História
As primeiras palavras de Leão XIV: uma análise teológica e simbólica
por Thiago Zanetti em 12/05/2025 • Você e mais 377 pessoas leram este artigo Comentar

Tempo de leitura: 9 minutos
A primeira frase dita pelo Papa não foi escolhida ao acaso. “Que a paz esteja convosco” é a primeira saudação de Jesus Cristo ressuscitado aos seus discípulos (cf. Jo 20,19). Ao iniciar com essas palavras, Leão XIV se insere diretamente na continuidade do Evangelho, posicionando-se como pastor em nome de Cristo.
Essa paz — como ele mesmo afirma — é “desarmada, desarmadora, humilde e perseverante”, contrapondo-se ao espírito de beligerância tão presente na cultura contemporânea. Teologicamente, trata-se de uma paz cristológica, ou seja, que procede da cruz e da ressurreição, e que não se impõe pela força, mas pela doçura.
Referência a Francisco: continuidade e gratidão
Em um gesto raro e eloquente, Leão XIV faz referência direta a seu antecessor: “Ainda conservamos em nossos ouvidos aquela voz frágil, mas sempre corajosa do papa Francisco”. Ao mencioná-lo com reverência e gratidão, ele mostra que seu pontificado não será marcado por rupturas abruptas, mas por um respeito à herança espiritual de Francisco.
A continuidade com o pontificado anterior se evidencia também na menção à construção de “pontes” e à necessidade de “uma Igreja em saída”, expressões emblemáticas do magistério de Francisco. No plano simbólico, é um sinal de comunhão entre os pontífices, mostrando que a sucessão apostólica é continuidade, não competição.
“Sem medo”: coragem pastoral para tempos difíceis
A expressão “sem medo” aparece duas vezes em sua fala. Esse “não tenhais medo” remete diretamente a São João Paulo II em sua primeira homilia como Papa, e também à frequente exortação de Jesus aos seus discípulos. Trata-se de um chamado à confiança na providência divina, especialmente num mundo marcado por crises, guerras e desesperança.
Essa coragem, segundo o Papa, deve ser partilhada entre os fiéis: “mão na mão com Deus e entre nós, sigamos adiante”. O simbolismo é claro: uma Igreja em marcha, unida, missionária, guiada pela luz de Cristo.
Pontes, diálogo e unidade: uma eclesiologia de comunhão
Repetidas vezes, Leão XIV usa o termo “pontes” como imagem para a missão eclesial. É um conceito carregado de significado bíblico e espiritual. Na tradição latina, o Papa é chamado de pontifex, literalmente “construtor de pontes”. Ao retomar esse termo, ele reafirma o papel da Igreja como medianeira entre Deus e os homens, entre povos e culturas.
Ao invocar o “diálogo e o encontro”, Leão XIV apresenta um projeto eclesial que se opõe à polarização. É uma visão sinodal, que não abdica da verdade, mas que aposta no caminho da escuta e da reconciliação.
“Para sermos missionários”: identidade evangelizadora da Igreja
Ao declarar que a missão da Igreja é proclamar o Evangelho “sem medo”, o Papa reforça a centralidade da evangelização como identidade eclesial. A menção à “Igreja missionária” mostra que não se trata de um papado voltado para gestão interna, mas para testemunho público da fé.
Além disso, o uso da primeira pessoa do plural — “caminharei junto a vós” — é uma clara expressão de liderança servidora, indicando um Papa que deseja conduzir, não dominar.
Uma espiritualidade agostiniana
Ao se declarar “filho de Santo Agostinho”, Leão XIV insere sua identidade espiritual dentro da tradição do Doutor da Graça. A citação de Agostinho — “convosco sou cristão, para vós sou bispo” — revela uma teologia do ministério episcopal fundamentada na igualdade batismal e no serviço pastoral.
Agostinho, além de mestre da interioridade, foi um ardente defensor da paz e da unidade da Igreja. Não por acaso, esses temas aparecem com força no discurso de Leão XIV.
Preferência pelos pobres e sofredores
O novo Papa reforça que deseja uma Igreja “sempre próxima, especialmente daqueles que sofrem”. Trata-se de uma opção pastoral clara: colocar os excluídos e marginalizados no centro das preocupações eclesiais.
Essa é uma linha comum aos últimos pontificados, mas Leão XIV a retoma com veemência, sobretudo ao mencionar a Diocese de Chiclayo, no Peru, onde exerceu seu ministério por vários anos. A gratidão expressa aos pobres peruanos que “compartilharam sua fé” é um gesto concreto de reconhecimento da Igreja pobre e para os pobres.
