria, analisamos a primeira e a segunda parte dessa oração, que são a saudação de São Gabriel Arcanjo (“Ave Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco”, de Lc 1, 28) e a saudação de Santa Isabel (“Bendita sois vós entre as mulheres e bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus”, de Lc 1, 42). Neste último artigo, vamos tratar da terceira e última parte, a súplica à Santa Maria, Mãe de Deus (“Santa Maria, Mãe de Deus, rogai por nós, pecadores, agora e na hora de nossa morte. Amém”).
“Santa Maria […] pecadores”
Iniciamos a súplica invocando Nossa Senhora como “Santa Maria”. A palavra “santo” na Bíblia, tanto em hebraico (“kadosh”) quanto em grego (“hagios”), indica alguém “separado”. Quando aplicada a Deus, indica primeiramente que Deus é alguém separado da criação, no sentido de que, como Criador, ele é totalmente distinto das criaturas, transcendente, muito acima de qualquer coisa existente (Is 57, 15). Mas além desse sentido primário, a palavra também é aplicada a Deus para indicar que ele é totalmente separado do pecado (Is 6, 1-7). É nesse segundo sentido, de “separado do pecado”, que a palavra “santo” é aplicada a criaturas, anjos e seres humanos, já que o primeiro sentido, de transcendência, só se aplica a Deus.
Quando a Bíblia diz que alguém é santo, isso não significa, necessariamente, que tal pessoa já está completamente livre de todo vestígio do pecado. São Paulo, por exemplo, chama os cristãos da Igreja de Corinto de “santos” (1Cor 1, 2; 2Cor 1, 1), ainda que houvesse muitos pecados a serem vencidos por eles, como pode ser percebido pela leitura de 1 Coríntios. Eles são santos porque foram batizados e, assim, foram “lavados”, “santificados” e “justificados em nome do Senhor Jesus Cristo e no Espírito de nosso Deus” (1Cor 6, 11). Nesse sentido, portanto, todos os cristãos podem ser chamados de “santos” e são chamados à santidade.
Entretanto, a Igreja aplica o termo “santo” de forma especial àqueles cristãos que, nesta vida, alcançaram a perfeição da caridade. Ser santo é ser separado do pecado, o pecado é a desobediência à lei divina (1Jo 3, 4; Tg 2, 8-13) e o resumo da lei é o amor a Deus de todo coração e ao próximo como a si mesmo (Mt 22, 34-40). Logo, quem alcançou a perfeição desse amor, alcançou a santidade, e merece o título de “santo” de maneira eminente.
Podemos ir além e encontraremos uma santidade ainda mais elevada naqueles que nunca pecaram. Os anjos bons nunca cometerem um pecado sequer e são, com razão, chamados de “santos anjos” (Mc 8, 38; Ap 14, 10). O Senhor Jesus Cristo não contraiu o pecado original e nunca cometeu um pecado pessoal (Jo 8, 46; 2Cor 5, 21; Hb 4, 15; 7, 26; 1Pe 1, 18-19; 2, 22; 1Jo 3, 5), sendo “o Santo de Deus” (Mc 1, 24). E como vimos no segundo artigo desta série, a Virgem Maria, cheia de graça, “foi preservada imune de toda mancha de culpa original no primeiro instante de sua Concepção, por singular graça e privilégio de Deus onipotente, na atenção aos méritos de Jesus Cristo, salvador do gênero humano” (Constituição Apostólica “Ineffabilis Deus”).
Desse modo, Nossa Senhora é santa num sentido singular, muito superior a qualquer outro santo. Por isso, na Ave Maria, depois de pedirmos “rogai por nós”, o que pedimos a outros santos também, nós acrescentamos “pecadores”, fazendo um claro contraste entre ela, a Santa Maria, e nós, os pecadores.
“Mãe de Deus”
A súplica continua com uma segunda invocação, onde chamamos Nossa Senhora de “Mãe de Deus”. Já vimos no terceiro artigo que Santa Isabel chama a Virgem Maria de “mãe do meu Senhor” (Lc 1, 43), reconhecendo-a como a Mãe de Deus. A Igreja já invocava Nossa Senhora com esse título desde bem cedo, como pode ser visto na oração “Sob a vossa proteção”, do século III ou IV: “À vossa proteção recorremos, Santa Mãe de Deus; não desprezeis as nossas súplicas em nossas necessidades; mas livrai-nos sempre de todos os perigos, ó Virgem gloriosa e bendita. Amém”.
