Sagradas Escrituras (Bíblia)

Os quatro sentidos da Sagrada Escritura: como ler a Bíblia como católico

por Thiago Zanetti em 12/11/2025 • Você e mais 304 pessoas leram este artigo Comentar


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Tempo de leitura: 7 minutos

Ler a Bíblia é muito mais do que folhear um livro antigo. Para o católico, é entrar em diálogo com o próprio Deus, que fala através das palavras humanas inspiradas pelo Espírito Santo. No entanto, compreender corretamente as Escrituras exige mais do que boa vontade: é preciso conhecer a forma como a Igreja as interpreta desde os primeiros séculos. Um dos caminhos mais seguros para essa leitura é o estudo dos quatro sentidos da Sagrada Escritura — um princípio hermenêutico que permite penetrar nas várias camadas do mistério divino revelado no texto sagrado.

1. O sentido literal: fundamento de todos os outros

O sentido literal é o ponto de partida da leitura bíblica. Ele se refere ao significado direto das palavras, àquilo que o autor humano quis comunicar em seu contexto histórico, cultural e literário. O Catecismo da Igreja Católica (n. 116) ensina:

“O sentido literal é aquele que é significado pelas palavras da Escritura e descoberto pela exegese, seguindo as regras da interpretação correta.”

Isso significa que, antes de buscar interpretações espirituais ou simbólicas, o católico deve compreender o texto em sua realidade concreta — quem escreveu, para quem escreveu, quando e com qual intenção. Assim, por exemplo, ao ler o livro do Êxodo, o sentido literal é a libertação do povo hebreu da escravidão do Egito, um evento histórico que manifesta a ação de Deus na história.

Sem esse primeiro sentido, toda leitura espiritual corre o risco de se tornar subjetiva. Por isso, a Igreja valoriza a exegese bíblica, ciência que ajuda a descobrir o verdadeiro sentido das palavras inspiradas, sempre iluminada pela fé.

2. O sentido alegórico: Cristo oculto nas Escrituras

Depois do literal, vem o sentido alegórico, que revela o cumprimento das promessas do Antigo Testamento em Cristo. Tudo o que foi escrito antes de Jesus encontra n’Ele a sua plenitude. O próprio Senhor afirmou:

“Examinais as Escrituras, pensando ter nelas a vida eterna, e são elas que dão testemunho de mim” (Jo 5,39).

No sentido alegórico, os acontecimentos, personagens e instituições do Antigo Testamento são figuras (ou “tipos”) que apontam para realidades futuras. Assim, a travessia do Mar Vermelho é símbolo do Batismo, a serpente de bronze levantada por Moisés prefigura a cruz de Cristo, e o maná do deserto antecipa a Eucaristia.

Esse modo de ler a Bíblia é profundamente cristocêntrico: tudo converge para Jesus. Como ensina Santo Agostinho, “o Novo Testamento está escondido no Antigo, e o Antigo se revela no Novo” (Quaestiones in Heptateuchum, II, 73). A alegoria mostra a unidade interna da Revelação divina e convida o leitor a contemplar a coerência do plano salvífico de Deus ao longo dos séculos.

3. O sentido moral: a Escritura como guia de vida

O terceiro é o sentido moral, que indica como a Palavra de Deus deve inspirar nossa conduta. O Catecismo (n. 117) afirma:

“Os acontecimentos relatados na Escritura devem conduzir-nos a um agir justo. Eles foram escritos ‘para nossa instrução’ (1Cor 10,11).”

Ler a Bíblia com esse olhar significa deixar-se transformar por ela. As histórias e os ensinamentos bíblicos não são apenas memórias do passado, mas espelhos para a vida presente. A fidelidade de Abraão, a humildade de Maria, a conversão de Zaqueu e o perdão de Cristo na cruz são exemplos concretos que nos ensinam a viver o Evangelho.