Mariologia e devoção popular
Encerrando sua fala com referência à Nossa Senhora de Pompeia, Leão XIV mostra que seu pontificado também estará profundamente ancorado na espiritualidade mariana. Ele chama Maria de “nossa mãe”, que caminha conosco, intercede por nós e nos ama.
Trata-se de uma mariologia pastoral, afetiva e confiante, que busca integrar a devoção popular à vida litúrgica e sacramental da Igreja.
Um discurso breve, mas densamente teológico
As primeiras palavras de Leão XIV não foram apenas uma saudação de protocolo. Elas revelam um pontificado centrado na paz do Ressuscitado, na comunhão entre os povos, na continuidade com Francisco, na evangelização missionária e na opção preferencial pelos pobres.
Com base nas categorias teológicas de comunhão, sinodalidade, interioridade e misericórdia, Leão XIV propõe um modelo de papado que inspira confiança e convida ao discipulado. Se suas primeiras palavras já indicam o tom do que virá, podemos esperar um pontificado profundamente evangélico, fiel à Tradição e atento aos sinais dos tempos.
Leia o discurso na íntegra abaixo:
“Que a paz esteja convosco. Irmãos, irmãs caríssimos, esta é a primeira saudação do Cristo ressuscitado, o bom pastor, que deu a vida pelo rebanho de Deus. Também eu gostaria que esta saudação, de paz, entrasse no vosso coração, alcançasse vossas famílias, a todas as pessoas. Onde quer que estejam, a todos os povos, a toda a terra, a paz esteja convosco.
Esta é a paz de Cristo ressuscitado, uma paz desarmada, uma paz desarmadora, humilde e perseverante, que provém de Deus. Deus que nos ama a todos, incondicionalmente. Ainda conservamos em nossos ouvidos aquela voz frágil, mas sempre corajosa do papa Francisco, que abençoava Roma.
O papa que abençoava Roma, dava a sua bênção ao mundo inteiro naquela manhã do dia de Páscoa. Permitam-me dar sequência àquela mesma bênção: Deus nos quer bem, Deus nos ama a todos. O mal não prevalecerá. Estamos todos nas mãos de Deus. Portanto, sem medo, unidos, mão na mão com Deus e entre nós, sigamos adiante. Somos discípulos de Cristo. Cristo nos precede. O mundo precisa da sua luz. A humanidade necessita de pontes para que sejam alcançadas por Deus e ao mundo. Ajudai-nos também vós, unam-se aos outros, a construir pontes, com o diálogo, com o encontro, unindo-nos todos para sermos um só povo, sempre, em paz. Obrigado, papa Francisco.
Gostaria de agradecer a todos os irmãos cardeais que me escolheram para ser sucessor de Pedro, e caminharei junto a vós, como Igreja unida, buscando sempre a paz, a justiça, buscando sempre trabalhar como homens e mulheres fiéis a Jesus Cristo. Sem medo, para proclamar o Evangelho. Para sermos missionários.
Sou um filho de Santo Agostinho, agostiniano, que disse: “Convosco sois cristão, e para vós bispo”. Nesse sentido, podemos todos caminhar juntos rumo a essa pátria, à qual Deus nos preparou.
À Igreja de Roma, uma saudação especial. Devemos buscar juntos como ser igreja missionária, uma igreja que constrói pontes, que dialoga, sempre aberta a receber como esta praça de braços abertos, a todos, todos aqueles que precisam da nossa caridade, da nossa presença, do diálogo, de amor.
E se me permitem também uma palavra: [em espanhol] a todos aqueles, de modo particular, à minha querida diocese de Chiclayo no Peru, onde um povo fiel acompanhou o seu bispo, compartilhou a sua fé e deu tanto a mim para seguir sendo igreja fiel de Jesus Cristo.
A todos vós irmãos e irmãs, de Roma, da Itália e do mundo inteiro, queremos ser uma Igreja sinodal, uma Igreja que caminha, que busca sempre a paz, que busca sempre a caridade e busca sempre estar próxima, especialmente daqueles que sofrem.
O dia da súplica à Nossa Senhora de Pompeia, nossa mãe Maria quer sempre caminhar conosco, estar próxima, ajudar-nos com a sua interseção e seu amor. Agora gostaria de rezar junto convosco, rezemos juntos por essa nova missão, por toda a Igreja, pela paz no mundo. Peçamos essa graça especial à Maria, nossa mãe.”

Por Thiago Zanetti
Jornalista, copywriter e escritor católico. Graduado em Jornalismo e Mestre em História Social das Relações Políticas, ambos pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). É autor dos livros Mensagens de Fé e Esperança (UICLAP, 2025), Deus é a resposta de nossas vidas (Palavra & Prece, 2012) e O Sagrado: prosas e versos (Flor & Cultura, 2012).
Acesse o Blog: www.thiagozanetti.com.br
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