Entretanto, no século V, um monge de nome Nestório, que foi Patriarca de Constantinopla de 428 a 431, começou a ensinar que a Virgem Maria era apenas “Mãe de Cristo” (“Christotokos”) e não “Mãe de Deus” (“Theotokos”). Por trás desse ensino, estava a crença de que, em Cristo, havia duas pessoas: a segunda pessoa da Trindade, o Filho de Deus, que é Deus, e a pessoa humana de Jesus, o Filho de Maria, que é homem.
O ensino de Nestório chegou aos ouvidos de São Cirilo, Patriarca de Alexandria, que declarou tal ensino como heresia. Segundo São Cirilo, que estava amparado na Escritura e na Tradição, Cristo era uma única pessoa, a segunda pessoa da Santíssima Trindade, que assumiu uma natureza humana no ventre da Virgem Maria, sem deixar de ser Deus. Portanto, como o Filho da Virgem era Deus, ela era a Mãe de Deus.
O Terceiro Concílio Ecumênico, reunido em Éfeso no ano 431, e que é aceito por católicos, ortodoxos e protestantes, reconheceu a ortodoxia do ensino de São Cirilo e condenou o ensino de Nestório como heresia. O Concílio declarou, assim, o dogma de que a Virgem Maria é a Mãe de Deus. Por isso, a Igreja tem invocado Nossa Senhora como Mãe de Deus e assim o fazemos na oração da Ave Maria.
“Rogai por nós”
Após as invocações, fazemos a súplica propriamente dita. Pedimos que Nossa Senhora rogue por nós, ore por nós, interceda por nós, junto a Deus e seu Filho.
Na Bíblia, vemos que podemos e devemos orar uns pelos outros (Ef 6, 18-19; Tg 5, 16; 1Jo 5, 16), o que chamamos de intercessão. Essa comunhão na oração continua mesmo depois da morte. Oramos por aqueles que morreram (2Mc 12, 38-45; 2Tm 1, 16-18), para que alcancem o descanso eterno do céu; e aqueles que estão no céu, anjos e santos, que sabem o que se passa na terra (Hb 12, 1; Ap 6, 9-11), também oram por nós (2Mc 15, 12-16; Ap 5, 8; 8, 3). Por isso, ao nos aproximarmos de Deus em adoração, aproximamo-nos também dos anjos e santos (Hb 12, 22-24), dos quais pedimos a intercessão.
Acima de todos os anjos e santos, todavia, está a Santa Maria, Mãe de Deus. Como aprendemos nos artigos anteriores, na condição de Mãe de Deus, a Virgem Maria supera em muito todas as criaturas. Sua proximidade de Deus não é igualada por ninguém mais. Estando tão próxima de Deus, ela sempre deseja o que Deus deseja. Sua vontade é a mesma do seu Filho. Por essa razão, São Bernardo de Claraval afirma que “Maria é a onipotência suplicante”, no sentido de que tudo o que ela pede, o Filho faz.
Vemos isso nas bodas de Caná (Jo 2, 1-11). Nossa Senhora pede a Nosso Senhor Jesus Cristo em favor dos noivos, porque o vinho tinha acabado (Jo 2, 3). Cristo, depois de esclarecer que ainda não era a hora do banquete messiânico que atualiza sua morte, a Eucaristia (Jo 2, 4; cf. 4, 21. 23; 5, 25. 28; 7, 30; 8, 20; 12, 23. 27; 13, 1; 16, 2. 4. 21. 25. 32; 17, 1), atende ao pedido de sua Mãe e transforma a água em vinho (Jo 2, 5-10), dando início ao seu ministério público (Jo 2, 11). Nossa Senhora, assim, se comporta como as Rainhas Mães do antigo Israel, que intercediam pelo povo diante do rei descendente de Davi (1Rs 2, 13-25), mas as supera por ser a Rainha Mãe por excelência, que é sempre atendida.
Diante disso, podemos pedir a intercessão de Nossa Senhora com confiança, certos de que ela conseguirá para nós, junto ao seu Filho, todas as graças que precisamos para a nossa salvação.