O sentido moral, portanto, move o católico à conversão diária. Ele não lê a Escritura apenas para saber, mas para viver segundo a vontade de Deus. Por isso, a leitura orante da Bíblia — a Lectio Divina — é tão valorizada na tradição da Igreja: ela une meditação e ação, contemplação e transformação.

4. O sentido anagógico: o olhar voltado para o Céu

Por fim, o sentido anagógico (do grego anagoge, “elevação”) aponta para as realidades eternas. É o sentido que conduz a esperança cristã, mostrando como os fatos e promessas da Escritura nos orientam para o destino final: a vida eterna em comunhão com Deus.

Por exemplo, a Jerusalém terrena é símbolo da Jerusalém celeste, a cidade definitiva onde Deus será “tudo em todos” (1Cor 15,28). As passagens que falam de caminhada, exílio ou peregrinação evocam a nossa jornada rumo ao Reino dos Céus. Como lembra São Gregório Magno, “a Sagrada Escritura cresce com quem a lê”: à medida que amadurecemos na fé, ela nos faz levantar os olhos e desejar o alto.

Unidade dos quatro sentidos

Esses quatro sentidos não são independentes, mas complementares. O literal é o alicerce; o alegórico, o coração cristológico; o moral, o caminho da santidade; e o anagógico, o horizonte da eternidade. Juntos, eles permitem ao católico ler a Bíblia de modo integral — com a mente, o coração e a alma.

O Concílio Vaticano II, na Constituição Dei Verbum (n. 12), recorda que “a Sagrada Escritura deve ser lida e interpretada com o mesmo Espírito com que foi escrita”. Isso significa que não basta conhecer o texto; é preciso acolher o Espírito Santo, que ilumina a inteligência e move o coração à conversão.

Como aplicar isso na prática

Para ler a Bíblia como católico, é útil seguir três atitudes:

  1. Ler com fé e oração: Antes de abrir a Bíblia, peça a luz do Espírito Santo. A Palavra é viva e eficaz (Hb 4,12), e só se revela plenamente a quem a lê com fé.

  2. Ler em comunhão com a Igreja: A interpretação pessoal deve estar sempre em sintonia com o Magistério. A Igreja é a guardiã da Palavra, e sua Tradição ajuda a evitar leituras isoladas ou distorcidas.

  3. Ler com método e perseverança: Utilize o método da Lectio Divina: leitura, meditação, oração e contemplação. Comece pelos Evangelhos, leia um trecho por dia e busque colocar em prática o que o Senhor te inspira.

Suba os degraus da Palavra de Deus

Ler a Bíblia é deixar-se encontrar por Deus. Os quatro sentidos da Sagrada Escritura — literal, alegórico, moral e anagógico — são como degraus de uma escada que nos conduz do texto à vida, da letra ao espírito, da história à eternidade.

Como ensina o Catecismo (n. 119): “É dever dos exegetas esforçar-se, dentro dessas diretrizes, por entender e expor com maior aprofundamento o sentido da Sagrada Escritura, a fim de que, por seu trabalho como preparatório, amadureça o julgamento da Igreja.” Ler como católico é, portanto, ler com o coração da Igreja, com humildade e esperança.

A cada página, o cristão descobre que a Bíblia não é um livro para ser apenas estudado — é um caminho para ser vivido. E, ao percorrer esse caminho com os olhos da fé, o leitor se torna não apenas um conhecedor da Palavra, mas um verdadeiro discípulo de Cristo, guiado pela Palavra que salva.

Thiago Zanetti

Por Thiago Zanetti
Jornalista, copywriter e escritor católico. Graduado em Jornalismo e Mestre em História Social das Relações Políticas, ambos pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). É autor dos livros Mensagens de Fé e Esperança (UICLAP, 2025), Deus é a resposta de nossas vidas (Palavra & Prece, 2012) e O Sagrado: prosas e versos (Flor & Cultura, 2012).
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