“Agora e na hora de nossa morte”
Ao pedirmos que Nossa Senhora interceda por nós, pedimos que ela o faça em dois momentos específicos, que são os momentos mais importantes da nossa vida: agora e na hora de nossa morte.
“Agora” é o momento presente, o único que existe realmente para nós, pois o passado passou e o futuro ainda não chegou. O presente é o único momento em que podemos fazer alguma coisa, como amar a Deus de todo o coração e ao próximo como a nós mesmos. Como diz o Sl 94 (95), citado em Hb 4, 7, “Hoje, se ouvirdes a sua voz, não endureçais os vossos corações”. E Santa Teresinha do Menino Jesus escreve, em seu famoso poema “Meu Cântico de hoje”:
“Minha vida é só um instante, uma hora passageira.
Minha vida é só um dia que me escapa e me foge.
Tu sabes, oh, meu Deus: para amar-te nesta terra,
Tenho o dia de hoje tão somente!”
Por isso, à semelhança da oração do Pai Nosso, onde pedimos que Deus nos dê o pão nosso de cada dia “hoje”, também pedimos que Nossa Senhora interceda por nós “agora”.
“A hora de nossa morte” é o momento decisivo da nossa vida. Essa é a hora em que se evidencia quem faz parte do número dos eleitos, dos que receberam a graça de perseverarem até o fim (Rm 8, 28-30; Hb 10, 35-39). É possível que um pecador se converta e seja salvo na hora da morte (como o bom ladrão na cruz: Lc 23, 39-43), assim como um justo se desvie e se perca. Como diz o profeta Ezequiel:
“A justiça do justo não poderá salvá-lo no dia em que ele pecar, nem a maldade do ímpio lhe causará tropeço no dia em que se converter de sua maldade. […] Se eu disser ao justo que com certeza viverá, mas ele, seguro de sua justiça, cometer iniquidade, nenhuma de suas obras justas será lembrada. Morrerá por causa da iniquidade que cometeu. E se eu disser ao ímpio que com certeza morrerá, mas este se converter do pecado e praticar o direito e a justiça, […] com certeza viverá, não morrerá. Nenhum dos pecados que cometeu será lembrado. Praticou o direito e a justiça, com certeza viverá” (Ez 33, 12-16).
Além disso, depois da morte, não há mais possibilidade de conversão e salvação, pois “está determinado que cada um morra uma só vez, e depois vem o julgamento” (Hb 9, 27), e ninguém pode mudar do lugar de castigo para o de bem-aventurança, e vice-versa (Lc 16, 23-26). O purgatório é um lugar para pessoas salvas se purificarem de pecados veniais e penas temporais (1Cor 3, 12-15), não um lugar para pessoas perdidas se salvarem de pecados mortais e penas eternas.
Desse modo, é importantíssimo pedirmos a intercessão da Virgem Santíssima para a hora da nossa morte, que define o nosso destino eterno, para que gozemos do convívio dos eleitos.
“Amém”
Como é costume nas orações, terminamos a Ave Maria dizendo “amém”. “Amém” é uma palavra hebraica que significa “com certeza”, “verdadeiramente”, “assim seja”, manifestando nossa concordância com o que foi dito na oração (Sl 105[106], 48; 1Cor 14, 16). Assim, encerramos a oração, reconhecendo que a Virgem Maria é, de fato, a cheia de graça, com quem o Senhor está, a bendita e santa Mãe de Deus, preparada por uma imaculada conceição e por uma fé obediente para gerar o Filho de Deus, tornando-se, assim, a verdadeira Jerusalém, o novo templo, a arca da nova aliança, a última Eva, a mulher que fere a cabeça da serpente e a Rainha Mãe, sempre pronta para interceder por nós, pecadores, como “onipotência suplicante”, agora e na hora de nossa morte.
Ao concluirmos esta série, nada mais apropriado do que rezar uma Ave Maria a tão gloriosa Virgem e Mãe. Ou melhor, nada mais adequado do que rezar o Rosário, oferecendo à Nossa Senhora rosas de amor e gratidão com nossas orações.
- “Ave Maria… o Senhor é convosco”
- “Cheia de graça”
- Saudação de Santa Isabel (Parte 1)
- Saudação de Santa Isabel (Parte 2)
André Aloísio
Teólogo